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"Devotos da Cor", da historiadora Mariza Soares, analisa a redefinição de identidades das populações negras fixadas no Rio do século 18
Promessas descumpridas
Milton Ohata
especial para a Folha
Sem alarde, Mariza Soares escreveu
um livro todo ele singular. Pior para o resenhista, que a cada momento tem a sensação de retalhar
algo que de fato é muito vivo. E melhor
para o leitor, surpreso com o pequeno
mundo que aos poucos se mexe num cipoal de números, catados com paciência
no arquivo.
A história se passa no século 18 e nos limites do Atlântico Sul. O assunto é a reemergência de uma identidade étnica
africana no outro lado do oceano, depois
de arrancada de seu solo à força, pelo tráfico negreiro.
Ocorre que, ao reemergir, essa identidade já não é a mesma, pois teve que se
redefinir num outro espaço histórico. No
espaço de negociação e conflito em que a
prática do catolicismo é travejada pelas
relações sociais da colônia -nestas a
crueza da escravidão associa-se à etiqueta do Antigo Regime (a estetização da
política, o sistema de precedências e salamaleques, a suscetibilidade para o detalhe etc. -que no livro estão de modo sóbrio, com um mínimo de pitoresco).
Como vivencia sua religiosidade o pequeno grupo dos makis, originários da
Costa da Mina? Por meio de sucessivas
aproximações em diferentes planos, a
autora reconstitui o caminho da África
até o Rio de Janeiro, contando a história
da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia (dois santos católicos nascidos
na África), fundada em 1740 e que possui
sua igreja até hoje na rua da Alfândega,
219, centro do Rio, numa região de comércio popular conhecida como Saara.
Como não poderia deixar de ser, a reconstituição passa num primeiro momento pela história da expansão marítima portuguesa. De início, referindo a
longa experiência africana dos portugueses, desde
o século 15, e que no seu
imaginário distorceu a
geopolítica dos povos
africanos -distorção que
a autora precisou corrigir.
A seguir, passamos ao
tráfico negreiro. O desenvolvimento da economia mineradora estimulou o crescimento da cidade do Rio,
porto que escoava o ouro, além de receber os escravos que depois subiam às minas. Estes em sua maioria vinham de Angola. No entanto o ouro de Minas possibilitou a alguns traficantes fluminenses o
comércio na Costa da Mina, de preferência canalizado em direção à Bahia.
Durante o século 18, escravos minas,
entre os quais os makis, chegaram ao Rio
e, graças a um refluxo conjuntural na demanda por mão-de-obra em Minas Gerais, acabaram por se integrar à vida da
cidade.
Uma diferença em relação ao local de
batismo dos escravos (em Angola, os escravos eram batizados no porto de embarque, enquanto os da Costa da Mina
vinham ao Brasil sem batismo, ao menos
nessa época recebendo o sacramento
aqui) permitiu à autora um mergulho na
demografia escrava do
Rio e, em consequência,
uma definição tanto
quanto possível precisa
do lugar dos makis na cidade. A partir daí, entramos na parte mais rica e
original do livro, na confluência de história social
e história da igreja, no vivo da história
das irmandades. Um espaço institucional parcialmente regulado e que por isso
deu margem a certas liberdades de associação entre os praticantes da fé, a coesão
alimentando-se do conflito.
É aqui que a identidade maki reemerge
num grupo social definido, o dos escravos alforriados que puderam subir um
pouco na escala social, que são proprietários de outros escravos, têm alguma fumaça de fidalguia e se converteram ao
catolicismo. Transfigurando-se, a identidade maki reemerge aos poucos, em primeiro lugar no embate com a prática religiosa dos brancos e, em seguida, com a
prática dos angolas (grupo majoritário
na cidade), a prática dos grupos não-angolas e, por último, com a prática dos
grupos minas.
Ainda nesse sentido, a autora vai descendo a outras minúcias -sempre esclarecedoras- do cotidiano da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigênia: a
guerra entre religião oficial e feitiçaria,
entre os sexos, entre veteranos e novatos,
as intrigas de sacristia e, por que não?, as
picuinhas nas quais o leitor chega a sentir a pisada no calo alheio.
O resultado desses conflitos múltiplos
fica exposto nas festas da igreja, notadamente nas suas folias de reis. Por fim a
história se completa num movimento
circular: para justificar a cisão e consequente formação de um subgrupo maki
na irmandade, se invoca a identidade étnica por meio de uma distorção do seu
próprio passado, distorção que reproduz
quase literalmente o imaginário português da conquista da costa africana.
Ao combinar história e antropologia, a
autora vai cercando pacientemente seu
assunto, com perguntas certeiras, um
exaustivo trabalho de ordenação de dados, "close-reading" de documentos etc.
É desse modo, segura e serena, que mostra os limites dos estudos pioneiros sobre
as religiões africanas no Brasil, estudos
de gente como Arthur Ramos e Roger
Bastide. Discretamente, é como se puxasse a orelha de Pierre Fatumbi Verger,
sugerindo quão rica seria uma passagem
mais articulada entre os números do tráfico negreiro ("Fluxo e Refluxo"), a história social (dispersa em "Notícias da Bahia - 1850", "Os Libertos" e "Artigos - 1")
e a prática da religião africana ("Notas
sobre o Culto aos Orixás e Voduns").
Na prática religiosa dos pobres brasileiros, do século 18 até hoje, o tempo passou e não passou. O caráter de nossa economia e de nossa política fizeram com
que a abolição da escravatura não cumprisse suas promessas. Desde então, como um desafio à imaginação política,
nossa herança colonial é retrabalhada a
cada onda de modernização. Na que estamos vivendo agora, é grande a tendência para a exclusão social. Como fica a vida popular? Nesse sentido, o assunto de
Mariza Soares continua aqui ao lado.
Penso, por exemplo, nas afinidades deste
livro com "Santo Forte" (1998), o documentário de Eduardo Coutinho.
Devotos da Cor
304 págs., R$ 30,00
de Mariza de Carvalho Soares.
Ed. Record (rua Argentina, 171,
CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
585-2000).
Milton Ohata é doutorando em história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Apoio à
Pesquisa do Estado de São Paulo).
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