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Ponto de fuga
Ah, Foucault!
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Faz 20 anos que Foucault morreu. O
mundo envelheceu muito desde
aquele tempo. Energias libertárias necessitam de inimigos claros para se alimentarem. A revolta nasce do embate e se renova no embate. A própria consciência da revolta enfraquece se o inimigo se dilui e perde os contornos. A repressão sexual, a repressão política, que era possível enfrentar
com heroísmo nos anos de 1960 e 1970, mudou, sem dúvida. Fala-se de sexo facilmente hoje, em todos os lugares; os opróbrios
da virgindade feminina perdida ou do homossexualismo se atenuaram. No Ocidente, a polícia política não invade mais as casas nem prende pessoas por delitos de opinião.
Porém os antigos modos repressivos deram lugar a uma espécie de "incorporação
classificatória", nova ou renovada, que ordena, absorve e assume os comportamentos tomados outrora como desviantes.
Muito das antigas normas repressoras passaram a representar com justa razão o papel de vilãs. Um exército politicamente correto se encarrega de policiar os crimes racistas, antifeministas, anti-ecológicos e preconceitos de todo tipo.
O poder público cria leis de mesmo sentido e criminaliza a antiga norma que virou
delito. Vigiar e punir: as posturas, mesmo
que sem dúvida melhores, dissimulam sua
própria legitimação num terreno ilegítimo.
A episteme não mudou; a repressão em nome do bem se esconde melhor. Torna-se
assim muito mais difícil denunciar, atacar
ou mesmo discutir o próprio princípio da
ordem, que continua repressivo, controlador, violento, embora difuso e disfarçado.
Big nurse - Uma locução despontou neste
ano de 2004: "Nanny State", o Estado-babá.
Tem sido usada pelo pior e mais abominável neoliberalismo, em ironia contra a noção de "Welfare State", que significa promoção do bem-estar social. Mas "Nanny
State" é expressão saborosa e pode ser aplicada de outro jeito. Como uma babá, o Estado toma conta dos indivíduos, impondo
regras de comportamento minuciosas,
protegendo cada um contra si mesmo.
Trata-se, na verdade, de uma triste infantilização regressiva. Proibindo isto e aquilo,
porque faz mal, para o corpo ou para o espírito: nada de fumar, o ministério adverte.
Essa babá severa é o avesso de Julie Andrews, na "Noviça Rebelde" [de Robert Wise, 1965] ou em "Mary Poppins" [de Robert
Stevenson, 1964], que entrava no mundo da
infância para compreendê-lo melhor, para
dilatar-lhe as possibilidades mágicas, para
deixar, no coração dos espectadores, a promessa expansiva de felicidades róseas em
que a família sai reconfortada. É a outra, a
babá oficial, quem decide, por exemplo, se
a mãe ou o pai podem ou não levar o filho
menor para ver tal ou qual filme. Pai e mãe
não são adultos o bastante para orientar
suas crianças. Acima deles está o governo,
determinando: este espetáculo é para 18
anos, aquele é para 14, o outro, para 10.
Big brother - O censor mor, ou seja, o "diretor de classificação indicativa do Ministério da Justiça", no eufemismo oficial, declarou à Folha que "a intenção agora é atribuir
uma feição científica à classificação". Com
uma babá científica, talvez se chegue a precisões altamente rigorosas: "Este filme fica
proibido para menores de 15 anos, 7 meses,
3 semanas, 6 dias e 4 horas". Sugestão para
slogan: "O Estado conhece seu filho melhor
que você".
Movediço - Incapaz de resolver os problemas reais da violência, da pobreza, da infelicidade social, o Estado ataca o imaginário.
Ao estabelecer a censura, o poder político
decide que a maturidade se divide em faixas de idade. Visão botânica: o homem seria como um fruto de amadurecimento
previsível. Não é o caso; há velhos imaturos, há filhos mais maduros que os pais. A
violência do mundo é infinitamente pior
do que a da arte, cujo domínio pertence à
fantasia. Arte é virtualidade. Serve de treino, de preparação para o mundo. Os censores, está claro, não sabem disso.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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