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Ponto de fuga
Apoteose dos gatos
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Tanta coisa neles. Uma certa maneira
de olhar, de abaixar a cabeça. O jeito
de se acomodar. A pelagem lustrosa,
preta, branca ou colorida. Uma silenciosa vida interior. São os gatos de Steinlen [1859-1923], célebres, sobretudo o do
cartaz que ele criou para o cabaré "Le Chat
Noir" (O Gato Preto), em 1896, grande época da boemia artística de Montmartre. Steinlen é conhecido também por suas ilustrações destinadas a jornais satíricos, folhas
ácidas, críticas, politicamente à esquerda. O
que se sabe menos é que ele foi, além de desenhista, um formidável pintor.
O pequeno e delicioso museu de Montmartre, em Paris, organizou uma exposição
sobre o artista. É um choque. Algumas telas
são grandes obras-primas, como a que
mostra Louise Michel, figura lendária do
movimento operário e anarquista, em forma de alegoria, caída diante de uma bandeira vermelha, na repressão à Comuna de
Paris. A matéria é generosa, a pincelada é
larga. Há uma espantosa estratégia das cores nessa arte segura, que encerra cruzamentos estilísticos: o contorno sinuoso dos
tempos do art nouveau; a força plástica e
sintética de Daumier por vezes; a monocromia misteriosa de Carrière em outras.
Sente-se que o pintor não tem pretensões
à seriedade de uma "obra elevada". Ele faz,
simplesmente, e de modo admirável. Põe
em cena homens cansados pelo trabalho,
mulheres exploradas. Capta os oprimidos
no que concentram de vulnerável e frágil. E
ama os gatos no que demonstram de misteriosamente livre. Um grande quadro, três
metros de comprimento, reúne uma extraordinária multidão de bichanos, sob a
luz azul da noite, dirigindo-se para a lua, no
topo da colina. O título é: "Apoteose de Gatos em Montmartre".
Labirinto
Tate Modern, o centro principal de arte
contemporânea em Londres, é solene. A
galeria foi instalada numa antiga usina elétrica construída por sir Gilles Robert Scott,
arquiteto que, além de muitas igrejas e alguns edifícios industriais, criou as maravilhosas cabines telefônicas vermelhas da cidade. A inauguração se deu no ano 2000,
juntamente com tantos outros projetos ingleses para o milênio.
Há um enorme eixo vazio no centro do
edifício, altíssimo, longuíssimo, que intimida bastante e assusta um pouco. A sensação
não é exatamente acolhedora nem festiva;
paira no ar uma certa convicção de que a
arte contemporânea é séria, austera, inóspita. A apresentação atual das coleções permanentes se faz num modo curiosamente
"arcaico". Segue a velha classificação dos
gêneros: nu, paisagem, natureza-morta e
pintura de história. Tudo começa com os
velhos modernos: Cézanne, Matisse, Monet, para chegar a Beuys, Mathew Barney,
Chris Ofili ou Bruce Nauman.
Como se não houvesse ruptura na continuidade, como se esses gêneros dissessem
ainda alguma coisa ao mundo contemporâneo da arte. Mais: como se, por exemplo,
Cézanne garantisse o caráter artístico da
pop art ou dos resíduos industriais recolhidos por Mark Dion. A seqüência cronológica afirma o princípio de continuidade histórica e a convicção da descendência.
Vórtice
Formidável exposição, no Museu do
Louvre, em Paris: "Primaticcio, mestre de
Fontainebleau". Quando o rei Francisco 1º
da França decide importar o renascimento
italiano, faz vir artistas da península, Leonardo da Vinci, por exemplo, que se torna
"primeiro pintor, engenheiro e arquiteto
do rei" e morre na cidade de Amboise, onde está enterrado.
Mais tarde vem Primaticcio.
Oco
A exposição Primaticcio no Louvre gira
em torno de um vazio, porque a maioria de
suas criações importantes foi destruída nos
acasos da história. Mas, por meio de desenhos, gravuras, cópias, réplicas, o espectador consegue intuir o que falta. É uma
proeza de museografia. Entre as poucas
obras do mestre que se salvaram, está "Penélope e Ulisses", emprestada pelo museu
de Toledo, Ohio (EUA). Ela associa monumentalidade à elegância estranha, contorcida, desse renascimento que se transformou em maneirismo
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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