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O rock das fadas
O músico inglês
Elvis Costello
fala com exclusividade
da ópera que está
compondo sobre
a vida do escritor
dinamarquês
Hans Christian
Andersen,
cujo bicentenário
de nascimento
se comemora
no próximo
dia 2
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
A união entre um roqueiro inglês que não gosta de rótulos
e que circula muito naturalmente entre os diferentes estilos musicais com um escritor dinamarquês de contos de fadas nascido
há 200 anos está para dar um resultado inesperado: uma ópera.
O projeto, que comemora o bicentenário de Hans Christian Andersen
[1805-1875], autor de "O Patinho
Feio", "A Pequena Sereia" e tantas
outras histórias conhecidas em todo
o mundo, foi organizado pela Ópera
Real Dinamarquesa, que convidou
Elvis Costello para escrever um drama musical sobre o escritor.
Costello aceitou o desafio, e o espetáculo deve estrear em Copenhague
em outubro. Na entrevista abaixo,
concedida à Folha por telefone, ele
disse esperar que sua obra seja algo
diferente, nem Puccini (1858-1924)
nem "Tommy" (1969), ópera-rock
do grupo The Who. Segundo ele, a
obra vai ser uma ficção com bases
reais, mostrando a obsessão amorosa de Andersen pela cantora sueca
Jenny Lind.
Folha - Qual sua relação com o trabalho de Hans Christian Andersen?
Elvis Costello - A mesma que quase
todas as outras pessoas. Li algumas
peças, assisti a algumas interpretações, mas tentei observar mais o lado humano de Andersen, me aproximei dele como pessoa, em vez de
me prender a obras suas. Analisei
mais os elementos de sua vida de
que tentei representar os elementos
fantásticos de suas histórias. Minha
idéia é tentar entender o porquê de
ele ser atraído por um tipo particular
de contos de fadas, entendendo isso
como uma expressão de sua própria
natureza.
Estou tentando extrair a história
dele, que é uma ficção muito equilibrada nos fatos de sua biografia. Ele
se apaixonou pela cantora soprano
sueca Jenny Lind, entre várias outras
pessoas por quem pareceu se apaixonar durante a vida -ele era muito "galanteador", em alguns momentos até mesmo imaturo, dependendo das circunstâncias-, mas esse relacionamento com Lind, especificamente, foi muito idealizado, e ela
não o via como um candidato aceitável para marido. O ponto-chave na
vida dos dois é quando ela vai para
os EUA se apresentar. E a história
que estou escrevendo é sobre esse
momento-chave.
É sobre a tensão entre essa cantora
pura, de reputação valiosa, sendo seduzida por um mundo muito comercial de apresentação nos EUA,
longe do lado cultural de elite. Enquanto Andersen é um escritor mais
puro, vivendo em pobres circunstâncias e lutando emocionalmente, é
óbvio. Na minha imaginação, ele sonha que ela aparece para cantar para
ele, canções que foram escritas por
ele. Claro que ele não fez canções,
mas essa é a minha forma de dar estrutura à história.
Minha forma de discutir a vida dele é fazendo-o criar músicas para ela
cantar e depois sonhar que ela vem
cantar para ele de forma sedutora.
Isso é até onde eu posso falar sem
entregar toda a história de meu trabalho. O importante é perceber que
eu não estou tomando nenhuma de
suas obras como base para um drama musical literário. Estou escrevendo sobre um personagem que é
um artista em conflito emocional,
passando por momentos transformadores da vida e da história.
Folha - O que significa, para um roqueiro, se envolver num projeto de
música erudita?
Costello - É um projeto que demanda um grande acúmulo de confiança
por parte do autor e uma grande
confiança da Ópera Real Dinamarquesa em mim. Fui convidado para
escrever sobre Andersen e pensei se
deveria trabalhar em cima de alguma de suas histórias, mas percebi
que não queria fazer isso. Em vez
disso, preferi olhar para o homem e
sua vida. Acho que a presunção de
que a ópera deveria soar como uma
"ópera", com uma orquestra, é natural. É normal pensar que vai soar como Puccini, Benjamin Britten ou
coisas assim.
Mas não tenho nenhuma intenção
de fazer nada assim. Dizer que é uma
ópera é pensar no fato de que se trata
de um drama musical, em que a ação
acontece paralelamente à música,
dentro da música. O resultado vai
surpreender as pessoas que pensarem numa ópera tradicional.
Meu projeto vai ter uma escala
menor, mais íntimo, com menos
personagens e a interpretação de
poucos músicos também. Não acho
nem mesmo que deva ser classificado com um trabalho de música clássica, acho que nem mesmo soa como música clássica, exceto pelo fato
de ser tocado por grandes músicos
de orquestra. É algo novo e completamente diferente.
Folha - Tem alguma coisa haver com
a música pop ou o rock?
Costello - Eu não sei o que o rock é.
Eu nunca me aceitei rotular como
um roqueiro. Eu canto músicas de
rock, o que gosto muito -canto baladas, canto música pop, toco jazz,
mas não sou músico de jazz nem
músico clássico nem mesmo músico
de rock. Sou um cantor e compositor, e o rótulo é uma questão de conveniência. Para mim, ele cria uma limitação que não me permite uma
movimentação entre os diferentes
estilos musicais.
Se eu disser que o projeto sobre
Andersen vai soar como rock, o que
o público vai esperar? Que soe como
"Tommy"? Espero que não. Espero
que não soe como nada que já exista, e sim como algo que eu criei.
Acho que tenho uma idéia forte
sobre o que quero. Ainda estou
escrevendo, portanto não quero dar detalhes sobre como
vai ser. Se eu começar a tentar explicar como vai ser a
apresentação, as pessoas
vão vir assistir com uma
expectativa em mente
e, em vez de se concentrarem no que
vêem, vão se concentrar no que esperam ver. Esse é
o problema de
fazer trabalhos
fora do rótulo
que os críticos colocam.
Folha - Como o sr. se preparou para
esse trabalho?
Costello - Claro que tive que fazer
muita pesquisa. Primeiramente,
imaginei uma história como a que
estou fazendo e acabei encontrando
a confirmação para minha idéia original e os personagens ao estudar livros sobre Andersen, biografias...
Folha - E, tecnicamente, como o sr.
se preparou para escrever uma ópera?
Costello - Em primeiro lugar, a
composição não vai ser tocada por
uma orquestra, mas apenas por três
ou quatro músicos. É um processo
natural, não passei por nenhuma
preparação técnica diferenciada.
Folha - E o sr. pretende participar da
apresentação?
Costello -Nas performances iniciais eu devo participar interpretando o próprio Andersen.
Folha - O sr. vê esse projeto como o
maior desafio de sua carreira?
Costello - Não. Acho que é um trabalho cheio de complexidade e controvérsias. Tenho que voltar no tempo para entender a forma pela qual
as pessoas se comportavam, como
viam o mundo, em que grau elas poderiam se deixar levar em relação a
trocas emocionais, que eram muito
presas num protocolo e formalidade
diferentes do que temos hoje. Investigando isso, encontrei algumas características bem surpreendentes
sobre a idéia dos sentimentos amorosos. Ele viveu nessa época cheia de
romantismo e escrevia de forma
muito apaixonada.
Folha - O sr., de alguma forma, se
identifica com Andersen?
Costello - Não particularmente.
Mas claro que entendo aquilo por
que Andersen passava e sentia, mas
não escolhi esse personagem para
escrever sobre ele, fui convidado para usar minha imaginação para criar
algo que possa ser apresentado numa noite, num teatro, numa série de
músicas -seja isso ópera ou não.
Folha - Como está a preparação do
projeto?
Costello - Ele deve estrear em outubro, está ficando pronto muito rapidamente...
Folha - Diz-se que o sr. gosta de surpreender seus fãs mudando constantemente de estilo de trabalho. O que
sr. pretende fazer após essa ópera?
Costello - Eu nunca deixei o rock
de lado. Agora estou envolvido num
projeto diferente, mas continuo vivendo o rock'n roll, continuo fazendo shows, compondo. E ouso dizer
que, se um projeto desafiador como
esse existe para mim, é porque já demonstrei minha capacidade musical
justamente por meio dessa capacidade de variar o estilo. O projeto requer alguma concentração, mas o
fato de ser um trabalho colocado no
papel me deixa mais livre para interrompê-lo nos momentos em que
preciso fazer alguma outra coisa.
Continuo tocando com meu grupo de rock ["The Imposters"], acabamos de lançar um ótimo disco
que foi muito bem recebido pelo público e tenho um repertório em que
posso basear quase todos os meus
shows sem que ninguém se sinta insatisfeito em relação ao que esperava. Não tenho como saber exatamente para onde vou no meu próximo disco, mas sei que tenho que terminar esse projeto. É bom não ter
tudo tão bem planejado e poder deixar tudo pronto apenas no curto
prazo.
Folha - O sr. tem algum conto de fadas de Andersen preferido?
Costello - Acho que não. Provavelmente por ter caído na minha própria lógica desse relacionamento de
que falo na ópera, tendo a ficar fascinado pelos que contêm algo do que
estou tentando expressar com o
meu personagem. Acho alguns dos
mais famosos muito belos, mas há
boas surpresas em sua obra que
mostram suas origens, seu background de miséria, dificuldade e
conquistas, que ele transformou em
conto de fadas e que fazem entender
porque ele se entregou à fantasia.
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