São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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O rock das fadas

O músico inglês Elvis Costello fala com exclusividade da ópera que está compondo sobre a vida do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, cujo bicentenário de nascimento se comemora no próximo dia 2

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A união entre um roqueiro inglês que não gosta de rótulos e que circula muito naturalmente entre os diferentes estilos musicais com um escritor dinamarquês de contos de fadas nascido há 200 anos está para dar um resultado inesperado: uma ópera.
O projeto, que comemora o bicentenário de Hans Christian Andersen [1805-1875], autor de "O Patinho Feio", "A Pequena Sereia" e tantas outras histórias conhecidas em todo o mundo, foi organizado pela Ópera Real Dinamarquesa, que convidou Elvis Costello para escrever um drama musical sobre o escritor.
Costello aceitou o desafio, e o espetáculo deve estrear em Copenhague em outubro. Na entrevista abaixo, concedida à Folha por telefone, ele disse esperar que sua obra seja algo diferente, nem Puccini (1858-1924) nem "Tommy" (1969), ópera-rock do grupo The Who. Segundo ele, a obra vai ser uma ficção com bases reais, mostrando a obsessão amorosa de Andersen pela cantora sueca Jenny Lind.
 

Folha - Qual sua relação com o trabalho de Hans Christian Andersen?
Elvis Costello -
A mesma que quase todas as outras pessoas. Li algumas peças, assisti a algumas interpretações, mas tentei observar mais o lado humano de Andersen, me aproximei dele como pessoa, em vez de me prender a obras suas. Analisei mais os elementos de sua vida de que tentei representar os elementos fantásticos de suas histórias. Minha idéia é tentar entender o porquê de ele ser atraído por um tipo particular de contos de fadas, entendendo isso como uma expressão de sua própria natureza.
Estou tentando extrair a história dele, que é uma ficção muito equilibrada nos fatos de sua biografia. Ele se apaixonou pela cantora soprano sueca Jenny Lind, entre várias outras pessoas por quem pareceu se apaixonar durante a vida -ele era muito "galanteador", em alguns momentos até mesmo imaturo, dependendo das circunstâncias-, mas esse relacionamento com Lind, especificamente, foi muito idealizado, e ela não o via como um candidato aceitável para marido. O ponto-chave na vida dos dois é quando ela vai para os EUA se apresentar. E a história que estou escrevendo é sobre esse momento-chave.
É sobre a tensão entre essa cantora pura, de reputação valiosa, sendo seduzida por um mundo muito comercial de apresentação nos EUA, longe do lado cultural de elite. Enquanto Andersen é um escritor mais puro, vivendo em pobres circunstâncias e lutando emocionalmente, é óbvio. Na minha imaginação, ele sonha que ela aparece para cantar para ele, canções que foram escritas por ele. Claro que ele não fez canções, mas essa é a minha forma de dar estrutura à história.
Minha forma de discutir a vida dele é fazendo-o criar músicas para ela cantar e depois sonhar que ela vem cantar para ele de forma sedutora. Isso é até onde eu posso falar sem entregar toda a história de meu trabalho. O importante é perceber que eu não estou tomando nenhuma de suas obras como base para um drama musical literário. Estou escrevendo sobre um personagem que é um artista em conflito emocional, passando por momentos transformadores da vida e da história.

Folha - O que significa, para um roqueiro, se envolver num projeto de música erudita?
Costello -
É um projeto que demanda um grande acúmulo de confiança por parte do autor e uma grande confiança da Ópera Real Dinamarquesa em mim. Fui convidado para escrever sobre Andersen e pensei se deveria trabalhar em cima de alguma de suas histórias, mas percebi que não queria fazer isso. Em vez disso, preferi olhar para o homem e sua vida. Acho que a presunção de que a ópera deveria soar como uma "ópera", com uma orquestra, é natural. É normal pensar que vai soar como Puccini, Benjamin Britten ou coisas assim.
Mas não tenho nenhuma intenção de fazer nada assim. Dizer que é uma ópera é pensar no fato de que se trata de um drama musical, em que a ação acontece paralelamente à música, dentro da música. O resultado vai surpreender as pessoas que pensarem numa ópera tradicional.
Meu projeto vai ter uma escala menor, mais íntimo, com menos personagens e a interpretação de poucos músicos também. Não acho nem mesmo que deva ser classificado com um trabalho de música clássica, acho que nem mesmo soa como música clássica, exceto pelo fato de ser tocado por grandes músicos de orquestra. É algo novo e completamente diferente.

Folha - Tem alguma coisa haver com a música pop ou o rock?
Costello -
Eu não sei o que o rock é. Eu nunca me aceitei rotular como um roqueiro. Eu canto músicas de rock, o que gosto muito -canto baladas, canto música pop, toco jazz, mas não sou músico de jazz nem músico clássico nem mesmo músico de rock. Sou um cantor e compositor, e o rótulo é uma questão de conveniência. Para mim, ele cria uma limitação que não me permite uma movimentação entre os diferentes estilos musicais.
Se eu disser que o projeto sobre Andersen vai soar como rock, o que o público vai esperar? Que soe como "Tommy"? Espero que não. Espero que não soe como nada que já exista, e sim como algo que eu criei. Acho que tenho uma idéia forte sobre o que quero. Ainda estou escrevendo, portanto não quero dar detalhes sobre como vai ser. Se eu começar a tentar explicar como vai ser a apresentação, as pessoas vão vir assistir com uma expectativa em mente e, em vez de se concentrarem no que vêem, vão se concentrar no que esperam ver. Esse é o problema de fazer trabalhos fora do rótulo que os críticos colocam.

Folha - Como o sr. se preparou para esse trabalho?
Costello -
Claro que tive que fazer muita pesquisa. Primeiramente, imaginei uma história como a que estou fazendo e acabei encontrando a confirmação para minha idéia original e os personagens ao estudar livros sobre Andersen, biografias...

Folha - E, tecnicamente, como o sr. se preparou para escrever uma ópera?
Costello -
Em primeiro lugar, a composição não vai ser tocada por uma orquestra, mas apenas por três ou quatro músicos. É um processo natural, não passei por nenhuma preparação técnica diferenciada.

Folha - E o sr. pretende participar da apresentação?
Costello -
Nas performances iniciais eu devo participar interpretando o próprio Andersen.

Folha - O sr. vê esse projeto como o maior desafio de sua carreira?
Costello -
Não. Acho que é um trabalho cheio de complexidade e controvérsias. Tenho que voltar no tempo para entender a forma pela qual as pessoas se comportavam, como viam o mundo, em que grau elas poderiam se deixar levar em relação a trocas emocionais, que eram muito presas num protocolo e formalidade diferentes do que temos hoje. Investigando isso, encontrei algumas características bem surpreendentes sobre a idéia dos sentimentos amorosos. Ele viveu nessa época cheia de romantismo e escrevia de forma muito apaixonada.

Folha - O sr., de alguma forma, se identifica com Andersen?
Costello -
Não particularmente. Mas claro que entendo aquilo por que Andersen passava e sentia, mas não escolhi esse personagem para escrever sobre ele, fui convidado para usar minha imaginação para criar algo que possa ser apresentado numa noite, num teatro, numa série de músicas -seja isso ópera ou não.

Folha - Como está a preparação do projeto?
Costello -
Ele deve estrear em outubro, está ficando pronto muito rapidamente...

Folha - Diz-se que o sr. gosta de surpreender seus fãs mudando constantemente de estilo de trabalho. O que sr. pretende fazer após essa ópera?
Costello -
Eu nunca deixei o rock de lado. Agora estou envolvido num projeto diferente, mas continuo vivendo o rock'n roll, continuo fazendo shows, compondo. E ouso dizer que, se um projeto desafiador como esse existe para mim, é porque já demonstrei minha capacidade musical justamente por meio dessa capacidade de variar o estilo. O projeto requer alguma concentração, mas o fato de ser um trabalho colocado no papel me deixa mais livre para interrompê-lo nos momentos em que preciso fazer alguma outra coisa.
Continuo tocando com meu grupo de rock ["The Imposters"], acabamos de lançar um ótimo disco que foi muito bem recebido pelo público e tenho um repertório em que posso basear quase todos os meus shows sem que ninguém se sinta insatisfeito em relação ao que esperava. Não tenho como saber exatamente para onde vou no meu próximo disco, mas sei que tenho que terminar esse projeto. É bom não ter tudo tão bem planejado e poder deixar tudo pronto apenas no curto prazo.

Folha - O sr. tem algum conto de fadas de Andersen preferido?
Costello -
Acho que não. Provavelmente por ter caído na minha própria lógica desse relacionamento de que falo na ópera, tendo a ficar fascinado pelos que contêm algo do que estou tentando expressar com o meu personagem. Acho alguns dos mais famosos muito belos, mas há boas surpresas em sua obra que mostram suas origens, seu background de miséria, dificuldade e conquistas, que ele transformou em conto de fadas e que fazem entender porque ele se entregou à fantasia.


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