São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jorge Araujo/Folha Imagem
O poeta e ensaísta Haroldo de Campos, autor de "Sobre Finismundo|"


LIVROS
A integridade da poesia



Em ``Sobre Finismundo'', Haroldo de Campos explica a construção de seu poema
CARLITO AZEVEDO
especial para a Folha

"A história da poesia moderna é a de um descomedimento. Todos os seus grandes protagonistas, após traçar um signo breve e enigmático, estilhaçaram-se contra o rochedo." Assim Octavio Paz retratou o caráter transgressor da poesia moderna. Não por nada muitos autores elegeram personagens como Prometeu, Lúcifer e outros grandes rebeldes para figurações do poeta moderno. O poema "Finismundo: a Última Viagem", lançado em 1990 por Haroldo de Campos, veio reunir o nome de Ulisses a essa longa lista, ao desenvolver o episódio do "vôo louco", narrado no canto 26 do "Inferno" de Dante, em que Ulisses rechaça a paz doméstica de Ítaca e parte para a sua última e mais alucinada viagem: alcançar o Finismundo, a montanha bruna onde estaria situado o paraíso terrestre, cuja entrada era interditada pelos deuses.
A publicação agora de "Sobre Finismundo: a Última Viagem", livro em que Haroldo reúne, além de uma nova edição do poema, um longo depoimento sobre sua gênese, vem suprir uma lacuna infelizmente comum na poesia brasileira: a falta de relatos de poetas sobre sua própria criação. O livro é ainda uma oportunidade preciosa de se constatar que, quando um poeta considera, como faz Haroldo, o seu trabalho como o de um "fabbro", um fazedor, o que ele diz pode ser um convite para se observar como ele faz.
Haroldo nos conta, em seu depoimento, que dividiu o poema em dois tempos. Um tempo passado, quando Odisseu resolve empreender mais uma viagem, e um tempo presente, quando um Ulisses mais joyceano que homérico perambula pelas ruas cotidianas com a sensação de "ter chegado tarde demais para os deuses e muito cedo para o ser" (Heidegger).
Mas essa articulação em dois tempos, explicitada no poema por meio dos números um e dois, esconde outra articulação, ainda temporal, mas muito mais sutil: a alternância de tempos verbais na narração de fatos passados, técnica que tem como antecedentes mais ilustres "The Rime of the Ancient Mariner", de Coleridge, "The Lady of Shalott", de Tennyson, e "Erlkönig", de Goethe, textos exemplarmente estudados por Susanne K. Langer, que afirma: "O uso mais interessante do presente em narrativas que realmente se movem no passado é um uso que jamais foi reconhecido como uma consecução técnica. Talvez os críticos não o tenham percebido porque têm a tendência de pensar sobre o poema como algo que o poeta diz, mais do que como algo que o poeta faz. (...) Refiro-me à mistura de construção no presente e no passado".
Essa mistura vai se dar, no "Finismundo", de forma crescente. Até o verso 67 do poema, a história de Odisseu é narrada no presente: Odisseu "re-propõe a viagem", "Pre-medita trans-passar o passo", "rechaça a pervasiva". Até que, no verso 68, a narrativa começa a se desenrolar no passado: "Ele foi/... Odisseu foi. Perdeu os companheiros". A partir daí os tempos verbais começam a se alternar quase verso a verso, como nesta sequência: "Da glória recusou a pompa fúnebre./ Só um sulco/ cicatriza no peito de Poséidon./ Clausurou-se o ponto. O redondo/ oceano ressona taciturno" (grifos meus).
Esse tensionamento do poema longo, narrativo, por meio da alternância dos tempos verbais mais característicos da épica e da lírica, além de preparar o salto no tempo a ser dado na parte dois do poema, em que se narram fatos presentes e se opera uma brutal dessacralização da linguagem, com sereias virando sirenes e o fogo prometéico reduzindo-se a uma cabeça de fósforo, objetiva o tempo virtual do poema. Que nunca é o mesmo se apenas o resumimos ou o contamos a alguém.
Até por apresentar esse contraste entre o poema em si e o que podem ser as mil e uma aproximações prosaicas (mais ou menos autorizadas, mais ou menos pertinentes) a um poema, o depoimento de Haroldo também pode ser lido como uma defesa da integridade da poesia. Defesa já prevista na sequência daquelas palavras de Octavio Paz citadas acima: "Este século e meio foi tão rico em infortúnios quanto em obras: o fracasso da aventura poética é a face opaca da esfera; a outra se compõe da luz dos poemas modernos". Se a transgressão de Odisseu foi punida com o naufrágio, os poetas modernos sabem que é dos próprios destroços desse naufrágio que irão fazer seus poemas.


Carlito Azevedo é poeta, autor de ``Sob a Noite Física'' (Sette Letras), entre outros.

A obra: Sobre 'Finismundo: a Última Viagem' - Haroldo de Campos. Ed. Sette Letras (r. Maria Angélica, 171, loja 102, CEP 22470-200, RJ, tel. 021/537-2414). 60 págs., R$ 13,00.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã