São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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+ política

Tradição de intolerância e violência no Brasil, como o golpe de 64, tem raízes na Inquisição e no escravismo

Os fantasmas da memória

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No seminário "1954-1964-2004 - O Golpe, Memória e Atualidade", organizado entre os dias 9 e 12 de novembro na USP e na Universidade Estadual de Campinas, pesquisadores nacionais e estrangeiros analisaram os antecedentes e as conseqüências da ditadura.
As discussões, como também os comentários trazidos de congressos análogos realizados ao longo do ano em outras cidades do país, demonstraram que os estudos sobre a ditadura brasileira existem, doravante, como uma especialidade de corpo inteiro. Além de muitas dezenas de artigos, foi publicada mais de uma centena de livros dedicados em parte ou inteiramente ao tema.
Na verdade, os debates foram atravessados por movimentos contraditórios. Por um lado, a presença de pesquisadores de gerações diferentes, incluindo intelectuais que viveram a tentativa de golpe de 1954, os eventos de 1964, e outros ainda adolescentes no final da ditadura, imprimiu um necessário distanciamento crítico ao rumo das discussões.


O AI-5 instaurou um padrão autoritário inédito na história nacional


Por outro lado, a atualidade imediata -o acesso aos arquivos sigilosos e a demissão do ministro da Defesa, José Viegas [em 4/11]-, veio dar nova ênfase a questões aparentemente superadas. A maioria dos participantes notou o paradoxal desfecho da crise: o ministro da Defesa se demitiu, mas seu subordinado [general Francisco Roberto de Albuquerque], responsável pela nota anticonstitucional, que justifica a tortura e o assassinato de prisioneiros políticos, continua no posto.
A respeito da "lei do sigilo eterno", outros desdobramentos foram postos em relevo. Além dos militares implicados na repressão, e dos diplomatas, desejosos de ocultar interferências em "países vizinhos", um dos conferencistas apontou outros interessados na eternidade do sigilo. Como, por exemplo, personalidades e pessoas jurídicas que aparecem em má postura nos documentos das grandes privatizações efetuadas no governo FHC. As tergiversações do atual governo quanto à efetividade desta lei e dos arquivos da ditadura, ora declarados inexistentes ou queimados, ora ressurgindo das cinzas, prolongam a confusão.
Desenhada a dimensão dos fatos, resta ainda outra tarefa para o historiador: buscar as raízes do drama. Situar as continuidades e as rupturas que se desenham entre tais eventos e o passado da comunidade, a história da nação. Tenho para mim que a ditadura se entronca, mesmo de maneira tangente, na longa tradição de intolerância e violência gerada entre nós pela Inquisição e pelo escravismo. No tocante às rupturas, cabe observar a descontinuidade entre o golpe de 1964 e a tradição conservadora brasileira. Assim, o AI-5 (em dezembro de 1968) instaurou um padrão autoritário inédito na história nacional.
Na realidade, o golpe de 1964 ocorre na convergência de três crises distintas. Em primeiro lugar, o acirramento da mobilização social, que assume um perfil agudo com as Ligas Camponesas. Em seguida, a legitimidade contestada da posse de [João] Goulart na Presidência e a quebra da hierarquia militar acentuam a desestabilização do governo isolado em Brasília. Enfim, o alinhamento de Cuba no campo soviético traz as fronteiras da Guerra Fria para o interior da América Latina.

Longo período democrático
Uma interpretação mais dinâmica do período ditatorial consiste em dar destaque à persistência do voto anti-autoritário nas eleições toleradas. Apesar das trapaças e da repressão, Guanabara e Minas Gerais escolheram governadores de oposição em 1965, o eleitorado votou maciçamente em branco ou nulo em 1970, carregou seus votos no MDB em 1974, em 1978 e em 1982, manifestou-se em massa na campanha das "Diretas Já!", em 1984, abrindo a via para a vitória da oposição e o colapso do regime, em 1985.
Desde então, malgrado o tropeço da Presidência Collor, solucionado no quadro constitucional, o país -transformado numa sociedade urbanizada que abrange massas crescentes de eleitores- vive o mais longo período de vigência democrática de sua história.
Todavia essa perspectiva longa revela também a continuidade de atrasos e mesmo uma certa regressão cívica. Deve-se notar que a prática da violência e do terror de Estado se definiu como um dos elementos constitutivos da ditadura. Para implementar o "milagre brasileiro", os ministros dos governos autoritários apoiaram o fechamento do Congresso, a suspensão dos direitos civis, a censura de imprensa, a repressão sindical e as mais variadas arbitrariedades.
Em sentido inverso, o movimento democrático sustentou resolutamente o progresso social e as liberdades públicas. Mas persistiu na acomodação diante de certas formas de violência. Assim, para tomar só um exemplo, nenhum dos culpados pelo massacre de Carandiru (outubro de 1992) foi até hoje condenado.
Desse modo, na cultura brasileira estratificada após a ditadura, estabeleceu-se uma dissociação entre os direitos sociais e trabalhistas (direito à moradia, ao trabalho, à saúde pública) e os direitos humanos. Obviamente, os patamares atuais de violência urbana, a criminalidade que atinge com intensidade os mais pobres, sem poupar os mais ricos, contribuem para a aceitação da violência policial que avoca a si a legitimidade da autodefesa.
No final do seminário, num depoimento comovido, Margarida Genevoix que, ao lado de d. Paulo Evaristo Arns, foi uma combatente de primeira hora contra os abusos da ditadura, narrou sua perplexidade e seu desamparo diante dos dizeres de um cartaz levantado numa manifestação recente na periferia de São Paulo: "Abaixo os direitos humanos!".
A perplexidade dessa grande senhora interpela todos nós, interpela a consciência nacional e a democracia brasileira. Comemorar não é apenas celebrar fatos pregressos. Comemorar -memorar coletivamente- é também evocar um passado encoberto pelo tempo ou por trauma da memória. Por isso, comemorar os 40 anos do golpe de 1964 significa pensar o passado para liberar o futuro dos fantasmas que ainda pairam no presente.

Luiz Felipe de Alencastro é professor na Universidade de Paris-Sorbonne. É autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras).


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