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Rompendo silêncio
TEMA ESQUECIDO PELA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA, DISCRIMINAÇÃO SOCIAL E INSTITUCIONAL CONTRA JAPONESES FOI DEFENDIDA POR GRANDES NOMES DO PENSAMENTO NACIONAL, COMO O SOCIÓLOGO OLIVEIRA VIANNA
Reprodução
| Reprodução de retrato de Ryu Mizuno (centro), que organizou a primeira viagem de imigrantes japoneses ao Brasil |
MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Durante a Assembléia Nacional
Constituinte de
1946, no Palácio Tiradentes, no Rio
capital da República, o então
senador pelo Distrito Federal
Luiz Carlos Prestes fechou
questão a favor da emenda
3.165, de autoria do médico,
empresário ligado à extração
do sal e deputado carioca Miguel Couto Filho, do Partido
Social Democrático.
Prestes liderava a bancada
comunista de 14 deputados (ela
teve 15 por três meses, com a
interinidade de um suplente),
composta por, entre outros,
Jorge Amado, eleito pelos paulistas, Carlos Marighela, pelos
baianos, João Amazonas, o
mais votado do país, escolha de
18.379 eleitores do Rio, e o sindicalista Claudino Silva, único
constituinte negro, também
eleito pelo Rio. A emenda 3.165
dizia: "É proibida a entrada no
país de imigrantes japoneses
de qualquer idade e de qualquer procedência".
O deputado carioca do PSD
retomava, 12 anos depois, o espírito de várias emendas propostas à Constituição de 1934
-sendo que uma delas ficou
conhecida com o nome de seu
pai, Miguel Couto, médico,
educador, presidente da Academia Nacional de Medicina e
membro da Academia Brasileira de Letras.
O retórico Miguel Couto, pai,
eleito pelo Partido Economista
do Distrito Federal, era a maior
expressão da "bancada médica", que contava com 60 membros, incluindo a paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher ("e que médica!",
bradou Couto da tribuna) brasileira na Câmara.
A maioria da bancada defendia, com teses "científicas" que
vinham do darwinismo social e
da eugenia racial, surgidos na
Europa na segunda metade do
século 19, a necessidade do
"branqueamento" da população brasileira.
Médicos como o destacado
sanitarista Artur Neiva, eleito
pelo PSD da Bahia (foi interventor naquele Estado em
1931), e Antonio Xavier de Oliveira, eleito pela Liga Eleitoral
Católica do Ceará, encheram
boa parte dos 22 volumes dos
anais da constituinte com ataques aos degenerados "aborígenes nipões".
Ainda que no corpo final da
Constituição de 34 o espírito
"niponófobo" resultasse
abrandado, a emenda teve
aprovação acachapante: 171 votos contra 26. O texto estabelecia cotas (2% do total de ingressantes no país nos últimos
50 anos) sem fazer menção a
raça ou nacionalidade e proibia
a concentração populacional
de imigrantes.
Insolúvel como enxofre
Uma dúzia de anos depois,
em 27 de agosto de 1946, o ex-vice-presidente da República,
senador pelo PDS mineiro e
presidente da Constituinte,
Fernando de Melo Viana, colocou em votação a emenda de
Couto Filho (que viria a ser, em
1953, o primeiro ministro da
Saúde, em cargo criado por Getúlio Vargas, e, entre 1955 e 58,
governador do Rio).
O deputado Prado Kelly, da
UDN do Rio, achava que ela
"amesquinharia a nossa obra" e
propôs que fosse deslocada para as disposições transitórias.
Na hora do voto, 99 constituintes favoráveis à proibição
da imigração de japoneses ficaram sentados; os que eram contra a emenda levantaram-se, e
também eram em número de
99. Melo Viana, o voto de Minerva, foi contra -e a Constituição de 1946 não se amesquinhou.
Um dos ideólogos do antiniponismo era Francisco José de
Oliveira Vianna, autor de "Populações Meridionais do Brasil" (1918), considerado um
clássico do pensamento nacional. Além dessa obra, Oliveira
Vianna é notoriamente reconhecido pela autoria de frases
como "os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam" e "o japonês é como enxofre: insolúvel".
Quando, no raiar do século
20, começaram as especulações em torno de uma possível
imigração japonesa, o diplomata, primeiro biógrafo de d. João
6º e encarregado de negócios
da inaugural missão diplomática brasileira no Japão, Manuel
de Oliveira Lima, deu parecer
contra o projeto.
Em 1901, ele escreveu ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de
o brasileiro se misturar com
"raças inferiores".
Na sua edição de 5 de dezembro de 1908, a revista carioca
"O Malho" editava uma página
de charges criticando a imigração de japoneses. Em uma das
legendas, lia-se: "O governo de
São Paulo é teimoso. Após o insucesso da primeira imigração
japonesa, contratou 3.000
amarelos. Teima pois em dotar
o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa".
Os japoneses passaram a sofrer uma discriminação múltipla: à visão de uma raça inferior
vieram se somar os temores
com relação ao expansionismo
militarista do império nipônico
(após as vitórias nas guerras
contra a China, em 1895, e a
Rússia, em 1905) e o ressentimento pela sensação de que o
imigrante japonês resistia a se
integrar -era "inassimilável",
um "quisto", conforme o vocabulário do momento.
Os "súditos do Eixo"
As idéias racistas, a paranóia
derivada da ameaça do "perigo
amarelo" (a expressão é atribuída ao kaiser Guilherme 2º,
da Alemanha, quando incitou
os russos a guerrearem contra
o Japão; mas ela ganhou força
na crise da imigração japonesa
nos EUA. De lá teria vindo para
o Brasil) passam a tomar forma
de ação ao se articular com as
forças repressivas.
Com o acirramento dos sentimentos nacionalistas a partir
do Estado Novo, em 1937, e
com a entrada do Japão na Segunda Guerra ao atacar Pearl
Harbor, em dezembro de 1941,
o preconceito antinipônico deixa de atuar apenas no campo
das idéias. Uma série de medidas contra os "súditos do Eixo"
-alemães, italianos e japoneses- foram tomadas, e algumas
delas foram particularmente
doloridas para a comunidade
nikkei no Brasil.
Mais de 200 escolas de japonês foram fechadas. A língua japonesa foi proibida de ser falada em público; para a maioria
dos nipônicos no país, essa era
a única forma de se comunicar.
A publicação dos jornais em
japonês ficou muito cara (passou a ser obrigatória a edição
bilíngüe, japonês-português), e
eles deixaram de circular. Em
1939, uma pesquisa da Estrada
de Ferro Noroeste, de São Paulo, mostrava que 87,7% dos japoneses assinavam jornais na
sua língua materna, um índice
altíssimo para os padrões do setor no Brasil.
Os bens das empresas nipônicas foram confiscados. Japoneses não podiam viajar sem
salvo-conduto. Aparelhos de
rádios pertencentes às famílias
eram apreendidos -para que
não se ouvissem transmissões
em ondas curtas do Japão.
Os "súditos do imperador"
estavam proibidos de dirigir
veículos de sua propriedade,
mesmo os comerciais -os choferes tinham que ser designados por uma autoridade policial brasileira.
Sem que houvesse indícios
de que organizações político-militares ligadas às armas imperiais do Japão estivessem
atuando no país (como foi o caso de núcleos do Partido Nazista entre os imigrantes alemães), civis japoneses e muitos
de seus descendentes nascidos
no Brasil foram tratados como
prisioneiros de guerra.
Em 1942, a colônia japonesa
que serviu para o cultivo da pimenta em Tomé-Açu, no Pará,
foi transformada em campo de
concentração (expressão da
época), embora nenhuma atividade contra a "segurança nacional" por parte de seus membros tivesse sido detectada.
De Washington, o embaixador brasileiro Carlos Martins
Pereira e Sousa incentivava o
Brasil a adotar, a exemplo dos
EUA, os "campos de internamento": áreas de confinamento
para as quais foram levados,
sem respaldo jurídico, mais de
120 mil nisseis (muitos já cidadãos americanos). Eles viveram nesses "campos-prisão"
até o final da guerra, em condições humanas precárias.
A delação -como diz Tzvetan Todorov, a delação no Estado totalitário é um modo de colocar "o terror à disposição de
todos"- contra os japoneses
tornava-se popular. "Desavenças de vizinhos, dívidas não pagas e até brigas de crianças
eram motivos para que os japoneses fossem delatados anonimamente às autoridades", conta Fernando Morais em "Corações Sujos".
A suspeita não tinha limites:
em dezembro de 1942, o jornalista Hideo Onaga e um grupo
de jovens foram presos em um
piquenique na represa Eldorado, distrito de Santo André
(SP), porque havia uma desconfiança de que eles estivessem construindo um submarino (!), conforme relatou à historiadora Marcia Yumi Takeuchi. Marchinhas de Carnaval
ironizavam Hiroito e a "terra
do micado".
Os pintores japoneses do
grupo Seibi (Tomoo Handa e
Yoshiya Takaoka, entre outros), que se reuniam para pintar na rua e no campo, foram
obrigados a entrar em reclusão
e atuar clandestinamente, o
que não ocorreu com o grupo
Santa Helena, por exemplo,
composto em sua maioria por
italianos.
Cômodos no porão
Em 10 de julho de 1943, sem
aviso prévio, cerca de 10 mil
"súditos do Eixo" (90% eram
japoneses) foram obrigados a
abandonar Santos em poucas
horas, deixando todos os seus
bens para trás.
Em 3 de maio de 1944, o delegado-chefe do serviço de salvo-condutos, José Antonio de Oliveira, nega pedido de Miya Tekeuti, que estava em São Paulo
e queria voltar a residir na Baixada Santista para ficar perto
dos sete filhos, o menor deles
com 12 anos.
A ladeira Conde de Sarzedas,
no centro de São Paulo, foi um
marco para os japoneses. O aluguel dos cômodos nos porões
dos sobrados era uma bagatela,
e grupos de japoneses passaram a morar nesses quartos, a
partir de 1912. Ela passa a ser
conhecida como a rua dos Japoneses, iniciando a história da
Liberdade como o bairro nipônico -nasciam ali os primeiros
restaurantes japoneses da capital
paulista. Em 2 de fevereiro de
1942, os já numerosos nikkeis da
Conde de Sarzedas e da rua dos Estudantes são acordados durante a
noite por agentes do Dops; foram
avisados de que teriam de abandonar a área em 12 horas. A cena se
repetiria na véspera do Sete de Setembro, desta vez com os japoneses tendo dez dias para se mudarem definitivamente da região.
Em 25 de maio de 1945, a mais
famosa dupla do jornalismo brasileiro, composta pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean
Manzon, publica, em "O Cruzeiro", uma matéria-ilustração inspirada em algo parecido feito pela
americana "Time", com o objetivo
de ensinar os brasileiros a distinguirem um japonês de um chinês.
O japonês, segundo Nasser, entre outras coisas, é "de aspecto repulsivo, míope, insignificante".
Nas palavras do historiador Roney Cytrynowicz, em seu livro sobre o impacto da Segunda Guerra
no dia-a-dia do paulistano ("Guerra sem Guerra"), "a opressão contra os imigrantes japoneses, diferente do que ocorreu com italianos
e alemães em São Paulo, deixa claro que o Estado Novo moveu contra eles -a pretexto de acusação
de sabotagem- uma campanha
racista em larga escala".
Com o fim da Segunda Guerra,
os japoneses ganharam mais estigmas: os de fanáticos e terroristas.
Eles estavam ligados às ações da
organização Shindô-Renmei, uma
tentativa desesperada de preservar o espírito nipônico e a veneração ao imperador japonês em terras estrangeiras, de criar uma pátria para despatriados.
Seus membros jamais aceitaram
"suportar o insuportável", não
atendendo às históricas palavras
de Hiroito ao comunicar aos súditos, por rádios e alto-falantes, a
rendição japonesa.
Em um dos casos históricos
mais curiosos de tentativa radical
e desesperada de preservação de
um passado em terra estrangeira,
os membros da Shindô-Renmei
(31.380 nisseis, segundo a polícia
paulista, eram suspeito de pertencer à organização; em 1946, o Dops
fichou 376 deles) e a maioria da comunidade japonesa no Brasil se
recusavam a aceitar que o Japão
havia perdido a guerra. A organização matou 23 e feriu 147 nipônicos, acusando de serem "derrotistas" aqueles que aceitavam a derrota do império do sol nascente.
Linchamento
Por causa do assassinato do caminhoneiro Pascoal de Oliveira, o
Nego, pelo -também caminhoneiro- japonês Kababe Massame,
após uma discussão, em 31 de julho de 1946, a população de Osvaldo Cruz (SP), que já estava à flor da
pele com dois atentados da Shindô-Renmei na cidade, saiu às ruas
e invadiu casas disposta a maltratar "impiedosamente", na palavra
do historiador local José Alvarenga, qualquer japonês que encontrasse pela frente.
O linchamento dos japoneses só
foi totalmente controlado com a
intervenção de um destacamento
do Exército, vindo de Tupã, chamado pelo médico Oswaldo Nunes, um herói daquele dia totalmente atípico na história de Osvaldo Cruz e das cidades brasileiras.
Com o final da Segunda Guerra
Mundial, o eclipse do Estado Novo
e o desmantelamento da Shindô-Renmei, inicia-se um ciclo de
emudecimento, de ambos os lados,
sobre as quatro décadas de intolerância vividas pelos japoneses. Do
lado local, foi sedimentando-se no
mundo das letras a idéia do país
como um "paraíso racial".
Do lado dos imigrantes, as segundas e terceiras gerações de filhos de japoneses se concentraram, a partir da década de 1950, na
construção da sua ascensão social.
A história foi sendo esquecida,
junto com o idioma e os hábitos
culturais de seus pais e avós.
Como diz a historiadora Priscila
Nucci, da Unicamp, no seu trabalho "Os Intelectuais Diante do Racismo Antinipônico no Brasil
-Textos e Silêncios", até os estudos
sobre a imigração japonesa passaram a se focar nas questões ligadas
à "assimilação, integração e aculturação", deixando um vácuo, um
"silenciamento ou minimização
das discussões sobre o racismo
contra os japoneses no Brasil".
MATINAS SUZUKI JR. é jornalista.
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