São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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+ sociedade

Hoje já está claro que o presidente francês manipulava uma série de segredos

Mitterrand, 20 anos depois

por Luiz Felipe de Alencastro

Vinte anos depois da tonitruante vitória de François Mitterrand (1916-1996) na eleição presidencial de maio de 1981, a França faz um balanço do mitterrandismo e das realidades e ilusões do socialismo democrático. O evento forma o conhecido efeito bola-de-neve na mídia: os editores publicam e reeditam livros sobre Mitterrand, as revistas e os jornais enveredam pelo mesmo tema, enquanto a TV amplifica o fenômeno. No fio desse aparato todo, a emissão que ficará como referência central do debate na mídia será a série apresentada pelo canal France 2.
Trata-se de cinco horas de entrevistas de Mitterrand a um conhecido jornalista da TV francesa, filmadas sigilosamente em 1993-1994 e mantidas em segredo para serem divulgadas após a morte do ex-presidente. O impacto dos programas da série é bastante forte. Quando as entrevistas começam, Mitterrand estava exercendo a função havia 12 anos seguidos e está a dois anos do final de seu segundo mandato. Nunca, na história republicana francesa, um presidente eleito pelo voto direto havia ficado tanto tempo no poder. Mitterrand tem uma pose quase estática, a pose dos homens e mulheres, dos reis e das rainhas que exerceram longamente o poder, conforme registraram os cronistas das cortes do Antigo Regime. Suas respostas são definitivas, seus sorrisos se estancam no meio dos lábios, sua curiosidade é dissimulada, seu fastio é quase ostensivo. Toda a sua atitude passa uma impressão de distância e de indiferença à vida imediata.
Mas a atmosfera no Elysée, palácio presidencial onde foram realizadas as entrevistas, começava a tomar um tom crepuscular. O governo socialista de Pierre Bérégovoy sofrera uma derrota esmagadora nas eleições legislativas de março de 1993 e a direita se tornara de novo majoritária no Parlamento. Atravessando dramas pessoais e políticos, Pierre Bérégovoy, velho amigo de Mitterrand, se suicidou poucos dias depois do fiasco eleitoral de seu partido. Em seguida, foi assassinado o ex-colaborador dos nazistas René Bousquet, a quem Mitterrand sempre se mantivera ligado.

O segredo da morte Nesse contexto carregado, o rosto vincado do presidente começava a evidenciar o boato que corria em Paris desde o início dos anos 80: um câncer roía o organismo de François Mitterrand. Duas ou três vezes, falando abstratamente, ele alude a doenças incuráveis e à hipótese de não terminar seu mandato. O entrevistador nem pia, as frases passam em branco e se transformam agora num recado espertamente mandado de além-túmulo para seus compatriotas: eu manipulava o segredo de minha morte iminente!
Na realidade, em 2001 já ficou claro que Mitterrand manipulava muitos outros segredos. Antes de morrer, ele próprio assentiu, diante das provas de um livro muito bem documentado (Pierre Péan, "Une Jeunesse Française", Uma Juventude Francesa, Fayard, 1994), seu envolvimento com o regime colaboracionista de Vichy no início da ocupação alemã. Toda uma série de atitudes (incluindo aí suas manobras para travar o processo, nos anos 80, de René Bousquet, acusado de facilitar deportações de judeus na Segunda Guerra) patenteavam sua ambiguidade nos primeiros anos da ocupação nazista na França. Seu passado de político da Quarta República (1944-1959) também continha pontos obscuros e controvérsias. Enfim, o balanço de seus mandatos presidenciais passou a ser abertamente criticado pela esquerda.
Referindo-se às duas Presidências de Mitterrand (1981-1995) e aos anos subsequentes, quando sua influência ainda dominava a esquerda, Alain Touraine pensa que, excetuada a abolição da pena de morte (1981), tudo não passou de enrolação. "Vinte Anos Perdidos", tal é o titulo de seu artigo ("Libération", 7/5/ 2001). Para Touraine, a esquerda só se renovou depois da eleição de Jospin (1997).

Velha esquerda "Os otimistas, entre os quais me situo", escreve Touraine, "dirão que o governo Jospin colocou a velha esquerda a serviço de uma nova França, enquanto Mitterrand tinha posto um país modernizado ao serviço da velha esquerda; os pessimistas pensarão que (...) o método Mitterrand, que consistia em abraçar o Partido Comunista (PC) para sufocá-lo, mostrou que seu custo era enorme, e seus resultados, decepcionantes, pois, em 2001, o Partido Socialista (PS) continua a ajudar o PC a sobreviver, por causa da dificuldade de achar um outro aliado".
Há aqui um acerto de contas entre Touraine, defensor da esquerda herdeira de Maio de 68, apostando na sociedade civil, no multiculturalismo e nos mecanismos de mercado ("gauche sociétale"), de um lado, e, de outro, a esquerda estatista ("gauche étatique"), baseada nas doutrinas da Frente Popular (1936-1937), na intervenção estatal, no jacobinismo centralista e na aliança entre comunistas e socialistas, defendida e praticada por Mitterrand e seus seguidores.
Ora, situado no pólo oposto, Jean-Pierre Chevènement, ex-ministro de vários governos socialistas, sob a presidência de Mitterrand e Chirac e expoente da "gauche étatique", também acha que Mitterrand deu com os burros n'água. Para ele, sob pretexto de construir a Europa, Mitterrand abandonou o programa socialista e se rendeu ao projeto liberal de Helmut Kohl, eleito primeiro-ministro alemão em 1982. Chevènement pensa ainda que a esquerda foi pouco rigorosa em matéria de política industrial e, mais globalmente, "não converteu o Estado republicano num instrumento de ambição social". Para ele, do ponto de vista do programa socialista, o segundo mandato presidencial de Mitterrand não serviu para nada ("Le Monde", 5/5/2001).
Os especialistas que estudaram os indicadores econômicos do período tenderiam a dar razão a Chevènement: no processo de modernização levado a cabo entre 1980 e 1995 foram os capitalistas -e em particular quem aplicou seu dinheiro em ações- que se saíram bem. Assim, o valor médio das ações francesas atingiu em 1995 um nível sete vezes mais alto do que em 1980. "Uma alta vertiginosa que não tem equivalente na longa história do capitalismo francês", escreve o historiador econômico Jacques Marseille ("L'Histoire - Le Dossier Mitterrand", 4/ 2001). Enquanto isso, o salário anual do operário francês subiu pouco mais de 5% nesse mesmo período.
Ou seja, houve uma quase estagnação salarial no meio operário nos 15 anos de presidência de Mitterrand. Entretanto o sistema de proteção social, a educação nacional e os transportes geridos pelo setor público francês se mantiveram e se modernizaram. Nada a ver com o que sucedeu na Inglaterra, onde a privatização desorganizou alguns setores a ponto de suscitar atualmente um movimento em favor da renacionalização dos transportes públicos.
A análise de Chevènement toca num outro ponto essencial: se há algo que ninguém questiona na biografia de Mitterrand são suas convicções pró-européias. Com efeito, ministro dos ex-combatentes, Mitterrand participou do Congresso de Haia, em maio de 1948, quando, sob a presidência de honra de Winston Churchill (1874-1965), 800 líderes políticos europeus lançaram a idéia da União Européia. Em seguida, ele acompanhou de perto a preparação das diferentes etapas que levaram ao Tratado de Roma (1957), criando a Comunidade Econômica Européia, embrião da atual União Européia. Nos anos 80 e 90, sua amizade constante e direta com Helmut Kohl facilitou o avanço do processo de unificação européia. Graças a essas relações de confiança mútua, os dois dirigentes negociaram o passo essencial decidido após a queda do Muro de Berlim (1989): em troca do apoio francês à reunificação alemã, a Alemanha aceitava abandonar sua moeda nacional, o marco.
Acordo inscrito pouco depois no Tratado de Maastricht (1992), instituindo a criação de uma moeda única, o euro, que passará a circular na União Européia daqui a sete meses, no início de 2002.
Há razões objetivas para pensar que ainda é cedo para fazer um balanço político dos anos Mitterrand. Afinal de contas o atual Partido Socialista, não obstante uma renovação programática, é ainda, na sua maioria, um partido composto por quadros e militantes formados sob o mitterrandismo. O governo de Lionel Jospin mantém um nível elevado e constante de popularidade. Salvo alguma surpresa derivada do feitio um pouco complicado do atual primeiro-ministro, tudo indica que as chances de Jospin diante de Chirac, nas próximas eleições presidenciais de 2002, são bastante razoáveis. Nessas circunstâncias a sombra de Mitterrand continuará ainda presente no Palácio Elysée.
Resta que em 2001 é possível também avaliar a extraordinária coragem de Mitterrand diante da doença que o consumia. Como é sabido, o médico pessoal do presidente, o dr. Gubler, descreveu as dimensões do drama ("Le Grand Secret", O Grande Secreto, Plon, 1996). O livro acabou sendo proibido por uma decisão da Justiça, a pedido da família de Mitterrand. Mas alguns milhares de exemplares foram vendidos antes da proibição. O presidente soube que estava com câncer na próstata alguns meses após sua posse, em novembro de 1981. As estatísticas conhecidas davam de três meses a três anos de vida aos doentes atingidos por esse tipo de câncer. Mitterrand luta contra o mal -em silêncio, obstinadamente- durante 14 anos.
Como escreve o historiador Pierre Nora: "François Mitterrand terá, no final das contas, levado duas vidas paralelas: a de presidente da República e, outra, de grande enfermo; uma, arquipública, sorriso nos lábios, deslocamentos constantes e recepções...; outra, arquiclandestina, a vida da luta secreta contra a dor e os olhares" ("Le Débat", nš 91, 1996). Como nota o próprio Nora, um homem capaz de sustentar uma longa luta dessas é alguém excepcional.


Luiz Felipe de Alencastro é professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul" (Companhia das Letras).


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