São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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Ponto de fuga

Apoteose dos gatos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Tanta coisa neles. Uma certa maneira de olhar, de abaixar a cabeça. O jeito de se acomodar. A pelagem lustrosa, preta, branca ou colorida. Uma silenciosa vida interior. São os gatos de Steinlen [1859-1923], célebres, sobretudo o do cartaz que ele criou para o cabaré "Le Chat Noir" (O Gato Preto), em 1896, grande época da boemia artística de Montmartre. Steinlen é conhecido também por suas ilustrações destinadas a jornais satíricos, folhas ácidas, críticas, politicamente à esquerda. O que se sabe menos é que ele foi, além de desenhista, um formidável pintor.
O pequeno e delicioso museu de Montmartre, em Paris, organizou uma exposição sobre o artista. É um choque. Algumas telas são grandes obras-primas, como a que mostra Louise Michel, figura lendária do movimento operário e anarquista, em forma de alegoria, caída diante de uma bandeira vermelha, na repressão à Comuna de Paris. A matéria é generosa, a pincelada é larga. Há uma espantosa estratégia das cores nessa arte segura, que encerra cruzamentos estilísticos: o contorno sinuoso dos tempos do art nouveau; a força plástica e sintética de Daumier por vezes; a monocromia misteriosa de Carrière em outras.
Sente-se que o pintor não tem pretensões à seriedade de uma "obra elevada". Ele faz, simplesmente, e de modo admirável. Põe em cena homens cansados pelo trabalho, mulheres exploradas. Capta os oprimidos no que concentram de vulnerável e frágil. E ama os gatos no que demonstram de misteriosamente livre. Um grande quadro, três metros de comprimento, reúne uma extraordinária multidão de bichanos, sob a luz azul da noite, dirigindo-se para a lua, no topo da colina. O título é: "Apoteose de Gatos em Montmartre".

Labirinto
Tate Modern, o centro principal de arte contemporânea em Londres, é solene. A galeria foi instalada numa antiga usina elétrica construída por sir Gilles Robert Scott, arquiteto que, além de muitas igrejas e alguns edifícios industriais, criou as maravilhosas cabines telefônicas vermelhas da cidade. A inauguração se deu no ano 2000, juntamente com tantos outros projetos ingleses para o milênio.
Há um enorme eixo vazio no centro do edifício, altíssimo, longuíssimo, que intimida bastante e assusta um pouco. A sensação não é exatamente acolhedora nem festiva; paira no ar uma certa convicção de que a arte contemporânea é séria, austera, inóspita. A apresentação atual das coleções permanentes se faz num modo curiosamente "arcaico". Segue a velha classificação dos gêneros: nu, paisagem, natureza-morta e pintura de história. Tudo começa com os velhos modernos: Cézanne, Matisse, Monet, para chegar a Beuys, Mathew Barney, Chris Ofili ou Bruce Nauman.
Como se não houvesse ruptura na continuidade, como se esses gêneros dissessem ainda alguma coisa ao mundo contemporâneo da arte. Mais: como se, por exemplo, Cézanne garantisse o caráter artístico da pop art ou dos resíduos industriais recolhidos por Mark Dion. A seqüência cronológica afirma o princípio de continuidade histórica e a convicção da descendência.

Vórtice
Formidável exposição, no Museu do Louvre, em Paris: "Primaticcio, mestre de Fontainebleau". Quando o rei Francisco 1º da França decide importar o renascimento italiano, faz vir artistas da península, Leonardo da Vinci, por exemplo, que se torna "primeiro pintor, engenheiro e arquiteto do rei" e morre na cidade de Amboise, onde está enterrado.
Mais tarde vem Primaticcio.

Oco
A exposição Primaticcio no Louvre gira em torno de um vazio, porque a maioria de suas criações importantes foi destruída nos acasos da história. Mas, por meio de desenhos, gravuras, cópias, réplicas, o espectador consegue intuir o que falta. É uma proeza de museografia. Entre as poucas obras do mestre que se salvaram, está "Penélope e Ulisses", emprestada pelo museu de Toledo, Ohio (EUA). Ela associa monumentalidade à elegância estranha, contorcida, desse renascimento que se transformou em maneirismo


Jorge Coli é historiador da arte.

e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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