São Paulo, domingo, 20 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Ligações perigosas

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Crime virtual, culpa virtual: em seus livros, Patricia Highsmith desloca as relações entre culpa, crime e punição ao mesmo tempo em que as explora numa profundidade vertiginosa. Procede a uma desarticulação atroz: a culpa substitui o mal. A culpa não está no mal; nem mesmo, de fato, o mal está na culpa; antes, a culpa é feita de mal.
O cinema logo se interessou por suas ambigüidades intrincadas de situações, desde "Pacto Sinistro", de Hitchcock, em 1951. Foi sobretudo o personagem de Ripley, criado por ela, que atraiu muitos cineastas.
A complexidade das situações e o mistério dos personagens de Highsmith são sugestivos para diretores que sabem explorar relações soturnas, invisíveis, mas comprometedoras, entre os seres humanos.
Ripley não é um detetive, nem, de fato, o herói de uma saga: são poucos os livros em que ele aparece, na obra de Highsmith. De fato, mostra-se como o avesso, ou o negativo, dos outros personagens centrais que preocupam a autora. Ripley instaura o medo porque não tem medo, a angústia, porque não tem angústias.
É um assassino. Matou alguém para tomar-lhe a identidade -o primeiro crime de uma série. Está sempre à beira de ser descoberto. Essa corda bamba lhe dá prazer; o exercício de risco provoca nele um júbilo frio.
Ripley é um personagem excepcional, já que a abolição da culpa e do medo não é o lote das pessoas comuns. Highsmith, em suas outras histórias, cria, ao contrário, situações nas quais põe em evidência a culpa e o crime.
Mas, com uma percepção aguda, o que lhe interessa são menos esses dois substantivos que a conjunção "e".

Raskolnikov
Para Ripley, no crime não está o castigo, nem sequer o castigo da culpa. Para os outros personagens, na culpa e no castigo não se encontra o crime. Melhor dizendo: entre crime e culpa, as ligações, se existem, são inesperadas e perversas.
O descompasso entre esses três elementos -crime, culpa, justiça- permite, pela ficção, um modo raro de intuir as determinantes que impedem superpô-los. Não se trata de psicologia: trata-se de uma imanência ao mesmo tempo própria à natureza humana e à condição humana.
A culpa é imensa e nevrálgica, ela preexiste ao crime, à punição. Caso ela se ausente -Ripley é o modelo-, o crime é secundário e a punição desconsiderada.
Existencial
Camus [1913-60] expôs a força de delação que cada gesto anódino adquire numa interpretação acusatória. O julgamento que se desenrola em seu romance "O Estrangeiro" traz fatos alheios ao crime: entre outros, o acusado foi ao cinema no dia seguinte ao do enterro de sua mãe. Manifestação indiscutível de uma alma insensível, que pesa contra ele e ajuda a transformá-lo em culpado.
Alguns críticos assinalaram a relação entre algumas preocupações de Highsmith e de Dostoiévski [1821-81], que são, de fato, bastante expressivas. Mas existem também vínculos muito fortes entre seu universo e o de Camus.

Moenda
Em suas obras, Highsmith expõe o sistema judicial e punitivo como uma máquina cujos mecanismos têm leis falsamente objetivas, ignorando tudo daquilo que ocorre na alma do criminoso ou do inocente.
Nele, quaisquer atos, por mais banais, se carregam de denúncia, ao transformarem-se perversamente em indícios para acusação.
"Um Jogo para os Vivos", que está entre os primeiros livros de Highsmith, acaba de ser publicado no Brasil pela editora LPM.

jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os Dez+
Próximo Texto: Biblioteca Básica: Roadwork
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.