São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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Livro que relata o envolvimento de empresas químicas em casos de empregados intoxicados por metais pesados provoca embate sem precedentes nos tribunais dos EUA, opondo advogados e historiadores

Chumbo grosso

JON WIENER

Vinte das maiores empresas químicas dos Estados Unidos lançaram uma campanha para desacreditar dois historiadores que estudaram os esforços da indústria química para ocultar as ligações entre seus produtos e o câncer.
Numa iniciativa sem precedentes, advogados da Dow, Monsanto, Goodrich, Goodyear, Union Carbide e outras companhias intimaram para depor em justiça cinco acadêmicos que recomendaram que a Editora da Universidade da Califórnia publicasse "Deceit and Denial -The Deadly Politics of Industrial Pollution" [Logro e Desmentido - A Política Mortífera da Poluição Industrial, University of California Press, 428 págs., US$ 19,95 -R$ 52], de Gerald Markowitz e David Rosner.
Além disso, as empresas recrutaram um historiador para, em nome delas, argumentar que Markowitz e Rosner agiram de maneira antiética. Markowitz é professor de história no Cuny Graduate Center [Nova York], e Rosner é professor de história e saúde pública e diretor do Centro de História e Ética da Saúde Pública na Escola de Saúde Pública da Universidade Columbia [Nova York].
As razões que levaram as empresas a agir dessa maneira não são difíceis de identificar: se o câncer for vinculado ao uso de produtos de consumo feitos à base de cloreto de vinila, tais como spray de cabelo, elas correm o risco de ser alvos de pedidos de indenizações enormes feitos na Justiça. Os trunfos que estão em jogo também são altos para os editores de livros polêmicos e para os historiadores que os escrevem, já que, quando os autores de tais livros são acusados de violações éticas e os leitores de manuscritos são intimados a depor na Justiça, o efeito é desanimador.

Acesso restrito
Os trunfos em jogo são mais altos ainda para o público, já que a disputa diz respeito a seu acesso a informações sobre substâncias químicas cancerígenas presentes em produtos de consumo.
Para Rosner e Markowitz, a história começou em 1993, quando eles foram a Lake Charles, na Louisiana, para conhecer um suposto "manancial de materiais" sobre o cloreto de vinila e o câncer. O endereço que lhes tinha sido dado revelou ser, na descrição de Markowitz, "um barraco decrépito no centro abandonado da cidade". O local estava "repleto de documentos relativos à indústria química que forravam as paredes e todos os cantos".
O material fora obtido por meio do trabalho de procura feito por um advogado local, Billy Baggett Jr., que trabalhava sozinho para uma cliente individual: uma mulher cujo marido, ex-empregado de uma indústria química, morrera de um tipo raro de câncer, o angiosarcoma do fígado, provocado pela exposição ao monômero de cloreto de vinila.
A questão das empresas químicas e dos riscos à saúde criados pelo cloreto de vinila é clássica: o que as empresas sabiam e quando tomaram conhecimento disso? Rosner e Markowitz usaram materiais fornecidos por Baggett para mostrar que, em 1973, as empresas ficaram sabendo que o monômero de cloreto de vinila provoca câncer em animais, mesmo em níveis de exposição baixos.
Como o cloreto de vinila era a base usada em sprays de cabelo, PVDC [material usado na fabricação de filmes e chapas de revestimento], estofamentos de automóveis, cortinas de chuveiros, pisos e centenas de outros bens de consumo, as implicações em termos de saúde pública eram enormes. No entanto as empresas não levaram as informações à atenção do público ou dos organismos reguladores federais.
Para as empresas, o problema maior decorre do papel exercido pelo monômero de cloreto de vinila como propulsor em aerossóis, nas décadas de 1950 e 1960. Em 1974 a Food and Drug Administration (FDA - Administração de Alimentos e Drogas) e a Agência de Proteção Ambiental pediram o recall de sprays de cabelo, inseticidas e outros aerossóis que ainda estavam sendo vendidos e que usavam como propulsor o cloreto de vinila -cerca de cem produtos ao todo.
Ninguém estudou se pessoas que trabalhavam em salões de beleza ou mulheres que usavam sprays de cabelo apresentavam incidência maior de câncer. Mas, no início dos anos 1970, a indústria química começou a temer que o problema dos possíveis pedidos de indenização envolvendo esse tipo de produto pudesse ser maior do que os pedidos feitos em nome de trabalhadores em indústrias químicas.
Os documentos serviram de base para dois capítulos do livro de Rosner e Markowitz, publicado em 2002 e saudado pela mídia comercial e pelos periódicos médicos e científicos com resenhas altamente positivas.
Os documentos são de um tipo ao qual pessoas de fora raramente têm acesso: arquivos reservados de empresas, incluindo relatórios internos sobre reuniões nas quais responsáveis pelas empresas tomaram decisões sobre a produção e o marketing de produtos que causavam problemas de saúde aos empregados das empresas e ao público geral.
Está sendo julgada no momento, na corte distrital de Jackson, Mississippi, uma ação aberta por outro ex-empregado de empresa química, alegando que a Airco e outras empresas são responsáveis pelo câncer de fígado que ele apresenta porque ele foi exposto a monômero de cloreto de vinila em seu trabalho. Markowitz é a testemunha perita-chave dos autores da ação, devido às pesquisas que ele e Rosner publicaram em "Logro e Desmentido".
Mas o outro lado vem dizendo ao juiz que a pesquisa de Rosner e Markowitz "não é válida", que o processo de revisão da editora foi "subvertido" e que Rosner e Markowitz cometeram "violações freqüentes e flagrantes" do código de ética da Associação Histórica Americana (AHA).

Violação de princípios
Essas acusações foram formuladas por outro historiador, este recrutado pelas empresas químicas: Philip Scranton, da Universidade Rutgers, autor de uma crítica (com 41 páginas) de "Logro e Desmentido" e da ética dos historiadores que o escreveram. Scranton leciona história de empresas na Rutgers-Camden, onde é titular da cadeira de história da indústria e tecnologia. Recentemente ele depôs em defesa de empresas de amianto em litígios envolvendo pedidos de indenização.
Em seu artigo de 41 páginas em defesa das empresas químicas, Scranton afirma que Markowitz violou "princípios básicos de integridade acadêmica, precisão histórica e responsabilidade profissional" e que ele cometeu "violações repetidas e constantes" dos padrões oficiais adotados pela Associação Histórica Americana. Seu argumento diz o seguinte: que Markowitz tinha conhecimento dos nomes das pessoas que fizeram a revisão de seu manuscrito para a editora e que chegou a oferecer a esta sugestões quanto a nomes de possíveis revisores. De acordo com Scranton, "tais práticas subverteram a revisão confidencial e objetiva de manuscritos acadêmicos".
Mas é prática comum nas editoras universitárias pedir a escritores que sugiram os nomes de revisores, muitas vezes porque os autores sabem melhor do que os editores quem são os maiores especialistas em seus campos, especialmente em se tratando de um tópico pouco mencionado como é o cloreto de vinila. Não há nada de antiético na prática e não consta nada sobre ela nos padrões da Associação Histórica Americana.
É verdade, como sugeriu Scranton, que as editoras universitárias costumam oferecer aos revisores de manuscritos a opção de não permitir o acesso dos autores a seus relatórios sobre os manuscritos e que, no caso em pauta, a editora revelou aos autores quem havia feito a revisão.
Mas isso aconteceu dentro de um processo de revisão que foi muito mais completo e exigente do que o normal. Em lugar dos dois ou três revisores de manuscrito normalmente empregados, o manuscrito de Rosner e Markowitz teve oito revisores externos, entre eles o ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer e o ex-presidente da Comissão de Assessoria sobre Chumbo do Centro de Controle de Doenças.
Em lugar de simplesmente enviar as avaliações aos autores por escrito, como é de praxe, o Fundo Memorial Milbank, organização pública sem fins lucrativos que atua na área da saúde e que publicou o livro em conjunto com a Editora da Universidade da Califórnia, promoveu uma conferência de dois dias que reuniu revisores, autores e editores para que repassassem o manuscrito juntos, capítulo por capítulo. Descrever esse processo rigoroso como "antiético" porque ele trouxe à tona a identidade dos revisores é simplesmente absurdo.
Scranton também faz objeções ao que descreve como "generalizações excessivas" presentes em "Logro e Desmentido". Por exemplo, os autores utilizam o termo "indústria".
Mas, argumenta Scranton, houve apenas empresas individuais. Em sua resposta, Rosner e Markowitz mostram que as empresas formaram uma associação comercial que afirmava falar em nome da "indústria". Scranton acusa Markowitz de violações éticas por ter feito citações seletivas e incompletas e apresentar argumentos unilaterais. Mas Scranton viola precisamente o que diz serem os princípios éticos que defende: seu ensaio é muito mais incompleto e seletivo, além de ser totalmente unilateral na defesa que faz da indústria química.

"Sem provas"
O restante do argumento de Scranton tem muito em comum com os argumentos apresentados pelas empresas de tabaco e chumbo e por seus advogados nos históricos processos dos quais foram alvos. Os argumentos genéricos dizem mais ou menos o seguinte: embora historiadores tenham encontrado evidências de que as indústrias tinham conhecimento dos perigos causados por seus produtos, essas evidências não eram definitivas.
Como elas "não tinham provas", não tinham a obrigação de agir para proteger a saúde dos empregados ou do público. Apenas recentemente é que os padrões de transparência e moralidade das empresas se tornaram mais rígidos, de modo que é "injusto" aplicar os padrões de hoje à conduta passada. E, é claro, sempre há o argumento de que os historiadores que afirmam ter identificado evidências de erros de conduta das empresas são "tendenciosos".
Como o livro foi co-publicado pelo Fundo Milbank, este arranjou para os historiadores intimados advogados da firma de advocacia Milbank, Tweed, de Wall Street. Nos depoimentos, cada historiador se viu diante dos advogados de 15 diferentes empresas químicas.
Uma das perguntas-chave era se os revisores que recomendaram que o livro fosse publicado tinham checado as notas de rodapé. Isso teria sido um empreendimento de grande porte: "Logro e Desmentido" tem mais de 1.200 notas de rodapé, muitas das quais citam mais de uma fonte. A prática que prevalece nas editoras universitárias é que não se espera dos revisores de manuscritos que eles chequem as notas de rodapé.
Na verdade, os documentos mencionados nas notas de rodapé de Rosner e Markowitz foram verificados exaustivamente antes da publicação por advogados da PBS e da HBO [redes de TV]. Em 2001 a PBS transmitiu um documentário de Bill Moyers sobre câncer provocado por substâncias químicas presentes em produtos ao consumidor.
Qual é a sensação de ser obrigado a depor nessa situação? O depoimento de Markowitz durou cinco dias e meio. Ele descreveu assim: "Você enfrenta 15 ou 16 advogados, nenhum dos quais gosta de você e todos querendo ludibriá-lo".
Rosner e Markowitz fazem parte de uma tendência maior que vem levando historiadores a comparecer em tribunais com mais freqüência como testemunhas especialistas. Uma razão disso é o número crescente de casos em que empresas vêm sendo acusadas de delitos com base em evidências de que trabalhadores e consumidores estão sofrendo doenças e invalidez por terem sido expostos a amianto, chumbo, sílica e outras substâncias químicas. Em todos os casos a exposição começou há décadas, e assim a questão legal fundamental é de natureza histórica: quando as empresas primeiro tomaram conhecimento dos perigos à saúde representados por seus produtos? A partir de que momento no passado elas podem começar a ser responsabilizadas por isso?
Uma segunda razão é conseqüência da ausência de ação das agências reguladoras governamentais. Hoje, em era de domínio republicano, a Administração de Saúde e Segurança Ocupacional e a Agência de Proteção Ambiental, criadas originalmente para proteger a saúde dos trabalhadores e do público, tendem a ser dominadas pelas indústrias. Em conseqüência, os tribunais, nas palavras de Rosner e Markowitz, se tornaram "um dos últimos lugares onde trabalhadores podem encontrar alguma forma de justiça".
No passado, cada lado nos processos que pedem indenizações de empresas apresentava especialistas que discutiam as evidências presentes nos documentos das empresas. O caso em pauta cria um marco novo, na medida em que a estratégia das empresas químicas é acusar de conduta antiética os especialistas que fundamentam os argumentos do autor da ação. Será que esse artifício vai dar resultado? A lógica do argumento é dúbia: e daí se alguns dos revisores de manuscrito de "Logro e Desmentido" conheciam os autores do livro? O que deve decidir o processo é a verdade sobre o que as empresas químicas sabiam sobre câncer e desde quando o sabiam.
Por outro lado, os júris não sabem muito sobre a publicação de livros de história. É possível que um júri possa ser convencido de que há algo de errado com um livro cujos revisores não checaram suas notas de rodapé e cuja editora não manteve a confidencialidade estrita no processo de revisão do manuscrito.
A maioria desses processos pedindo indenizações de empresas é resolvida antes de chegar ao tribunal, mas a disposição das empresas em buscar acordos se baseia na estimativa que elas fazem de até que ponto serão persuasivas as testemunhas contra elas, além de seus palpites em relação ao júri.


Jon Wiener é professor de história na Universidade da Califórnia e editor contribuinte da "The Nation" desde 1984. Ele é autor de "Professors, Politics and Pop" (Professores Universitários, Política e Pop) e "Come Together - John Lennon in His Time" (Come Together - John Lennon em Seu Tempo). A íntegra texto foi publicado na "The Nation".
Tradução de Clara Allain.


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