São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Aclamado por Calvino e Nabokov, o escocês Robert Louis Stevenson ganha uma biografia penetrante, que esclarece o método criativo e inicia a reavaliação crítica do autor de "A Ilha do Tesouro" e "O Médico e o Monstro"

Vidas às avessas

MARK BOSTRIDGE
O subtítulo da edição norte-americana da excelente nova biografia de Robert Louis Stevenson por Claire Harman, "Eu e o Outro Sujeito", expressa de maneira muito mais apropriada do que sua congênere britânica a dualidade presente em tantos textos de Stevenson assim como as diversas personalidades que para alguns contemporâneos pareciam coexistir na frágil moldura do escritor escocês.
Sidney Colvin, o professor de arte que talvez tenha sido o amigo mais íntimo de Stevenson, certa vez escreveu que ele podia "lhe mostrar durante uma única tarde todas as idades e a metade das diferentes personalidades do homem, o frescor intenso de uma criança, a aparência ardente e os sonhos aventureiros de um menino, a coragem sólida do homem, a ternura rápida e simpática de uma mulher".
E, num soneto de outro amigo menos fiel, W.E. Henley, há um reconhecimento semelhante da qualidade caleidoscópica da personalidade de Stevenson: "Um pouco de Ariel, apenas um laivo de Puck/ Muito de Antônio, de Hamlet quase tudo/ E algo do Catequista Menor".
Stevenson comprimiu várias vidas em sua breve duração de 44 anos: como um engenheiro em Edimburgo, seguindo a tradição familiar de construir faróis, como estudante lendo para o bar, com sua boemia de cabelos longos e paletós de veludo que traía um pouco a seriedade da profissão, e depois como escritor, não apenas de algumas das histórias mais populares já escritas mas de uma versatilidade raramente igualada em seu tempo ou depois.

Glamour byroniano
Finalmente, seu exílio auto-imposto nos mares do Sul, em sua plantação de baunilha em Samoa, num esforço para conter o declínio de sua saúde (ele começara a cuspir sangue aos 30 e estava perto da morte), o revestiu de um glamour que atingiu proporções quase byronianas entre os nativos e os leitores em seu país.
Na década de 1870, quando seu trabalho começou a aparecer em periódicos, os amigos de Stevenson se perguntavam se ele se sairia bem como ensaísta, dramaturgo, poeta ou romancista histórico. Na verdade ele produziu centenas de trabalhos em todos esses gêneros -e começou muitos outros, que nunca concluiu-, mas atingiu o sucesso mundial com "O Médico e o Monstro - O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde", publicado em 1886, quando Stevenson tinha 30 e poucos anos.
Como Harman salienta, esse é um livro, assim como outra obra célebre de Stevenson, "A Ilha do Tesouro", tão incrustado na cultura popular, sobretudo nas diversas adaptações para o cinema e a televisão, que quase não existe como obra literária.
Mas sua análise do livro nos lembra as complexidades centrais da sua gestação (a idéia original veio de um sonho de Stevenson), sua recepção e avaliação crítica.
"Jekyll e Hyde", tão cheio de significados sexuais, é claramente uma exploração da "duplicidade". Mas a história trata de práticas homossexuais ou heterossexuais não mencionáveis, e como exatamente ela afeta a "duplicidade" do próprio Stevenson como homem de aspecto afeminado?
O livro tornou-se ainda mais sensacional depois dos crimes de Jack, o Estripador, dois anos após sua publicação, quando uma versão teatral de "Jekyll e Hyde" foi retirada do Lyceum como um gesto ao gosto público.
Claire Harman apropriadamente coloca a escrita no centro de sua biografia de Stevenson, em contraste com biógrafos anteriores (remontando a Graham Balfour, em 1901, atacado odiosamente por Henley por ter produzido um "serafim de chocolate" na biografia autorizada), os quais permitiram que a viva personalidade de Stevenson obscurecesse o respeito adequado por sua obra e o tratamento dado a ela. Harman tece habilmente uma compreensão dos empréstimos literários de Stevenson, desde sua utilização do dialeto escocês até seu interesse por novos avanços científicos, em uma narrativa lindamente moldada.

Enteado aproveitador
Mas ela também tem uma apreciação benevolente de Stevenson. Stevenson nunca foi retratado com tanta diligência e cuidado, e parte da habilidade de Harman está em sua capacidade de comparar o teor de seus comentários com citações das cartas de Stevenson.
Seus retratos dos mais próximos e queridos de Stevenson também são insuperáveis. A pequena e formidável Fanny Osbourne, que se casou com Stevenson em San Francisco em 1880, aparece como apenas levemente psicótica enquanto ostenta seu estranho tipo de sexualidade.
Seu filho Lloyd, enteado de Stevenson, é muito bem pintado como um aproveitador sem talento: usa o nome de Stevenson em uma dúbia "colaboração" numa novela cômica e, depois, após a morte de Stevenson, vive de seu rico patrimônio, desfrutando de carros velozes, cruzeiros e a Côte d'Azur.
A reputação literária de Stevenson sofreu devido a sua popularidade e sua tendência a ser considerado um mero autor de histórias para meninos. No entanto nunca lhe faltaram defensores: Graham Greene, Italo Calvino, Nabokov e Borges o saudaram como seu mestre.
Esta biografia, penetrante e simpática, é a companheira perfeita para a edição Yale em oito volumes das cartas de Stevenson, publicada há dez anos. Ambos terão sua participação na reavaliação crítica de Stevenson que está por vir.


Mark Bostridge é autor de "Lives For Sale" (Vidas à Venda, ed. Continuum International) e "Letters from a Lost Generation" (Cartas de uma Geração Perdida, Northeastern University Press). Este texto foi publicado no "The Independent".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.



Robert Louis Stevenson
- A Biography

528 págs., 25 libras (R$ 122) de Claire Harman. Ed. HarperCollins (Reino Unido).


Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) ou no site www.amazon.co.uk


Texto Anterior: De olhos bem fechados
Próximo Texto: Os best-sellers da colônia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.