São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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"Devotos da Cor", da historiadora Mariza Soares, analisa a redefinição de identidades das populações negras fixadas no Rio do século 18

Promessas descumpridas

Milton Ohata
especial para a Folha

Sem alarde, Mariza Soares escreveu um livro todo ele singular. Pior para o resenhista, que a cada momento tem a sensação de retalhar algo que de fato é muito vivo. E melhor para o leitor, surpreso com o pequeno mundo que aos poucos se mexe num cipoal de números, catados com paciência no arquivo.
A história se passa no século 18 e nos limites do Atlântico Sul. O assunto é a reemergência de uma identidade étnica africana no outro lado do oceano, depois de arrancada de seu solo à força, pelo tráfico negreiro.
Ocorre que, ao reemergir, essa identidade já não é a mesma, pois teve que se redefinir num outro espaço histórico. No espaço de negociação e conflito em que a prática do catolicismo é travejada pelas relações sociais da colônia -nestas a crueza da escravidão associa-se à etiqueta do Antigo Regime (a estetização da política, o sistema de precedências e salamaleques, a suscetibilidade para o detalhe etc. -que no livro estão de modo sóbrio, com um mínimo de pitoresco).
Como vivencia sua religiosidade o pequeno grupo dos makis, originários da Costa da Mina? Por meio de sucessivas aproximações em diferentes planos, a autora reconstitui o caminho da África até o Rio de Janeiro, contando a história da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia (dois santos católicos nascidos na África), fundada em 1740 e que possui sua igreja até hoje na rua da Alfândega, 219, centro do Rio, numa região de comércio popular conhecida como Saara.
Como não poderia deixar de ser, a reconstituição passa num primeiro momento pela história da expansão marítima portuguesa. De início, referindo a longa experiência africana dos portugueses, desde o século 15, e que no seu imaginário distorceu a geopolítica dos povos africanos -distorção que a autora precisou corrigir.
A seguir, passamos ao tráfico negreiro. O desenvolvimento da economia mineradora estimulou o crescimento da cidade do Rio, porto que escoava o ouro, além de receber os escravos que depois subiam às minas. Estes em sua maioria vinham de Angola. No entanto o ouro de Minas possibilitou a alguns traficantes fluminenses o comércio na Costa da Mina, de preferência canalizado em direção à Bahia.
Durante o século 18, escravos minas, entre os quais os makis, chegaram ao Rio e, graças a um refluxo conjuntural na demanda por mão-de-obra em Minas Gerais, acabaram por se integrar à vida da cidade.
Uma diferença em relação ao local de batismo dos escravos (em Angola, os escravos eram batizados no porto de embarque, enquanto os da Costa da Mina vinham ao Brasil sem batismo, ao menos nessa época recebendo o sacramento aqui) permitiu à autora um mergulho na demografia escrava do Rio e, em consequência, uma definição tanto quanto possível precisa do lugar dos makis na cidade. A partir daí, entramos na parte mais rica e original do livro, na confluência de história social e história da igreja, no vivo da história das irmandades. Um espaço institucional parcialmente regulado e que por isso deu margem a certas liberdades de associação entre os praticantes da fé, a coesão alimentando-se do conflito.
É aqui que a identidade maki reemerge num grupo social definido, o dos escravos alforriados que puderam subir um pouco na escala social, que são proprietários de outros escravos, têm alguma fumaça de fidalguia e se converteram ao catolicismo. Transfigurando-se, a identidade maki reemerge aos poucos, em primeiro lugar no embate com a prática religiosa dos brancos e, em seguida, com a prática dos angolas (grupo majoritário na cidade), a prática dos grupos não-angolas e, por último, com a prática dos grupos minas.
Ainda nesse sentido, a autora vai descendo a outras minúcias -sempre esclarecedoras- do cotidiano da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigênia: a guerra entre religião oficial e feitiçaria, entre os sexos, entre veteranos e novatos, as intrigas de sacristia e, por que não?, as picuinhas nas quais o leitor chega a sentir a pisada no calo alheio.
O resultado desses conflitos múltiplos fica exposto nas festas da igreja, notadamente nas suas folias de reis. Por fim a história se completa num movimento circular: para justificar a cisão e consequente formação de um subgrupo maki na irmandade, se invoca a identidade étnica por meio de uma distorção do seu próprio passado, distorção que reproduz quase literalmente o imaginário português da conquista da costa africana.
Ao combinar história e antropologia, a autora vai cercando pacientemente seu assunto, com perguntas certeiras, um exaustivo trabalho de ordenação de dados, "close-reading" de documentos etc. É desse modo, segura e serena, que mostra os limites dos estudos pioneiros sobre as religiões africanas no Brasil, estudos de gente como Arthur Ramos e Roger Bastide. Discretamente, é como se puxasse a orelha de Pierre Fatumbi Verger, sugerindo quão rica seria uma passagem mais articulada entre os números do tráfico negreiro ("Fluxo e Refluxo"), a história social (dispersa em "Notícias da Bahia - 1850", "Os Libertos" e "Artigos - 1") e a prática da religião africana ("Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns").
Na prática religiosa dos pobres brasileiros, do século 18 até hoje, o tempo passou e não passou. O caráter de nossa economia e de nossa política fizeram com que a abolição da escravatura não cumprisse suas promessas. Desde então, como um desafio à imaginação política, nossa herança colonial é retrabalhada a cada onda de modernização. Na que estamos vivendo agora, é grande a tendência para a exclusão social. Como fica a vida popular? Nesse sentido, o assunto de Mariza Soares continua aqui ao lado. Penso, por exemplo, nas afinidades deste livro com "Santo Forte" (1998), o documentário de Eduardo Coutinho.


Devotos da Cor
304 págs., R$ 30,00
de Mariza de Carvalho Soares. Ed. Record (rua Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2000).



Milton Ohata é doutorando em história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo).


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