São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Nosso MASP

Renato Mezan e José Arthur Giannotti discutem a crise no museu após roubo dos quadros de Pablo Picasso e Candido Portinari

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

F oi enorme meu alívio ao tomar conhecimento de que as telas roubadas do Masp tinham sido recuperadas. Para mim era como se peças de minha mobília cultural tivessem sido roubadas. A perda financeira pouco significava, mas cada quadro do acervo tem para mim e para muitos valor muito especial; nós que iniciamos nossa vida cultural nos anos 50, que assistimos à inauguração do museu na rua Sete de Abril, que freqüentávamos o barzinho, que aprendemos a ver pintura no olho da tela, que lá abrimos nossos horizontes ao cinema.
Além da escola, minha turma tinha três pontos de apoio: a biblioteca infantil na rua Major Sertório, a biblioteca Mário de Andrade e a discoteca da rua Florêncio de Abreu. Girávamos em torno deles, cruzando a cidade a pé, embebidos por ela, esperando dar a ela o melhor de nossos pensamentos.
Surgiu então o Masp. Pela primeira vez vimos se formando um caleidoscópio de telas, cada qual com sua peculiaridade espantosa, mas concretizando uma história da arte que somente conhecíamos por livros. As instituições são como trilhas na floresta, se não forem constantemente pisadas e percorridas retornam ao estado natural. Foi isso que aconteceu com as nossas fontes urbanas.
A discoteca ficou obsoleta, a biblioteca infantil se espalhou pela cidade e perdeu empuxo, a biblioteca Mário de Andrade entrou em total decadência a ponto de suas instalações desmoronarem; passa agora por uma reforma profunda. E o Masp?

Novas percepções
O roubo dos quadros fez reavivar minha memória. Lembro-me de Bardi mostrando-nos o quadro de Picasso. Positivamente este não contava entre seus pintores preferidos, mas um retrato da fase azul era compatível com o espírito geral da coleção que estava formando. Bardi era o oposto de sua mulher Lina.
Às vezes chegava ao museu abraçando um prato florentino com o maior carinho, mas recebia de Lina um olhar de descaso. Ela só se encantava com obras modernas, ele só tinha olho para peças antigas. O museu era ponto de encontro e cadinho de novas percepções: ali víamos e estudávamos. Uma vez Bardi nos ofereceu um curso sobre história da arte, obviamente certo de que iria encontrar um grupo seleto de bugres ignorantes. Foi nossa vez de lhe dar o troco.
No final do curso cada um de nós deveria dissertar sobre um período escolhido no momento. Fui obrigado a falar sobre o século 1º em Roma e não me saí bem da empreitada, pois esse período até hoje não me fascina. Mas ainda hoje vejo Radhá Abramo contando a história de uma grande pedra que, rolando, ia selecionando as obras de arte de que lhe importava falar.
Depois descobrimos a intenção do diretor: estava escolhendo assistentes. Foi assim que Jorge Wilheim consolidou seu emprego ali. Até eu fui sondado, mas nada me desviaria de minha obsessão pela filosofia. Mesmo quando foi transferido para a avenida Paulista ainda nos fazia história. Veio a ocupar o terreno de um antigo Trianon, de onde contemplávamos o crescimento de São Paulo; era nos seus salões que comemorávamos nossas formaturas. Foi destruído para dar lugar à primeira Bienal. Projeto arquitetônico de Luiz Saia, naquela época diretor do Patrimônio Histórico de São Paulo.
Era um prédio quadradão, o chão de ardósia -enorme novidade no momento- tendo na fachada umas colunas de amianto. No alto de cada uma havia uma emenda, sagrada para Saia por causa de seu despojamento, mas que foi recoberta por uma faixa de fios amarelos, segundo uma recomendação de Ciccillo Matarazzo, presidente da Bienal. Obviamente Saia se retirou do projeto batendo os pés. Eles faziam acontecer.
Pronto o lindo prédio projetado por Lina, veio a surpresa maior. Como cada quadro ficava exposto num suporte de vidro fixado numa barra de concreto posta no chão, todos eles se davam para nós ao mesmo tempo. Era como se o museu imaginário de Malraux se apresentasse, abarcando todos eles numa visão panorâmica, onde a conexão plástica sobrepujasse as relações temporais.
Por certo uma concepção ousada e que nos fazia pensar. Mas sempre preferi manter uma relação íntima com cada quadro, o que era quase impossível na sala de exposição onde uma tela se encavalava noutra. Essas historinhas eu conto para mostrar como o museu é nosso. Faz parte de nossa história, de nossas vidas. Ora, a falta de projeto cultural do conselho deliberativo do Museu de Arte de São Paulo e o desleixo que facilitou o roubo das duas peças mostram claramente como o museu foi transformado num depósito de coisas velhas.
Reconheço os enormes obstáculos financeiros que as últimas diretorias tiveram que vencer para manter de pé a instituição. Porém o maior problema não está aí. Digamos francamente: São Paulo é uma cidade relativamente rica, tem recursos para manter um museu de arte de primeira linha.
É possível mobilizá-los se uma política cultural lhe for oferecida. O museu não é apenas nosso, mas também nós somos esse museu. Por isso não vejo outra solução para a atual crise: que a sociedade civil tome conta dele, substitua uma instituição formada por bons amigos por outra cujas políticas sejam transparentes.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da Universidade de São Paulo e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!


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