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A SOLUÇÃO
PARCIAL
A HISTORIADORA MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO, QUE ESTÁ LANÇANDO "O ANTI-SEMITISMO NAS AMÉRICAS", DESCOBRE DOCUMENTOS QUE PROVAM QUE O BRASIL NEGOU VISTO A 9.000 JUDEUS DURANTE A 2ª GUERRA
MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Circulares secretas,
vistos negados, livros
clandestinos, disputas políticas nos bastidores do poder. A
história do anti-semitismo no
Brasil e, por extensão, no continente americano tem muitos
elementos ainda pouco conhecidos em seu enredo.
"O Anti-Semitismo nas Américas" (Edusp, 744 págs., R$
98), organizado pela professora
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP Maria Luiza Tucci Carneiro joga luzes sobre esse aspecto
ainda pouco estudado da nossa
história e desmonta algumas
idéias consolidadas sobre personalidades históricas, como o
diplomata Oswaldo Aranha
(1894-1960), que é considerado
um dos principais articuladores na ONU (Organização das
Nações Unidas) a favor da criação do Estado de Israel.
Especialista na era Vargas e à
frente do Leer (Laboratório de
Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação), Tucci
Carneiro teve acesso ao Arquivo Histórico do Itamaraty e obteve cópias de farta documentação, segundo a qual ao menos 9.000 vistos de judeus de diversos países, fugindo da perseguição nazista, foram negados.
"Perdemos importantes intelectuais, cientistas, técnicos,
artistas", diz ela, também autora de importante livro sobre o
período -"O Anti-Semitismo
na Era Vargas - Fantasmas de
uma Geração, 1930-1945" (ed.
Perspectiva).
A seguir, trechos da entrevista dada à Folha.
FOLHA - Em seu novo livro, é defendida a idéia de que o anti-semitismo
está renovado. Como a sra. define
essa nova roupagem?
MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO - Em
primeiro lugar, acho importante definir o anti-semitismo como um fenômeno político e social. Ele é uma construção do
homem, porque ninguém nasce anti-semita e ninguém nasce
racista. Ele prolifera, principalmente, por meio da educação.
Também considero o anti-semitismo um fenômeno cultural, encontrado hoje não apenas na Europa, mas em vários países das Américas. No Brasil,
ocorre um revigoramento e
uma reorganização de grupos
neonazistas, que retomam esse
anti-semitismo moderno, mas
com nova roupagem.
FOLHA - Quando o escritor português José Saramago fala que o horror imposto por Israel contra os palestinos é equivalente ao que os nazistas fizeram, a sra. acha que ele está contribuindo para esse novo anti-semitismo? A sra. é favorável à criação de um Estado palestino?
TUCCI CARNEIRO - Acho, e não é
apenas Saramago. Sou favorável a um Estado palestino assim como sou favorável ao Estado de Israel. E acho que só no momento em que esses dois
Estados estiverem estruturados é que poderemos pensar,
realmente, numa abertura para
a paz no Oriente Médio.
FOLHA - Existe alguma ligação entre os grupos separatistas e os grupos racistas do Sul do Brasil? Por que
nessa região eles aparentemente
são mais ativos?
TUCCI CARNEIRO - Temos um
passado histórico que poderia,
em parte, explicar essas posições separatistas e anti-semitas mais explícitas. Há hoje
grupos de neonazistas atuantes
no Paraná, no Rio Grande do
Sul e, sobretudo, em São Paulo.
Temos de lembrar que essas
regiões foram áreas importantes de colonização alemã. Foram delas, principalmente de
Santa Catarina e do Rio Grande
do Sul, de suas colônias de alemães, que saíram importantes
contingentes de soldados que
foram lutar ao lado da Alemanha nazista, a partir do início
da Segunda Guerra.
Esse é um lado da história
que está para ser ainda contado, que é a contribuição das colônias alemãs radicadas aqui
no Brasil e que ocuparam cargos importantes na burocracia
do Terceiro Reich e também no
Exército alemão.
Você tem importantes famílias de alemães que levaram
seus filhos, foram acompanhados de suas mulheres e que foram servir não apenas ao Exército, mas foram servir como
engenheiros, como médicos.
Muitas mulheres trabalharam como secretárias, datilógrafas, enfermeiras durante a
Segunda Guerra Mundial. Após
o fim da guerra, os nazistas passarão a ser rotulados de criminosos de guerra, e vários deles
serão perseguidos e convocados ante os tribunais. Aí ocorre
uma verdadeira fuga desses
segmentos de imigrantes alemães brasileiros.
Estou me referindo ao caso
do Brasil, o que não quer dizer
que não tenham existido casos
assim em outros países. Mas,
no caso do Brasil, havia milhares de alemães e filhos de alemães que estavam servindo na
Alemanha.
Terminada a Segunda Guerra, eles retornaram.
Essa é uma história que está
para ser contada, é uma pesquisa que eu desenvolvo e que
trata, exatamente, do "caminho dos ratos".
Quer dizer, é a fuga desses
"missionários do Reich", que,
por meio da Missão Militar
Brasileira sediada em Berlim e
Frankfurt, retornarão ao Brasil, após passar pelo processo
de "desnazificação".
Eles assinam um documento
para essa missão militar afirmando que, a partir daquele
momento, abrem mão de sua
condição anterior. Isso tudo
aconteceu a partir de 1946.
Pretendo lançar um livro sobre o assunto no ano que vem.
FOLHA - O livro desmonta a imagem mais conhecida de Oswaldo
Aranha, que é visto como grande
mentor e articulador político-diplomático na criação do Estado de Israel
dentro da ONU. A partir dos documentos que a sra. obteve no Itamaraty, pode-se perceber que os anos
Vargas não tinham uma política
aberta aos judeus.
TUCCI CARNEIRO - Hoje, acho que
essa perspectiva sobre Aranha
é vista de forma bem mais crítica, não só pelos meus estudos.
Depois de "O Anti-Semitismo
na Era Vargas", surgiram vários outros, complementando
essa documentação, que, na
época, eu não havia conseguido
consultar e que, nesses últimos
dez anos, outros historiadores
investigaram.
Há o exemplo de Fábio Koifman, que foi investigar toda a
trajetória heróica de [diplomata Luiz Martins, 1876-1954]
Souza Dantas e que resultou no
livro "Quixote nas Trevas" (ed.
Record, esgotado).
O historiador Avraham Milgram também escreve aqui sobre os vistos não concedidos
aos judeus pelo Itamaraty.
FOLHA - Como foi a política em relação aos judeus na era Vargas?
TUCCI CARNEIRO - Oswaldo Aranha teve um papel muito importante, durante o Estado Novo, quando era chanceler, pois
era um americanófilo convicto.
Então, fez pressão constante
para que o Brasil não tendesse
para o lado da Alemanha nazista e alertou, em vários momentos, que, se Vargas tomasse essa posição, ele estaria entrando
em conflito com os EUA.
Há vários documentos de
Oswaldo Aranha tentando conter Vargas nessas manifestações muitos explícitas a favor
da Alemanha nazista.
Acho que ele foi uma "rédea
de controle" muito importante
para que o Brasil realmente
não tendesse para o lado do Eixo. Acho, porém, que temos de
rever esse ponto , geralmente
omitido ao longo desses anos
todos, que é essa sua postura
como chanceler que mantém
as circulares secretas. Ele fez
com que essas circulares fossem realmente colocadas em
prática.
Em um determinado momento, no Ministério da Justiça e Negócios Exteriores, havia
Francisco Campos [1891-1968],
que era outro anti-semita contundente e que iria tomar as rédeas, por exemplo, na aplicação
dessas circulares secretas.
Havia dois ministérios importantíssimos do governo
Vargas, o da Justiça e o das Relações Exteriores, dois homens, um pró-EUA, que é o Oswaldo Aranha, e o outro germanófilo e anti-semita, que é o
Campos. Havia, no nível do Estado, um constante clima de
tensão e de luta pelo poder.
Mas há uma constante na
aplicação das circulares secretas. O que tenho procurado demonstrar nas pesquisas é que
são raríssimos os casos de diplomatas que irão tomar o partido dos judeus.
No Conselho de Imigração e
Colonização, do qual participavam todos os ministérios, é que
eram resolvidas as circulares
secretas, a prática dessas circulares, as proibições à vinda de
semitas. Acredito que futuramente poderemos ter a dimensão de quantos vistos foram negados. Já identifiquei até agora
mais de 9.000 vistos negados.
FOLHA - No livro, é dito que, mesmo após Vargas, ainda são mantidas as circulares secretas.
TUCCI CARNEIRO - Depois da
guerra, ocorre a divulgação das
atrocidades cometidas pelos
nazistas e vêm a público aquelas primeiras imagens do dia da
libertação dos campos de concentração. Apesar disso, o governo brasileiro editou duas
novas circulares secretas.
Em 1938, houve fotografias
que foram enviadas por um diplomata brasileiro, Jorge Latour, representante de negócios do Brasil em Varsóvia. Ele as envia para o governo brasileiro ver como não interessaria
a entrada de judeus, pois seriam velhos, sujos, doentes...
Faz um relatório [sobre o tema] com mais de 30 páginas.
Esse Jorge Latour é a expressão máxima do anti-semitismo
na diplomacia brasileira. Em
1946, foi nomeado pelo governo Dutra para ser o presidente
do Conselho de Imigração e
Colonização; e editaria as duas
novas circulares.
FOLHA - Como a sra. vê a política
externa do Brasil em relação a Israel
e aos países árabes?
TUCCI CARNEIRO - Acho que hoje
o governo brasileiro é muito
mais pró-árabes do que pró-Israel. Mantém uma postura dúbia com relação ao Estado de
Israel. Ele se posiciona a favor
de Israel muito por pressão dos
EUA, quando eles estão à frente dos acordos de paz.
Durante a partilha da Palestina e, depois, após a criação do
Estado de Israel, o Brasil demorou em reconhecer o Estado
de Israel, em 1949.
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