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"Oblomov", de Ivan Gontcharov, prefigura a literatura
"sem atmosfera" de autores como Musil e Beckett
A legião da desistência
José Maria Cançado
especial para a Folha
Desde o surgimento, em 1860,
deste romance por várias razões extraordinário (como o fato, por exemplo, de ser um livro
russo no qual praticamente não há neve,
mas um sol tépido quase o tempo todo),
a crítica tem cometido com ele uma justiça e uma injustiça.
A justiça é considerá-lo quase unanimemente como "um dos melhores livros
de todos os tempos". A injustiça é sustentar que se trata de um livro no qual
não acontece nada, o mais "imóvel" de
toda a literatura, o romance do "enfado
universal infinito", como escreveu Otto
Maria Carpeaux (o que não impedia que
o considerasse também uma das maiores obras-primas da literatura).
A injustiça tem origem numa apreciação um tanto voluntarista do drama, no
início exasperante e depois comovente,
que atinge o personagem principal,
Oblomov. Filho, como o foi o próprio
Gontcharov (1812-1891), da classe dos senhores rurais russos, um "barine" (senhor) portanto, o "incomparável, mas
inepto" Oblomov é o tipo metido numa
das mais inquietantes situações romanescas que há: a do herói que é passivo
numa medida que parece configurar um
perfeito caso de infâmia universal.
A vida de Oblomov é um programa de
recusa. É grande a tentação de compará-lo ao seu quase contemporâneo Bartleby,
o escrivão de Herman Melville, que a cada solicitação do seu chefe (se trata de
um funcionário de um escritório privado, e não, como foi Oblomov na juventude, da gigantesca burocracia czarista),
opõe um cândido, mas decidido, "prefiro não fazer". O nova-iorquino Bartleby
é um pequeno grande homem solitário
da recusa, da mínima e escandalosa negatividade, da particularidade desafiadora, do anti-sistema.
Oblomov ao contrário
faz parte, como ele mesmo diz, "de uma legião".
Tanto que o termo que
criou para explicar a sua
abulia -a "oblomovchtina", o oblomovismo- foi
voluptuosamente adotado na Rússia depois da
publicação do romance, designando
quase uma virtuosidade ambígua, um
estado de alma geral e um clima de opinião diante dos impasses da nação russa,
cuja encruzilhada histórica permanecia
"asiaticamente" velada.
A vida de Oblomov, regida pelo criado
Zahar, desde a infância um agregado da
família, e que tem com o patrão uma relação feita de pirraça e de devotamento
absoluto, "trombando" com ele o tempo
todo, mas só até o ponto de não ultrapassarem a relação de servidão desejada pelos dois, é uma enfiada de botas engraxadas e calçadas pelo criado, de desjejuns,
jantares, ceias, de várias sestas por dia, de
indolência, de tarefas adiadas.
Acontece que Oblomov é sim um "barine", mas nem todo "barine" é Oblomov, e é por isso que é uma injustiça afirmar que este é o romance mais "imóvel"
de toda a literatura, no qual nada se passa. Passa-se tudo e vertiginosamente no
coração e no pensamento de Oblomov
(os ecos da intelligentsia dividida entre
ocidentalistas e eslavófilos, todos os matizes do amor humano, como na paixão
pela cantora lírica Olga, a que ele, para
mais amá-la ainda, renuncia, a amizade
com o colega de infância Stoltz, o vitalista
amigo alemão, com quem, por causa de
Olga, tem uma inacreditavelmente bela
relação à la "Jules e Jim", os últimos anos
com Agafia-Matveyevna, uma mulher
do povo, com quem tem um filho, a frugalidade da sua existência ao final).
Tudo se passa no estranho coração "recuado" de Oblomov: só que este configura um desses enigmas sem solução ou
dissolução possível, uma dessas amantíssimas impossibilidades, um desses
mundos sem atmosfera que iriam surgir
depois na literatura do século 20, de Musil a Beckett, e dariam a esta uma das suas
inflexões mais indescartáveis.
Gontcharov (autor também de um romance de formação à la Rússia, "Uma
História Trivial", anterior a "Oblomov",
e, depois deste, de "A Queda", um romance do gênero retrato
de artista) não por nada é
tido como o mais consciencioso, o de mais exigente labor estético (e o
mais vagaroso) dentre os
grandes escritores russos
do século 19: ele conta a
história de Oblomov com
uma espécie de "moralidade da forma".
Cada momento da vida do seu personagem, com seus humores próprios, seus
problemáticos horizontes a cada época,
corresponde a um andamento particular
da prosa (cuja tradução nesta edição é
pateticamente ruim, com um acúmulo
inacreditável de erros gramaticais, de
vírgulas estúpidas, embora se deva dizer
que vale assim mesmo a leitura, tal é indestrutível a grandeza do romance), uma
modulação diferente do estilo, um mobiliário social e afetivo próprio. Este por
exemplo vai das oscilações na barinesca
(depois nem tão senhorial assim) culinária russa ao teor das conversas com os
outros personagens (passivamente crapulosas com os tipos que o exploram, e
incomparáveis com Olga e o Stoltz, o
amigo "Jules e Jim") ou à sua situação
domiciliar em São Petersburgo, no início
num bairro central, depois num subúrbio.
Essa "moralidade da forma" magistralmente praticada por Gontcharov reserva
uma surpresa. Num romance cuja índole
do personagem pareceria condenar tudo
à abjeção final, ela sustenta na última
parte uma serenidade, um esquecimento
não mais abúlico do mundo por parte de
Oblomov, mas tolstoiano, quase discretamente cristão, uma "tomada de pulso"
final pacificada. Como o despojamento
existencial de Liévin talvez em "Ana Karenina", ou do próprio Pedro Bezukov
em "Guerra e Paz", só que, no caso de
Oblomov, algo passivamente sobrevindo. O que não diminui um certo clima de
ventura e pacificação (todos nós gostaríamos de saber que o nova-iorquino
Bartleby encontrou coisa parecida). Não
diminui: antes encontra, aí, a surpresa,
"a calma imperturbável da epopéia", como escreveu o mesmo Carpeaux.
Parece verdade: que essa tomada de
pulso final indique tal "calma imperturbável" em volta de Oblomov (sepultado
num cemitério popular da periferia petersburguesa) revela que não era só um
caso de "oblomovchtina". Outros personagens russos que viriam depois, metidos na ação como os de Górki, por exemplo, se alimentaram também do que havia no coração recuado de Oblomov para
fazer uma aposta pessoal e histórica diferente da dele.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).
Oblomov
554 págs., R$ 49,00
de Ivan Gontcharov. Trad. Juliana Borges. Ed. Germinal (r. Freire Farto, 56, CEP 04343-120, SP,
tel. 0/xx/11/578-0421).
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