São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Ah, Foucault!

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Faz 20 anos que Foucault morreu. O mundo envelheceu muito desde aquele tempo. Energias libertárias necessitam de inimigos claros para se alimentarem. A revolta nasce do embate e se renova no embate. A própria consciência da revolta enfraquece se o inimigo se dilui e perde os contornos. A repressão sexual, a repressão política, que era possível enfrentar com heroísmo nos anos de 1960 e 1970, mudou, sem dúvida. Fala-se de sexo facilmente hoje, em todos os lugares; os opróbrios da virgindade feminina perdida ou do homossexualismo se atenuaram. No Ocidente, a polícia política não invade mais as casas nem prende pessoas por delitos de opinião.
Porém os antigos modos repressivos deram lugar a uma espécie de "incorporação classificatória", nova ou renovada, que ordena, absorve e assume os comportamentos tomados outrora como desviantes. Muito das antigas normas repressoras passaram a representar com justa razão o papel de vilãs. Um exército politicamente correto se encarrega de policiar os crimes racistas, antifeministas, anti-ecológicos e preconceitos de todo tipo.
O poder público cria leis de mesmo sentido e criminaliza a antiga norma que virou delito. Vigiar e punir: as posturas, mesmo que sem dúvida melhores, dissimulam sua própria legitimação num terreno ilegítimo. A episteme não mudou; a repressão em nome do bem se esconde melhor. Torna-se assim muito mais difícil denunciar, atacar ou mesmo discutir o próprio princípio da ordem, que continua repressivo, controlador, violento, embora difuso e disfarçado.

Big nurse - Uma locução despontou neste ano de 2004: "Nanny State", o Estado-babá. Tem sido usada pelo pior e mais abominável neoliberalismo, em ironia contra a noção de "Welfare State", que significa promoção do bem-estar social. Mas "Nanny State" é expressão saborosa e pode ser aplicada de outro jeito. Como uma babá, o Estado toma conta dos indivíduos, impondo regras de comportamento minuciosas, protegendo cada um contra si mesmo.
Trata-se, na verdade, de uma triste infantilização regressiva. Proibindo isto e aquilo, porque faz mal, para o corpo ou para o espírito: nada de fumar, o ministério adverte.
Essa babá severa é o avesso de Julie Andrews, na "Noviça Rebelde" [de Robert Wise, 1965] ou em "Mary Poppins" [de Robert Stevenson, 1964], que entrava no mundo da infância para compreendê-lo melhor, para dilatar-lhe as possibilidades mágicas, para deixar, no coração dos espectadores, a promessa expansiva de felicidades róseas em que a família sai reconfortada. É a outra, a babá oficial, quem decide, por exemplo, se a mãe ou o pai podem ou não levar o filho menor para ver tal ou qual filme. Pai e mãe não são adultos o bastante para orientar suas crianças. Acima deles está o governo, determinando: este espetáculo é para 18 anos, aquele é para 14, o outro, para 10.

Big brother - O censor mor, ou seja, o "diretor de classificação indicativa do Ministério da Justiça", no eufemismo oficial, declarou à Folha que "a intenção agora é atribuir uma feição científica à classificação". Com uma babá científica, talvez se chegue a precisões altamente rigorosas: "Este filme fica proibido para menores de 15 anos, 7 meses, 3 semanas, 6 dias e 4 horas". Sugestão para slogan: "O Estado conhece seu filho melhor que você".

Movediço - Incapaz de resolver os problemas reais da violência, da pobreza, da infelicidade social, o Estado ataca o imaginário. Ao estabelecer a censura, o poder político decide que a maturidade se divide em faixas de idade. Visão botânica: o homem seria como um fruto de amadurecimento previsível. Não é o caso; há velhos imaturos, há filhos mais maduros que os pais. A violência do mundo é infinitamente pior do que a da arte, cujo domínio pertence à fantasia. Arte é virtualidade. Serve de treino, de preparação para o mundo. Os censores, está claro, não sabem disso.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica: "Deuses Econômicos"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.