São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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"Oblomov", de Ivan Gontcharov, prefigura a literatura "sem atmosfera" de autores como Musil e Beckett

A legião da desistência

José Maria Cançado
especial para a Folha

Desde o surgimento, em 1860, deste romance por várias razões extraordinário (como o fato, por exemplo, de ser um livro russo no qual praticamente não há neve, mas um sol tépido quase o tempo todo), a crítica tem cometido com ele uma justiça e uma injustiça.
A justiça é considerá-lo quase unanimemente como "um dos melhores livros de todos os tempos". A injustiça é sustentar que se trata de um livro no qual não acontece nada, o mais "imóvel" de toda a literatura, o romance do "enfado universal infinito", como escreveu Otto Maria Carpeaux (o que não impedia que o considerasse também uma das maiores obras-primas da literatura).
A injustiça tem origem numa apreciação um tanto voluntarista do drama, no início exasperante e depois comovente, que atinge o personagem principal, Oblomov. Filho, como o foi o próprio Gontcharov (1812-1891), da classe dos senhores rurais russos, um "barine" (senhor) portanto, o "incomparável, mas inepto" Oblomov é o tipo metido numa das mais inquietantes situações romanescas que há: a do herói que é passivo numa medida que parece configurar um perfeito caso de infâmia universal.
A vida de Oblomov é um programa de recusa. É grande a tentação de compará-lo ao seu quase contemporâneo Bartleby, o escrivão de Herman Melville, que a cada solicitação do seu chefe (se trata de um funcionário de um escritório privado, e não, como foi Oblomov na juventude, da gigantesca burocracia czarista), opõe um cândido, mas decidido, "prefiro não fazer". O nova-iorquino Bartleby é um pequeno grande homem solitário da recusa, da mínima e escandalosa negatividade, da particularidade desafiadora, do anti-sistema.
Oblomov ao contrário faz parte, como ele mesmo diz, "de uma legião". Tanto que o termo que criou para explicar a sua abulia -a "oblomovchtina", o oblomovismo- foi voluptuosamente adotado na Rússia depois da publicação do romance, designando quase uma virtuosidade ambígua, um estado de alma geral e um clima de opinião diante dos impasses da nação russa, cuja encruzilhada histórica permanecia "asiaticamente" velada.
A vida de Oblomov, regida pelo criado Zahar, desde a infância um agregado da família, e que tem com o patrão uma relação feita de pirraça e de devotamento absoluto, "trombando" com ele o tempo todo, mas só até o ponto de não ultrapassarem a relação de servidão desejada pelos dois, é uma enfiada de botas engraxadas e calçadas pelo criado, de desjejuns, jantares, ceias, de várias sestas por dia, de indolência, de tarefas adiadas.
Acontece que Oblomov é sim um "barine", mas nem todo "barine" é Oblomov, e é por isso que é uma injustiça afirmar que este é o romance mais "imóvel" de toda a literatura, no qual nada se passa. Passa-se tudo e vertiginosamente no coração e no pensamento de Oblomov (os ecos da intelligentsia dividida entre ocidentalistas e eslavófilos, todos os matizes do amor humano, como na paixão pela cantora lírica Olga, a que ele, para mais amá-la ainda, renuncia, a amizade com o colega de infância Stoltz, o vitalista amigo alemão, com quem, por causa de Olga, tem uma inacreditavelmente bela relação à la "Jules e Jim", os últimos anos com Agafia-Matveyevna, uma mulher do povo, com quem tem um filho, a frugalidade da sua existência ao final).
Tudo se passa no estranho coração "recuado" de Oblomov: só que este configura um desses enigmas sem solução ou dissolução possível, uma dessas amantíssimas impossibilidades, um desses mundos sem atmosfera que iriam surgir depois na literatura do século 20, de Musil a Beckett, e dariam a esta uma das suas inflexões mais indescartáveis.
Gontcharov (autor também de um romance de formação à la Rússia, "Uma História Trivial", anterior a "Oblomov", e, depois deste, de "A Queda", um romance do gênero retrato de artista) não por nada é tido como o mais consciencioso, o de mais exigente labor estético (e o mais vagaroso) dentre os grandes escritores russos do século 19: ele conta a história de Oblomov com uma espécie de "moralidade da forma". Cada momento da vida do seu personagem, com seus humores próprios, seus problemáticos horizontes a cada época, corresponde a um andamento particular da prosa (cuja tradução nesta edição é pateticamente ruim, com um acúmulo inacreditável de erros gramaticais, de vírgulas estúpidas, embora se deva dizer que vale assim mesmo a leitura, tal é indestrutível a grandeza do romance), uma modulação diferente do estilo, um mobiliário social e afetivo próprio. Este por exemplo vai das oscilações na barinesca (depois nem tão senhorial assim) culinária russa ao teor das conversas com os outros personagens (passivamente crapulosas com os tipos que o exploram, e incomparáveis com Olga e o Stoltz, o amigo "Jules e Jim") ou à sua situação domiciliar em São Petersburgo, no início num bairro central, depois num subúrbio.
Essa "moralidade da forma" magistralmente praticada por Gontcharov reserva uma surpresa. Num romance cuja índole do personagem pareceria condenar tudo à abjeção final, ela sustenta na última parte uma serenidade, um esquecimento não mais abúlico do mundo por parte de Oblomov, mas tolstoiano, quase discretamente cristão, uma "tomada de pulso" final pacificada. Como o despojamento existencial de Liévin talvez em "Ana Karenina", ou do próprio Pedro Bezukov em "Guerra e Paz", só que, no caso de Oblomov, algo passivamente sobrevindo. O que não diminui um certo clima de ventura e pacificação (todos nós gostaríamos de saber que o nova-iorquino Bartleby encontrou coisa parecida). Não diminui: antes encontra, aí, a surpresa, "a calma imperturbável da epopéia", como escreveu o mesmo Carpeaux.
Parece verdade: que essa tomada de pulso final indique tal "calma imperturbável" em volta de Oblomov (sepultado num cemitério popular da periferia petersburguesa) revela que não era só um caso de "oblomovchtina". Outros personagens russos que viriam depois, metidos na ação como os de Górki, por exemplo, se alimentaram também do que havia no coração recuado de Oblomov para fazer uma aposta pessoal e histórica diferente da dele.


José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).


Oblomov
554 págs., R$ 49,00
de Ivan Gontcharov. Trad. Juliana Borges. Ed. Germinal (r. Freire Farto, 56, CEP 04343-120, SP, tel. 0/xx/11/578-0421).




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