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Aclamado por Calvino e Nabokov, o escocês Robert Louis Stevenson ganha uma biografia penetrante, que esclarece o método criativo e inicia a reavaliação crítica do autor de "A Ilha do Tesouro" e "O Médico e o Monstro"
Vidas às avessas
MARK BOSTRIDGE
O subtítulo da edição norte-americana da excelente
nova biografia de Robert
Louis Stevenson por Claire
Harman, "Eu e o Outro Sujeito", expressa de maneira muito mais apropriada do que sua congênere britânica a dualidade presente em tantos
textos de Stevenson assim como as
diversas personalidades que para alguns contemporâneos pareciam
coexistir na frágil moldura do escritor escocês.
Sidney Colvin, o professor de arte
que talvez tenha sido o amigo mais
íntimo de Stevenson, certa vez escreveu que ele podia "lhe mostrar durante uma única tarde todas as idades e a metade das diferentes personalidades do homem, o frescor intenso de uma criança, a aparência
ardente e os sonhos aventureiros de
um menino, a coragem sólida do homem, a ternura rápida e simpática
de uma mulher".
E, num soneto de outro amigo menos fiel, W.E. Henley, há um reconhecimento semelhante da qualidade caleidoscópica da personalidade
de Stevenson: "Um pouco de Ariel,
apenas um laivo de Puck/ Muito de
Antônio, de Hamlet quase tudo/ E
algo do Catequista Menor".
Stevenson comprimiu várias vidas
em sua breve duração de 44 anos:
como um engenheiro em Edimburgo, seguindo a tradição familiar de
construir faróis, como estudante
lendo para o bar, com sua boemia de
cabelos longos e paletós de veludo
que traía um pouco a seriedade da
profissão, e depois como escritor,
não apenas de algumas das histórias
mais populares já escritas mas de
uma versatilidade raramente igualada em seu tempo ou depois.
Glamour byroniano
Finalmente, seu exílio auto-imposto nos mares do Sul, em sua plantação de baunilha em Samoa, num esforço para conter o declínio de sua
saúde (ele começara a cuspir sangue
aos 30 e estava perto da morte), o revestiu de um glamour que atingiu
proporções quase byronianas entre
os nativos e os leitores em seu país.
Na década de 1870, quando seu
trabalho começou a aparecer em periódicos, os amigos de Stevenson se
perguntavam se ele se sairia bem como ensaísta, dramaturgo, poeta ou
romancista histórico. Na verdade ele
produziu centenas de trabalhos em
todos esses gêneros -e começou
muitos outros, que nunca concluiu-, mas atingiu o sucesso mundial com "O Médico e o Monstro - O
Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr.
Hyde", publicado em 1886, quando
Stevenson tinha 30 e poucos anos.
Como Harman salienta, esse é um
livro, assim como outra obra célebre
de Stevenson, "A Ilha do Tesouro",
tão incrustado na cultura popular,
sobretudo nas diversas adaptações
para o cinema e a televisão, que quase não existe como obra literária.
Mas sua análise do livro nos lembra as complexidades centrais da
sua gestação (a idéia original veio de
um sonho de Stevenson), sua recepção e avaliação crítica.
"Jekyll e Hyde", tão cheio de significados sexuais, é claramente uma
exploração da "duplicidade". Mas a
história trata de práticas homossexuais ou heterossexuais não mencionáveis, e como exatamente ela
afeta a "duplicidade" do próprio Stevenson como homem de aspecto
afeminado?
O livro tornou-se ainda mais sensacional depois dos crimes de Jack, o
Estripador, dois anos após sua publicação, quando uma versão teatral
de "Jekyll e Hyde" foi retirada do
Lyceum como um gesto ao gosto
público.
Claire Harman apropriadamente
coloca a escrita no centro de sua biografia de Stevenson, em contraste
com biógrafos anteriores (remontando a Graham Balfour, em 1901,
atacado odiosamente por Henley
por ter produzido um "serafim de
chocolate" na biografia autorizada),
os quais permitiram que a viva personalidade de Stevenson obscurecesse o respeito adequado por sua
obra e o tratamento dado a ela. Harman tece habilmente uma compreensão dos empréstimos literários
de Stevenson, desde sua utilização
do dialeto escocês até seu interesse
por novos avanços científicos, em
uma narrativa lindamente moldada.
Enteado aproveitador
Mas ela também tem uma apreciação benevolente de Stevenson. Stevenson nunca foi retratado com tanta diligência e cuidado, e parte da habilidade de Harman está em sua capacidade de comparar o teor de seus
comentários com citações das cartas
de Stevenson.
Seus retratos dos mais próximos e
queridos de Stevenson também são
insuperáveis. A pequena e formidável Fanny Osbourne, que se casou
com Stevenson em San Francisco
em 1880, aparece como apenas levemente psicótica enquanto ostenta
seu estranho tipo de sexualidade.
Seu filho Lloyd, enteado de Stevenson, é muito bem pintado como um
aproveitador sem talento: usa o nome de Stevenson em uma dúbia "colaboração" numa novela cômica e,
depois, após a morte de Stevenson,
vive de seu rico patrimônio, desfrutando de carros velozes, cruzeiros e a
Côte d'Azur.
A reputação literária de Stevenson
sofreu devido a sua popularidade e
sua tendência a ser considerado um
mero autor de histórias para meninos. No entanto nunca lhe faltaram
defensores: Graham Greene, Italo
Calvino, Nabokov e Borges o saudaram como seu mestre.
Esta biografia, penetrante e simpática, é a companheira perfeita para a
edição Yale em oito volumes das cartas de Stevenson, publicada há dez
anos. Ambos terão sua participação
na reavaliação crítica de Stevenson
que está por vir.
Mark Bostridge é autor de "Lives For Sale"
(Vidas à Venda, ed. Continuum International) e "Letters from a Lost Generation" (Cartas de uma Geração Perdida, Northeastern
University Press). Este texto foi publicado no
"The Independent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Robert Louis Stevenson
- A Biography
528 págs., 25 libras (R$ 122)
de Claire Harman. Ed. HarperCollins
(Reino Unido).
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados,
em SP, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) ou
no site www.amazon.co.uk
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