São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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DNA da diferença

PESQUISA DE ECONOMISTA DO BANCO MUNDIAL COMPARA DESIGUALDADE DE SOCIEDADES DISTANTES, COMO O IMPÉRIO ROMANO NO ANO 14 D.C. E O IMPÉRIO BIZANTINO NO ANO 1000, COM NAÇÕES MODERNAS; PAÍSES LATINO-AMERICANOS SURGEM ENTRE MAIS DESIGUAIS, DESDE SEMPRE

Kimberly White/Reuters
Crianças brincam em carro abandonado em favela de Caracas


ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

E ntre 1872 e 2006, o Brasil aboliu a escravatura, proclamou a República, deixou de ser uma economia basicamente agrária e urbanizou-se. Uma característica de nossa sociedade, porém, permaneceu praticamente inalterada: os altos níveis de desigualdade.
Ainda que seja preciso uma dose extra de cautela para comparar tempos tão distintos, chama a atenção uma coincidência entre um estudo feito pelo economista Branko Milanovic, do Banco Mundial, e os dados da última Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE.
Ao tentar comparar a concentração de renda em sociedades modernas e pré-industriais, Milanovic estimou que os brasileiros que se encontravam entre o 1% mais rico em 1872 respondiam, sozinhos, por 11,2% da renda nacional.
Para 2006, a Pnad registrava percentual quase idêntico: as famílias que estão entre o 1% das mais ricas detêm 11,1% da renda, mesma proporção apropriada pelos 40% mais pobres.
Para muitos historiadores e economistas, comparações como essas nem sequer deveriam ser feitas por causa da imprecisão das estatísticas do passado ou da dificuldade de confrontar sociedades tão diferentes.
Mesmo assim, foi essa a proposta de Milanovic, em parceria com os economistas Peter Lindert e Jeffrey Williamson, no trabalho "Measuring Ancient Inequality" [Medindo a Desigualdade Antiga], divulgado em outubro do ano passado pelo National Bureau of Economic Research [Escritório Nacional de Pesquisa Econômica], um centro de pesquisas privado com escritórios em Nova York e na Califórnia.
A maior ousadia do estudo -e, por isso mesmo, também o ponto mais criticado por especialistas ouvidos pela Folha- é tentar medir a desigualdade em sociedades pré-industriais por meio do mesmo método utilizado hoje: o índice de Gini.
Esse indicador mede a concentração de renda de uma economia e classifica os países de acordo com uma escala que vai de 0 a 100 (ou de 0 a 1, dependendo do instituto), sendo 100 o maior nível possível de desigualdade.
O trabalho chega a confrontar indicadores de sociedades tão distantes quanto o Império Romano no ano 14 d.C. ou o Império Bizantino no ano 1000 com nações modernas.
No caso brasileiro, o estudo estimou que a desigualdade medida pelo índice de Gini teria aumentado de 43,3 pontos em 1872 para 58,8 em 2002.

Origens
Milanovic alerta que os cálculos não devem ser considerados medidas precisas do nível de desigualdade do passado, mas, para o caso brasileiro, há uma conclusão em seus trabalhos que é corroborada por diversas fontes históricas: o Brasil, bem como as demais nações latino-americanas, foi, desde a origem, uma sociedade extremamente desigual.
Esta proposição é retomada pelo economista em outro estudo, com Rafael Muñoz de Bustillo, da Universidade de Salamanca- em que ele analisa as causas históricas da desigualdade latino-americana.
Os dois sustentam que o padrão de desigualdade da região é um típico caso do que economistas chamam de "dependência do ponto de partida", teoria segundo a qual "as circunstâncias econômicas de um país no passado não só afetam os níveis de produção de então, como também seu impacto tende a permanecer ao longo do tempo, afetando sua evolução futura".
Em outras palavras, o Brasil e outras nações latino-americanas não conseguiram ainda -ou não quiseram- se desprender desse padrão de organização econômica extremamente concentrador.
"O alto nível de desigualdade derivado do modelo de colonização que imperou na América Latina se perpetuou no tempo mediante a consolidação de elites poucos interessadas na criação de políticas igualitárias que poderiam afetar negativamente seus interesses de classe", defendem os autores.
O historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, avalia como frágil o método utilizado por Milanovic para estimar a desigualdade de renda em sociedades antigas.
Ele, no entanto, já estudou, no livro "O Arcaísmo como Projeto" (com João Fragoso), a concentração de riquezas no Brasil por outras fontes históricas -como inventários post-mortem e escrituras de compra e venda nos séculos 18 e 19- e chegou a conclusões semelhantes a respeito da persistência da desigualdade. "Nossa hipótese é a de que as elites têm se aproveitado de diferentes conjunturas para reiterar a sua diferença em relação aos estratos inferiores e, assim, reiterar o seu lugar social", diz Florentino.
Para ele, duas condições históricas permitiram que, no Brasil, os níveis de desigualdade, que ele considera imensos, se mantivessem estáveis.
A primeira é que as elites conseguiam migrar de uma atividade econômica para outra. "Embora monopolizassem as atividades mercantis, mais lucrativas, as elites, em determinado momento, se reconvertiam em elites agrárias."
A outra razão é que esse padrão de desigualdade era aceito não só pelas elites, mas também pelo restante da população. "Sempre houve um imenso grau de mobilidade social, fazendo com que a possibilidade ou esperança de ascender comprometesse a todos, ricos e pobres, com o status quo."
A manutenção da riqueza nas mãos de poucos no Brasil seguiu um padrão muito parecido com o dos demais países da América Latina. Hoje, o principal fator a explicar a concentração de renda na região -a mais desigual do mundo- não é o fato de existirem países muito ricos ao lado de muito pobres, mas a constatação de que quase todas as nações latino-americanas são, internamente, bastante desiguais. Esse padrão se mantém mesmo entre os países da região que conseguiram alcançar maiores níveis de desenvolvimento humano.

Instituições exploradoras
O último relatório da ONU sobre o tema mostra que no seleto grupo de 70 nações com maior desenvolvimento humano -do qual o Brasil passou a fazer parte no ano passado- os cinco maiores índices de Gini são justamente de países latino-americanos: Brasil (57 pontos na escala de 0 a 100), Panamá (56), Chile (55), Argentina (51) e Costa Rica (50).
Uma das explicações comuns sobre as causas dessa desigualdade é a introdução, pelos colonizadores ibéricos, de instituições altamente exploradoras. Milanovic cita as mitas e encomiendas na América espanhola, sistema em que as populações indígenas eram obrigadas a trabalhar para destinar parte da produção aos colonizadores.
O economista, porém, diz que essa explicação é insuficiente. Para ele, a organização das sociedades indígenas antes da chegada dos europeus também é um fator a ser considerado. "Algumas sociedades indígenas eram extremamente hierarquizadas e desiguais. Os colonizadores podem ter se aproveitado das instituições que encontraram e que eram convenientes para seus objetivos."
No estudo em que analisam as razões históricas para esse padrão comum de desigualdade, Milanovic e Bustillo destacam também que o acesso à terra, ao ensino, o direito ao voto e o gasto social quase sempre foram componentes que, em vez de ajudar a desconcentrar a riqueza, foram usados para garantir a um seleto grupo "vantagens econômicas não desfrutadas pelo resto da população".
O trabalho mostra, por exemplo, que, enquanto Estados Unidos e Canadá conseguiram tornar mais democrático o acesso à terra já no final do século 19, os países latino-americanos continuavam mantendo as propriedades rurais nas mãos de poucos, seguindo uma tradição iniciada ainda nos tempos da colonização de oferecer grandes concessões de terras a membros da elite.
Nos EUA, em 1900, 75% dos chefes de família eram proprietários de terra. No México, em 1910, a proporção era de só 2,4%. Na Argentina, variava de 6,6% a 35% entre as regiões.
O trabalho não traz estatísticas sobre a questão agrária, mas a aprovação da Lei de Terras (1850) mostra que o Brasil seguia o mesmo padrão dos vizinhos e dificultava o acesso de pequenos proprietários à terra.
Além de concentrar propriedades nas mãos de poucos, Milanovic e Bustillo lembram que a estratégia de manutenção da riqueza das elites latino-americanas passava ainda pela restrição do direito ao voto, já que "as regras de votação mostravam a persistência de requisitos de riqueza e alfabetização na região até o início do século 20".
No Brasil, o direito de voto só foi estendido a todos os analfabetos em 1985.
Outro ponto citado pelos autores na estratégia de manutenção dos privilégios foi o baixo investimento no sistema de educação pública. Eles argumentam que o atraso educacional da América Latina, especialmente quando comparado com os EUA, não pode ser creditado ao menor nível de desenvolvimento econômico, já que a significativa diferença no PIB per capita entre os EUA e a região só se produz a partir do início do século 20. "No século 19, muitos países da região já haviam alcançado níveis de renda suficientes para dispor dos recursos necessários para oferecer educação básica generalizada para sua população."
No Brasil, por exemplo, a análise das taxas de analfabetismo em 2000 mostra que o país ainda não chegou sequer aos patamares dos Estados Unidos de 1940.
Nesses 60 anos, o país reduziu a proporção de não alfabetizados de 56,8% para 12,1%. Os EUA, porém, já apresentavam em 1940 uma taxa de apenas 3% de analfabetos. O percentual no Brasil em 2000 era superior até mesmo à taxa registrada apenas para a população não-branca norte-americana na década de 40: 11,5%.
A falta de investimento na educação pública básica levou muitos dos países a criar um sistema de educação privada que até hoje atende às elites desses países.
Como sempre houve uma distribuição desigual da renda, esse sistema não era acessível à maioria da população. Ao mesmo tempo, a existência de uma rede particular exclusiva aos mais ricos desestimulava essa população a defender um melhor financiamento da educação pública, já que seus filhos não seriam beneficiados.
A única exceção que os autores fazem diz respeito ao ensino superior. Mas, para eles, essa singularidade fazia todo sentido em sociedades altamente desiguais: "Os países latino-americanos com sistemas de educação muito deficientes contavam com boas instituições públicas de ensino superior porque essas eram fundamentalmente utilizadas pelos filhos das classes dirigentes".
Até mesmo o sistema de seguridade social, que na Europa é um fator que contribui para diminuir a desigualdade, atua, nos países latino-americanos, em sentido inverso.
Milanovic e Bustillo mostram que o gasto social dos países da região hoje é compatível -e em alguns casos até superior- ao de países europeus quando se leva em conta o PIB per capita. Só que os efeitos desse investimento são bastante distintos. "A reduzida capacidade redistributiva do gasto social na América Latina chama a atenção para a existência do que alguns analistas denominaram Estados de bem-estar truncado, onde as classes economicamente mais favorecidas foram as que durante muito tempo monopolizaram uma parte importante das prestações sociais, enquanto uma maioria da população permanecia à margem da economia formal", dizem os autores.
Lena Lavinas, economista do Instituto de Economia da UFRJ e autora de diversos estudos sobre o gasto social, afirma que uma diferença fundamental entre o sistema brasileiro e o europeu é que, aqui, a maior parte dos gastos são com transferência direta de renda.
"Do conjunto de gastos sociais brasileiros, quase 75% são transferências monetárias por meio de aposentadorias, programas compensatórios ou benefícios como o BPC (Benefício de Prestação Continuada). No caso europeu, a maior parte do gasto é com a provisão de serviços públicos universais, como educação e saúde", diz ela.
Para Lavinas, a maior preocupação da sociedade com a desigualdade e a recente diminuição no Gini brasileiro (desde 2001, o indicador apresenta queda lenta, mas constante) ainda não são suficientes para indicar que, finalmente, estamos rompendo nosso padrão original de desigualdade.
"As origens são importantes para entender as trajetórias dos países. Nações como Dinamarca e Suécia sempre tiveram compromisso com a eqüidade. No Brasil e na América Latina, houve avanços na percepção da sociedade, mas ainda não conseguimos chegar a um ponto de ruptura com nossas origens desiguais."


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