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Livro que relata o envolvimento de empresas químicas em casos de empregados intoxicados por metais pesados provoca embate sem precedentes nos tribunais dos EUA, opondo advogados e historiadores
Chumbo grosso
JON WIENER
Vinte das maiores empresas
químicas dos Estados Unidos lançaram uma campanha para desacreditar dois
historiadores que estudaram os esforços da indústria química para
ocultar as ligações entre seus produtos e o câncer.
Numa iniciativa sem precedentes,
advogados da Dow, Monsanto, Goodrich, Goodyear, Union Carbide e
outras companhias intimaram para
depor em justiça cinco acadêmicos
que recomendaram que a Editora da
Universidade da Califórnia publicasse "Deceit and Denial -The
Deadly Politics of Industrial Pollution" [Logro e Desmentido - A Política Mortífera da Poluição Industrial, University of California Press,
428 págs., US$ 19,95 -R$ 52], de
Gerald Markowitz e David Rosner.
Além disso, as empresas recrutaram um historiador para, em nome
delas, argumentar que Markowitz e
Rosner agiram de maneira antiética.
Markowitz é professor de história no
Cuny Graduate Center [Nova York],
e Rosner é professor de história e
saúde pública e diretor do Centro de
História e Ética da Saúde Pública na
Escola de Saúde Pública da Universidade Columbia [Nova York].
As razões que levaram as empresas
a agir dessa maneira não são difíceis
de identificar: se o câncer for vinculado ao uso de produtos de consumo
feitos à base de cloreto de vinila, tais
como spray de cabelo, elas correm o
risco de ser alvos de pedidos de indenizações enormes feitos na Justiça.
Os trunfos que estão em jogo também são altos para os editores de livros polêmicos e para os historiadores que os escrevem, já que, quando
os autores de tais livros são acusados
de violações éticas e os leitores de
manuscritos são intimados a depor
na Justiça, o efeito é desanimador.
Acesso restrito
Os trunfos em jogo são mais altos
ainda para o público, já que a disputa diz respeito a seu acesso a informações sobre substâncias químicas
cancerígenas presentes em produtos
de consumo.
Para Rosner e Markowitz, a história começou em 1993, quando eles
foram a Lake Charles, na Louisiana,
para conhecer um suposto "manancial de materiais" sobre o cloreto de
vinila e o câncer. O endereço que
lhes tinha sido dado revelou ser, na
descrição de Markowitz, "um barraco decrépito no centro abandonado
da cidade". O local estava "repleto de
documentos relativos à indústria
química que forravam as paredes e
todos os cantos".
O material fora obtido por meio do
trabalho de procura feito por um advogado local, Billy Baggett Jr., que
trabalhava sozinho para uma cliente
individual: uma mulher cujo marido, ex-empregado de uma indústria
química, morrera de um tipo raro de
câncer, o angiosarcoma do fígado,
provocado pela exposição ao monômero de cloreto de vinila.
A questão das empresas químicas
e dos riscos à saúde criados pelo cloreto de vinila é clássica: o que as empresas sabiam e quando tomaram
conhecimento disso? Rosner e Markowitz usaram materiais fornecidos
por Baggett para mostrar que, em
1973, as empresas ficaram sabendo
que o monômero de cloreto de vinila
provoca câncer em animais, mesmo
em níveis de exposição baixos.
Como o cloreto de vinila era a base
usada em sprays de cabelo, PVDC
[material usado na fabricação de filmes e chapas de revestimento], estofamentos de automóveis, cortinas de
chuveiros, pisos e centenas de outros bens de consumo, as implicações em termos de saúde pública
eram enormes. No entanto as empresas não levaram as informações à
atenção do público ou dos organismos reguladores federais.
Para as empresas, o problema
maior decorre do papel exercido pelo monômero de cloreto de vinila
como propulsor em aerossóis, nas
décadas de 1950 e 1960. Em 1974 a
Food and Drug Administration
(FDA - Administração de Alimentos
e Drogas) e a Agência de Proteção
Ambiental pediram o recall de
sprays de cabelo, inseticidas e outros
aerossóis que ainda estavam sendo
vendidos e que usavam como propulsor o cloreto de vinila -cerca de
cem produtos ao todo.
Ninguém estudou se pessoas que
trabalhavam em salões de beleza ou
mulheres que usavam sprays de cabelo apresentavam incidência maior
de câncer. Mas, no início dos anos
1970, a indústria química começou a
temer que o problema dos possíveis
pedidos de indenização envolvendo
esse tipo de produto pudesse ser
maior do que os pedidos feitos em
nome de trabalhadores em indústrias químicas.
Os documentos serviram de base
para dois capítulos do livro de Rosner e Markowitz, publicado em 2002
e saudado pela mídia comercial e pelos periódicos médicos e científicos
com resenhas altamente positivas.
Os documentos são de um tipo ao
qual pessoas de fora raramente têm
acesso: arquivos reservados de empresas, incluindo relatórios internos
sobre reuniões nas quais responsáveis pelas empresas tomaram decisões sobre a produção e o marketing
de produtos que causavam problemas de saúde aos empregados das
empresas e ao público geral.
Está sendo julgada no momento,
na corte distrital de Jackson, Mississippi, uma ação aberta por outro ex-empregado de empresa química,
alegando que a Airco e outras empresas são responsáveis pelo câncer
de fígado que ele apresenta porque
ele foi exposto a monômero de cloreto de vinila em seu trabalho. Markowitz é a testemunha perita-chave
dos autores da ação, devido às pesquisas que ele e Rosner publicaram
em "Logro e Desmentido".
Mas o outro lado vem dizendo ao
juiz que a pesquisa de Rosner e Markowitz "não é válida", que o processo de revisão da editora foi "subvertido" e que Rosner e Markowitz cometeram "violações freqüentes e flagrantes" do código de ética da Associação Histórica Americana (AHA).
Violação de princípios
Essas acusações foram formuladas
por outro historiador, este recrutado
pelas empresas químicas: Philip
Scranton, da Universidade Rutgers,
autor de uma crítica (com 41 páginas) de "Logro e Desmentido" e da
ética dos historiadores que o escreveram. Scranton leciona história de
empresas na Rutgers-Camden, onde
é titular da cadeira de história da indústria e tecnologia. Recentemente
ele depôs em defesa de empresas de
amianto em litígios envolvendo pedidos de indenização.
Em seu artigo de 41 páginas em defesa das empresas químicas, Scranton afirma que Markowitz violou
"princípios básicos de integridade
acadêmica, precisão histórica e responsabilidade profissional" e que ele
cometeu "violações repetidas e
constantes" dos padrões oficiais
adotados pela Associação Histórica
Americana. Seu argumento diz o seguinte: que Markowitz tinha conhecimento dos nomes das pessoas que
fizeram a revisão de seu manuscrito
para a editora e que chegou a oferecer a esta sugestões quanto a nomes
de possíveis revisores. De acordo
com Scranton, "tais práticas subverteram a revisão confidencial e objetiva de manuscritos acadêmicos".
Mas é prática comum nas editoras
universitárias pedir a escritores que
sugiram os nomes de revisores, muitas vezes porque os autores sabem
melhor do que os editores quem são
os maiores especialistas em seus
campos, especialmente em se tratando de um tópico pouco mencionado como é o cloreto de vinila. Não
há nada de antiético na prática e não
consta nada sobre ela nos padrões
da Associação Histórica Americana.
É verdade, como sugeriu Scranton,
que as editoras universitárias costumam oferecer aos revisores de manuscritos a opção de não permitir o
acesso dos autores a seus relatórios
sobre os manuscritos e que, no caso
em pauta, a editora revelou aos autores quem havia feito a revisão.
Mas isso aconteceu dentro de um
processo de revisão que foi muito
mais completo e exigente do que o
normal. Em lugar dos dois ou três
revisores de manuscrito normalmente empregados, o manuscrito de
Rosner e Markowitz teve oito revisores externos, entre eles o ex-diretor
do Instituto Nacional do Câncer e o
ex-presidente da Comissão de Assessoria sobre Chumbo do Centro
de Controle de Doenças.
Em lugar de simplesmente enviar
as avaliações aos autores por escrito,
como é de praxe, o Fundo Memorial
Milbank, organização pública sem
fins lucrativos que atua na área da
saúde e que publicou o livro em conjunto com a Editora da Universidade da Califórnia, promoveu uma
conferência de dois dias que reuniu
revisores, autores e editores para
que repassassem o manuscrito juntos, capítulo por capítulo. Descrever
esse processo rigoroso como "antiético" porque ele trouxe à tona a
identidade dos revisores é simplesmente absurdo.
Scranton também faz objeções ao
que descreve como "generalizações
excessivas" presentes em "Logro e
Desmentido". Por exemplo, os autores utilizam o termo "indústria".
Mas, argumenta Scranton, houve
apenas empresas individuais. Em
sua resposta, Rosner e Markowitz
mostram que as empresas formaram uma associação comercial que
afirmava falar em nome da "indústria". Scranton acusa Markowitz de
violações éticas por ter feito citações
seletivas e incompletas e apresentar
argumentos unilaterais. Mas Scranton viola precisamente o que diz serem os princípios éticos que defende: seu ensaio é muito mais incompleto e seletivo, além de ser totalmente unilateral na defesa que faz da
indústria química.
"Sem provas"
O restante do argumento de Scranton tem muito em comum com os
argumentos apresentados pelas empresas de tabaco e chumbo e por
seus advogados nos históricos processos dos quais foram alvos. Os argumentos genéricos dizem mais ou
menos o seguinte: embora historiadores tenham encontrado evidências de que as indústrias tinham conhecimento dos perigos causados
por seus produtos, essas evidências
não eram definitivas.
Como elas "não tinham provas",
não tinham a obrigação de agir para
proteger a saúde dos empregados ou
do público. Apenas recentemente é
que os padrões de transparência e
moralidade das empresas se tornaram mais rígidos, de modo que é
"injusto" aplicar os padrões de hoje
à conduta passada. E, é claro, sempre há o argumento de que os historiadores que afirmam ter identificado evidências de erros de conduta
das empresas são "tendenciosos".
Como o livro foi co-publicado pelo
Fundo Milbank, este arranjou para
os historiadores intimados advogados da firma de advocacia Milbank,
Tweed, de Wall Street. Nos depoimentos, cada historiador se viu
diante dos advogados de 15 diferentes empresas químicas.
Uma das perguntas-chave era se os
revisores que recomendaram que o
livro fosse publicado tinham checado as notas de rodapé. Isso teria sido
um empreendimento de grande
porte: "Logro e Desmentido" tem
mais de 1.200 notas de rodapé, muitas das quais citam mais de uma fonte. A prática que prevalece nas editoras universitárias é que não se espera
dos revisores de manuscritos que
eles chequem as notas de rodapé.
Na verdade, os documentos mencionados nas notas de rodapé de
Rosner e Markowitz foram verificados exaustivamente antes da publicação por advogados da PBS e da
HBO [redes de TV]. Em 2001 a PBS
transmitiu um documentário de Bill
Moyers sobre câncer provocado por
substâncias químicas presentes em
produtos ao consumidor.
Qual é a sensação de ser obrigado a
depor nessa situação? O depoimento
de Markowitz durou cinco dias e
meio. Ele descreveu assim: "Você
enfrenta 15 ou 16 advogados, nenhum dos quais gosta de você e todos querendo ludibriá-lo".
Rosner e Markowitz fazem parte
de uma tendência maior que vem levando historiadores a comparecer
em tribunais com mais freqüência
como testemunhas especialistas.
Uma razão disso é o número crescente de casos em que empresas vêm
sendo acusadas de delitos com base
em evidências de que trabalhadores
e consumidores estão sofrendo
doenças e invalidez por terem sido
expostos a amianto, chumbo, sílica e
outras substâncias químicas. Em todos os casos a exposição começou há
décadas, e assim a questão legal fundamental é de natureza histórica:
quando as empresas primeiro tomaram conhecimento dos perigos à
saúde representados por seus produtos? A partir de que momento no
passado elas podem começar a ser
responsabilizadas por isso?
Uma segunda razão é conseqüência da ausência de ação das agências
reguladoras governamentais. Hoje,
em era de domínio republicano, a
Administração de Saúde e Segurança Ocupacional e a Agência de Proteção Ambiental, criadas originalmente para proteger a saúde dos trabalhadores e do público, tendem a ser
dominadas pelas indústrias. Em
conseqüência, os tribunais, nas palavras de Rosner e Markowitz, se tornaram "um dos últimos lugares onde trabalhadores podem encontrar
alguma forma de justiça".
No passado, cada lado nos processos que pedem indenizações de empresas apresentava especialistas que
discutiam as evidências presentes
nos documentos das empresas. O
caso em pauta cria um marco novo,
na medida em que a estratégia das
empresas químicas é acusar de conduta antiética os especialistas que
fundamentam os argumentos do autor da ação. Será que esse artifício vai
dar resultado? A lógica do argumento é dúbia: e daí se alguns dos revisores de manuscrito de "Logro e Desmentido" conheciam os autores do
livro? O que deve decidir o processo
é a verdade sobre o que as empresas
químicas sabiam sobre câncer e desde quando o sabiam.
Por outro lado, os júris não sabem
muito sobre a publicação de livros
de história. É possível que um júri
possa ser convencido de que há algo
de errado com um livro cujos revisores não checaram suas notas de rodapé e cuja editora não manteve a
confidencialidade estrita no processo de revisão do manuscrito.
A maioria desses processos pedindo indenizações de empresas é resolvida antes de chegar ao tribunal, mas
a disposição das empresas em buscar acordos se baseia na estimativa
que elas fazem de até que ponto serão persuasivas as testemunhas contra elas, além de seus palpites em relação ao júri.
Jon Wiener é professor de história na Universidade da Califórnia e editor contribuinte
da "The Nation" desde 1984. Ele é autor de
"Professors, Politics and Pop" (Professores
Universitários, Política e Pop) e "Come Together - John Lennon in His Time" (Come Together - John Lennon em Seu Tempo). A íntegra texto foi publicado na "The Nation".
Tradução de Clara Allain.
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