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+ sociedade
Hoje já está claro que o presidente francês manipulava uma série de segredos
Mitterrand, 20 anos depois
por Luiz Felipe de Alencastro
Vinte anos depois da tonitruante
vitória de François Mitterrand
(1916-1996) na eleição presidencial de maio de 1981, a França faz
um balanço do mitterrandismo e das
realidades e ilusões do socialismo democrático. O evento forma o conhecido
efeito bola-de-neve na mídia: os editores
publicam e reeditam livros sobre Mitterrand, as revistas e os jornais enveredam
pelo mesmo tema, enquanto a TV amplifica o fenômeno. No fio desse aparato todo, a emissão que ficará como referência
central do debate na mídia será a série
apresentada pelo canal France 2.
Trata-se de cinco horas de entrevistas
de Mitterrand a um conhecido jornalista
da TV francesa, filmadas sigilosamente
em 1993-1994 e mantidas em segredo para serem divulgadas após a morte do ex-presidente. O impacto dos programas da
série é bastante forte. Quando as entrevistas começam, Mitterrand estava exercendo a função havia 12 anos seguidos e
está a dois anos do final de seu segundo
mandato. Nunca, na história republicana francesa, um presidente eleito pelo
voto direto havia ficado tanto tempo no
poder. Mitterrand tem uma pose quase
estática, a pose dos homens e mulheres,
dos reis e das rainhas que exerceram longamente o poder, conforme registraram
os cronistas das cortes do Antigo Regime. Suas respostas são definitivas, seus
sorrisos se estancam no meio dos lábios,
sua curiosidade é dissimulada, seu fastio
é quase ostensivo. Toda a sua atitude
passa uma impressão de distância e de
indiferença à vida imediata.
Mas a atmosfera no Elysée, palácio presidencial onde foram realizadas as entrevistas, começava a tomar um tom crepuscular. O governo socialista de Pierre
Bérégovoy sofrera uma derrota esmagadora nas eleições legislativas de março de
1993 e a direita se tornara de novo majoritária no Parlamento. Atravessando
dramas pessoais e políticos, Pierre Bérégovoy, velho amigo de Mitterrand, se
suicidou poucos dias depois do fiasco
eleitoral de seu partido. Em seguida, foi
assassinado o ex-colaborador dos nazistas René Bousquet, a quem Mitterrand
sempre se mantivera ligado.
O segredo da morte Nesse contexto carregado, o rosto vincado do presidente começava a evidenciar o boato que
corria em Paris desde o início dos anos
80: um câncer roía o organismo de François Mitterrand. Duas ou três vezes, falando abstratamente, ele alude a doenças
incuráveis e à hipótese de não terminar
seu mandato. O entrevistador nem pia,
as frases passam em branco e se transformam agora num recado espertamente
mandado de além-túmulo para seus
compatriotas: eu manipulava o segredo
de minha morte iminente!
Na realidade, em 2001 já ficou claro que
Mitterrand manipulava muitos outros
segredos. Antes de morrer, ele próprio
assentiu, diante das provas de um livro
muito bem documentado (Pierre Péan,
"Une Jeunesse Française", Uma Juventude Francesa, Fayard, 1994), seu envolvimento com o regime colaboracionista de
Vichy no início da ocupação alemã. Toda
uma série de atitudes (incluindo aí suas
manobras para travar o processo, nos
anos 80, de René Bousquet, acusado de
facilitar deportações de judeus na Segunda Guerra) patenteavam sua ambiguidade nos primeiros anos da ocupação nazista na França. Seu passado de político
da Quarta República (1944-1959) também continha pontos obscuros e controvérsias. Enfim, o balanço de seus mandatos presidenciais passou a ser abertamente criticado pela esquerda.
Referindo-se às duas Presidências de
Mitterrand (1981-1995) e aos anos subsequentes, quando sua influência ainda
dominava a esquerda, Alain Touraine
pensa que, excetuada a abolição da pena
de morte (1981), tudo não passou de
enrolação. "Vinte Anos Perdidos", tal é o
titulo de seu artigo ("Libération", 7/5/
2001). Para Touraine, a esquerda só se renovou depois da eleição de Jospin (1997).
Velha esquerda "Os otimistas, entre os quais me situo", escreve Touraine, "dirão que o governo Jospin colocou a
velha esquerda a serviço de uma nova
França, enquanto Mitterrand tinha posto um país modernizado ao serviço da velha esquerda; os pessimistas pensarão
que (...) o método Mitterrand, que consistia em abraçar o Partido Comunista
(PC) para sufocá-lo, mostrou que seu
custo era enorme, e seus resultados, decepcionantes, pois, em 2001, o Partido
Socialista (PS) continua a ajudar o PC a
sobreviver, por causa da dificuldade de
achar um outro aliado".
Há aqui um acerto de contas entre
Touraine, defensor da esquerda herdeira
de Maio de 68, apostando na sociedade
civil, no multiculturalismo e nos mecanismos de mercado ("gauche sociétale"),
de um lado, e, de outro, a esquerda estatista ("gauche étatique"), baseada nas
doutrinas da Frente Popular (1936-1937),
na intervenção estatal, no jacobinismo
centralista e na aliança entre comunistas
e socialistas, defendida e praticada por
Mitterrand e seus seguidores.
Ora, situado no pólo oposto, Jean-Pierre Chevènement, ex-ministro de vários
governos socialistas, sob a presidência de
Mitterrand e Chirac e expoente da "gauche étatique", também acha que Mitterrand deu com os burros n'água. Para ele,
sob pretexto de construir a Europa, Mitterrand abandonou o programa socialista e se rendeu ao projeto liberal de Helmut Kohl, eleito primeiro-ministro alemão em 1982. Chevènement pensa ainda
que a esquerda foi pouco rigorosa em
matéria de política industrial e, mais globalmente, "não converteu o Estado republicano num instrumento de ambição
social". Para ele, do ponto de vista do
programa socialista, o segundo mandato
presidencial de Mitterrand não serviu
para nada ("Le Monde", 5/5/2001).
Os especialistas que estudaram os indicadores econômicos do período tenderiam a dar razão a Chevènement: no processo de modernização levado a cabo entre 1980 e 1995 foram os capitalistas -e
em particular quem aplicou seu dinheiro
em ações- que se saíram bem. Assim, o
valor médio das ações francesas atingiu
em 1995 um nível sete vezes mais alto do
que em 1980. "Uma alta vertiginosa que
não tem equivalente na longa história do
capitalismo francês", escreve o historiador econômico Jacques Marseille
("L'Histoire - Le Dossier Mitterrand", 4/
2001). Enquanto isso, o salário anual do
operário francês subiu pouco mais de
5% nesse mesmo período.
Ou seja, houve uma quase estagnação
salarial no meio operário nos 15 anos de
presidência de Mitterrand. Entretanto o
sistema de proteção social, a educação
nacional e os transportes geridos pelo setor público francês se mantiveram e se
modernizaram. Nada a ver com o que
sucedeu na Inglaterra, onde a privatização desorganizou alguns setores a ponto
de suscitar atualmente um movimento
em favor da renacionalização dos transportes públicos.
A análise de Chevènement toca num
outro ponto essencial: se há algo que ninguém questiona na biografia de Mitterrand são suas convicções pró-européias.
Com efeito, ministro dos ex-combatentes, Mitterrand participou do Congresso de Haia, em maio de 1948, quando, sob a
presidência de honra de Winston Churchill (1874-1965), 800 líderes políticos europeus lançaram a idéia da União Européia. Em seguida, ele acompanhou de
perto a preparação das diferentes etapas
que levaram ao Tratado de Roma (1957),
criando a Comunidade Econômica Européia, embrião da atual União Européia. Nos anos 80 e 90, sua amizade constante e direta com Helmut Kohl facilitou o avanço do processo de unificação européia. Graças a essas relações de confiança mútua, os dois dirigentes negociaram o passo essencial decidido após a queda do Muro de Berlim (1989): em troca do apoio francês à reunificação alemã,
a Alemanha aceitava abandonar sua
moeda nacional, o marco.
Acordo inscrito pouco depois no Tratado de Maastricht (1992), instituindo a criação de uma moeda única, o euro, que
passará a circular na União Européia daqui a sete meses, no início de 2002.
Há razões objetivas para pensar que
ainda é cedo para fazer um balanço político dos anos Mitterrand. Afinal de contas o atual Partido Socialista, não obstante uma renovação programática, é ainda,
na sua maioria, um partido composto
por quadros e militantes formados sob o
mitterrandismo. O governo de Lionel
Jospin mantém um nível elevado e constante de popularidade. Salvo alguma surpresa derivada do feitio um pouco complicado do atual primeiro-ministro, tudo
indica que as chances de Jospin diante de
Chirac, nas próximas eleições presidenciais de 2002, são bastante razoáveis.
Nessas circunstâncias a sombra de Mitterrand continuará ainda presente no
Palácio Elysée.
Resta que em 2001 é possível também
avaliar a extraordinária coragem de Mitterrand diante da doença que o consumia. Como é sabido, o médico pessoal do
presidente, o dr. Gubler, descreveu as dimensões do drama ("Le Grand Secret",
O Grande Secreto, Plon, 1996). O livro
acabou sendo proibido por uma decisão
da Justiça, a pedido da família de Mitterrand. Mas alguns milhares de exemplares foram vendidos antes da proibição. O
presidente soube que estava com câncer
na próstata alguns meses após sua posse,
em novembro de 1981. As estatísticas conhecidas davam de três meses a três anos
de vida aos doentes atingidos por esse tipo de câncer. Mitterrand luta contra o
mal -em silêncio, obstinadamente-
durante 14 anos.
Como escreve o historiador Pierre Nora: "François Mitterrand terá, no final
das contas, levado duas vidas paralelas: a
de presidente da República e, outra, de
grande enfermo; uma, arquipública, sorriso nos lábios, deslocamentos constantes e recepções...; outra, arquiclandestina, a vida da luta secreta contra a dor e os
olhares" ("Le Débat", nš 91, 1996). Como
nota o próprio Nora, um homem capaz
de sustentar uma longa luta dessas é alguém excepcional.
Luiz Felipe de Alencastro é professor de história
do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil
no Atlântico Sul" (Companhia das Letras).
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