São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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O amigo de Glauber [e Godard]

O CINEASTA JEAN-PIERRE GORIN CONTA COMO O DIRETOR DE "TERRA EM TRANSE" VIROU ATOR DE "VENTO DO LESTE", QUE SERÁ EXIBIDO NO BRASIL PELA PRIMEIRA VEZ NESTA SEMANA

Jane de Almeida
especial para a Folha

Jean-Pierre Gorin é conhecido pela sua parceria com Jean-Luc Godard nos anos 60 e 70. Eles dirigiram juntos seis filmes, quatro deles com vários esquerdistas revolucionários da época, em proposta de trabalho colaborativo, sob o nome de grupo Dziga Vertov, uma homenagem ao cineasta russo, para fazer oposição não apenas a Hollywood, mas também à tradição de Eisenstein. O primeiro filme dessa parceria é "Vento do Leste" (1969), um western feito na Itália com as participações de Gian Maria Volonté, como ator, e de Daniel Cohn-Bendit, como roteirista, além de uma aparição de Glauber Rocha. Parte do filme mostra várias pessoas reunidas em local ermo refletindo sobre o que é fazer cinema e, como era a preocupação do grupo, sobre o que é fazer cinema politicamente. E é Glauber que, em uma encruzilhada, mostra os vários caminhos do cinema, incluindo aquele do Terceiro Mundo, que é "perigoso, divino e maravilhoso".
Os outros três filmes do grupo são "Lotte in Italia" (1969), "Vladimir et Rosa" (1971) e "Jusqu'à la Victoire" (1970), que ficou inacabado. Não mais com o nome Dziga Vertov, Godard e Gorin dirigiram, em 1972, "Tout Va Bien", com Yves Montand e Jane Fonda, e "Letter to Jane", uma cáustica leitura de uma foto de Jane Fonda no Vietnã. O filme mereceu a atenção de Susan Sontag em seu famoso ensaio "Sobre a Fotografia" (reeditado recentemente pela Cia. das Letras), apresentado como uma lição de decifração de um enquadramento aparentemente inocente.
Gorin conheceu Godard por volta de 1965 quando era editor de literatura do "Le Monde" e um dos criadores do suplemento "Le Monde des Livres". Ele havia estudado filosofia e participado dos seminários de Louis Althusser, de Jacques Lacan e Michel Foucault. Era um eminente participante da nova geração da esquerda francesa que iria culminar na revolução de Maio de 1968 e representava uma força inovadora para os pensamentos de Godard na época, tanto que foi um de seus confidentes e conselheiros em "A Chinesa" (1967) e "Le Gai Savoir" (1968), filmes anteriores aos do Dziga Vertov.
Desde 1975, Jean-Pierre Gorin é professor do departamento de artes visuais da Universidade da Califórnia, em San Diego, sem deixar de dirigir, escrever e produzir filmes. Gorin se dispôs a responder às questões reproduzidas a seguir e disse que elas lhe trouxeram boas recordações. Disse ainda que, se pudesse, pegaria um avião imediatamente para ver a apresentação de "Vento do Leste" no Brasil.

O papel de Glauber Rocha em "Vento do Leste" é pequeno, mas crucial, já que ele é quem aponta os caminhos do cinema na encruzilhada. Como o sr. e Godard encontraram Glauber, e o que passava pela sua cabeça quando decidiu convidá-lo para aquele papel?
Glauber, Glauber, Glauber. Sempre na encruzilhada. Ele aparece pela primeira vez na minha vida em Paris poucos meses depois de eu ter visto "Terra em Transe" umas 30 vezes seguidas no espaço de dez dias. Nós nos encontramos por intermédio de Raphael Sorin, atual editor de [Michel] Houllebecq, que estará ligado a "Vento do Leste". Uma conexão imediata. Isso se traduz em um vagar infinito pelas ruas de Paris (Glauber sabia como esticar a noite!) e em um tresloucado curso intensivo de 15 dias sobre o tropicalismo. Então, um ano depois, quando "Vento do Leste" estava sendo rodado, ele emerge da noite, senta à nossa mesa naquela imunda trattoria romana e amarra as pontas da nossa última conversa, como se houvéssemos nos despedido na noite anterior. Lembro-me de tê-lo apresentado a Godard, mas posso estar errado a respeito disso.
Eu sei que partiu de mim a idéia de arregimentar Glauber e oferecer-lhe o papel dele mesmo, como sinal falante na encruzilhada das várias formas de cinema. O que me passava pela cabeça? É bem óbvio, não? As coisas estavam se descosturando. Era como se tudo valesse e tudo estivesse sendo posto sobre a mesa para ser examinado de novo. As formas das imagens e dos sons estavam sendo questionadas por todos os lados. De certa forma, estávamos todos na encruzilhada. A questão não era a busca de um caminho "verdadeiro", mas o tipo de diálogo que poderia ser amarrado a partir de todo esse questionamento disparatado que acontecia.
Ninguém podia simplesmente sonhar em adotar no atacado a experimentação de outrem, precisamente porque essas experimentações refratavam a especificidade da experiência. Por isso os caras do Cinema Novo foram tão importantes. Pelo quão brasileiros eles estavam determinados a ser, por sua especificidade e como nos forçaram a nos interrogar a nós mesmos e nos colocaram em uma direção que não havia sido mapeada.
A aparição de Glauber em "Vento do Leste" é ao mesmo tempo uma homenagem ao Cinema Novo e uma peça afetiva de um teatro "naïve", que indica que os trabalhos feitos no Brasil nos obrigaram a desbastar nosso caminho para fora da mata (Hollywood, a "nouvelle vague", a "era glacial" do cinema político da Guerra Fria etc), rumo à especificidade do nosso tempo e nosso espaço.

Após quase 40 anos, como o senhor vê as propostas e a produção do grupo Dziga Vertov?
Em 1989, na época do bicentenário da Revolução Francesa, um jornal entrevistou vários líderes mundiais em busca de uma avaliação deles sobre o legado daquele fato. Deng Xiaoping, então líder da China, hesitou um instante e depois respondeu: "É cedo demais para dizer!". Deixando a brincadeira de lado e com a devida modéstia, vou usar a mesma resposta.
Recentemente assisti a "Vento do Leste" e enviei a seguinte nota a um amigo: "Longo e-mail de um centro cultural brasileiro que parece inclinado a exibir "Vento do Leste" pela primeira vez na terra de Glauber Rocha (consegui uma edição japonesa em DVD da velha brincadeira e fiquei surpreso pelo fato de ela ainda parecer tão impressionantemente linda, sem falar no fato de que parecia em vez disso: a) a única verdadeira adaptação da "Ilíada" (desculpe, acabei de sair de "Tróia" e estou bem irritado com aquilo!)... Vejo "Vento do Leste" como a cultura da guerra vista por duas Cassandra(s) (duas pelo preço de uma! JLG/JPG); b) um épico shakespeariano em pequena escala (ninguém se preocupou/se preocupa em ler o final da década de 1960 como uma farra de Rosencrantz e Guildenstern, mas eu o fiz/faço ainda mais agora...). Minha geração colocou o pobre Y (também conhecido como o marxismo e seus avatares) na tumba... Ele já estava morto, mas não sabia... Quase 30 anos esperando que o fantasma se dissipasse no vento (Tian An Men + a queda do Muro de Berlim); c) uma das melhores peças de ficção científica já escritas [se "2001" é Dullards no Espaço, "Vento do Leste" é Dullards no campo romano, o post-scriptum para "Bouvard e Pécuchet" que Flaubert nunca escreveu direito, no qual pretendia recolher os escritos de seus dois idiotas... Um perfeito complemento para "A Chinesa" a esse respeito])".
Portanto "é cedo demais para dizer"... Tenho certeza de que em dez anos eu verei "Vento do Leste" e o trabalho que eu fiz na época com outros olhos. O afeto, a ironia, a fúria que eles geraram em mim na época e que geram agora ainda permanecerão, mas os trabalhos vão parecer se dirigir a um outro conjunto de preocupações. Há trabalhos que fazem isso; eles permanecem misteriosamente vivos e capazes de se dirigir aos tempos além do seu tempo. Eu os chamo de "decentes". São trabalhos que demonstram a batalha de um diretor com a tarefa à mão, mostram que ele/ela está suando sobre os detalhes, jogando várias bolas ao mesmo tempo, sem ter medo de que algumas caiam no chão (por incapacidade e também por exibicionismo, só para ter a audiência do seu lado). Enfim, fiz trabalhos "decentes".

O senhor acha que a metáfora da encruzilhada ainda é válida, depois que os "ventos do leste" pararam de soprar com tanta força e considerando também que o cinema, hoje em dia, raramente questiona o próprio cinema, como naquela época?
Peço licença para discordar. As questões estão aí. Posso ouvi-las nos filmes de Lars von Trier como posso ouvi-las nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Posso vê-las serpenteando e dando forma aos filmes de Abbas Kiarostami e nos filmes de Hou Hshiao Hshen ou de Tsai Ming Liang. E, se eu gosto ou não desses filmes, é algo que absolutamente não vem ao caso. Eu poderia aumentar a lista. Nomes conhecidos e nomes ainda desconhecidos. Tendo a achar que os cineastas se enquadram em dois grupos: as pessoas do idioma e as pessoas da gramática. As pessoas do idioma tendem a funcionar melhor na estabilidade das convenções; as pessoas da gramática são inclinadas a interrogá-las.
De vez em quando, os membros de uma tribo vagam (mesmo que só por um momento aterrorizado) no território da outra. E o fluxo e o refluxo da história tendem a favorecer alternadamente uma tribo sobre a outra. Chega de antropologia de poltrona! O fato é que um monte de questionamentos está acontecendo. Sempre esteve acontecendo. Sempre acontecerá. Sempre...
A questão pode ser colocada de forma mais incisiva a respeito dos críticos. O que os torna tão pouco dispostos a apanhar as questões que estão sendo levantadas, tão incapazes de traçá-las, amplificá-las? O que os torna tão determinados a reforçar a falta de sabor do status quo? Um pouco menos de "polegar para cima/polegar para baixo" e um pouco mais de reflexão ajudariam.
Acho que os cineastas deveriam assumir a promessa de pegar a caneta e fazer o esforço de falar dos filmes dos outros (ou dos momentos ou gestos nesses filmes) que os tocam estética e emocionalmente. Um pouco menos de insularidade e um pouco mais de generosidade poderiam ajudar a retomar o território que foi perdido com o colapso da crítica.

O senhor acredita que ainda é possível experimentar com a própria linguagem do cinema, como naquela época? Ainda é possível para o cinema se questionar?
Sim, enfaticamente. Algumas indicações sumárias desconectadas. O digital, em primeiro lugar. O que ele nos traz? Quando vai andar por si, com as propriedades do digital sendo exploradas, e não simplesmente consideradas como uma forma expedita de filmar? Que estética ele traz? Como essa estética vai afetar e transformar nosso sentido da narrativa?
Em segundo lugar, o "sound design". Quando os cineastas vão reconhecer a sofisticação do seu público no que diz respeito à elaboração do som? Quando vão compreender ativamente que o espectador médio agora tem uma familiaridade com as complexidades das camadas de som, dos "samplings", da mixagem, que é derivada da sua familiaridade com a música popular? E quando essa compreensão vai se traduzir em estratégias narrativas novas e diferentes?
A década de 1960 foi marcada por um salto que levou os cineastas a se afastarem dos modelos literários (da alta e da baixa literatura) e encontrarem seu ponto de referência na pintura. O Godard do começo é um exemplo bastante bom do que isso quis dizer: quantas vezes ele nos obrigou a ler o quadro como lemos uma pintura de Matisse, com áreas chapadas de cores primárias iluminadas como se pelo sol do meio-dia? E quanto dessa estratégia se plasmou em uma nova forma de narrativa? Parece inevitável que a música (ou, dito de forma mais apropriada, o som) ofereça o próximo referencial. Aleluia.
A era do filme sonoro é a nossa. Olhe, eu poderia continuar enfileirando os sinais de esperança (ou seja, as viradas e mudanças que forçam os cineastas a abraçarem seu tempo). As viradas nos ventos políticos figurariam de forma proeminente na lista, mas isso nos tomaria muitas noites em volta da fogueira.

O sr. fez seis filmes com Godard. Como era tê-lo como parceiro? Que características de Godard o sr. vê no seu trabalho depois de terem produzido tantos filmes juntos?
Dessa pergunta eu vou fugir. Compreenda que uma das pragas que minha juventude me impôs é que as pessoas se dirigem a mim como se eu tivesse sido apanhado num eterno presente, como um cervo sob a lanterna. Suspeito que se eu a) fosse um pouco menos ingênuo ou b) tivesse menos colhões, eu teria unido forças a alguém que não concentraria na sua cabeça a mística do autor com "A" maiúsculo. Mas, sendo assim, eu senti que ele era aquele cuja prática poderia acomodar minhas questões. Dito isso, é elogioso e também cansativo ser levado de volta à juventude de alguém com tal consistência enervante.

Poucos anos depois de sua parceria com Godard, o senhor se mudou para os Estados Unidos e começou a lecionar em uma universidade. Ainda assim, o senhor dirigiu quatro filmes ("Poto and Cabengo", "Routine Pleasures", "My Crasy Life" e "Letter to Peter") e também escreveu alguns roteiros. Como concilia sua vida acadêmica com a sua produção cinematográfica?
Do melhor/pior jeito que eu consigo. Lecionar é bastante simples. Consiste em persuadir as pessoas de que elas não precisam de você. Como todas as coisas simples, exige tempo e esforço para conseguir.
Também vi isso como um dever político, já que sentia a necessidade de passar algo adiante e mostrar à gente jovem como "nunca subestimar o poder revolucionário do passado", como disse Pasolini certa vez. Além disso, mantém os pés e a cabeça bem sintonizados, se for feito com paixão. Poucos o fazem, infelizmente.
Quanto aos filmes, fiquei mais demorado por causa da incapacidade dos produtores de assumirem riscos, da absurda cegueira dos críticos, do meu desdém quase patológico por jogar o jogo e (sejamos honestos) por meu próprio jeito procrastinador.

Quais são seus trabalhos (ou projetos) mais recentes?
Acabo de terminar um roteiro, "The Devil Dicks". É um filme puramente de gênero, que escrevi com meu parceiro, Patrick Amos, e que não pretendo dirigir. Uma espécie de "Ghostbusters - Os Caça-Fantasmas" misturado com "Salò, ou os 120 Dias de Sodoma", com cara de "cartoon" à enésima potência. Dá a sensação de que esse formato é o mais adequado para lidar com esta nossa época.

Alguns autores o consideram uma espécie de resistência entre a monótona grandiloqüência dos filmes de Hollywood e o cinismo do cinema "independente" norte-americano. Como se sente a respeito?
Ei, vou até onde posso! Olha, faço esse tipo de filme por necessidade. Por hábito, seria um termo mais apropriado. É minha paleta. É minha voz. Minha musiquinha. Não posso fazer nada além disso. É tanto a minha glória quanto a minha maldição. Uma forma limitada, embora ambiciosa, de funcionar no mundo. E, agora que já respondi às suas perguntas, um pedido. Agradece a Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil e Jorge Ben. Sem eles, seria mais difícil pensar. E visita o túmulo de Glauber. Na última vez em que conversamos, ele me ligou a cobrar durante duas horas para me dizer: "Nós estávamos certos". Ele nunca me dava espaço para responder. E eu estava tão falido na época que a única coisa que eu conseguia pensar era em como fazê-lo desligar. Agora, em retrospecto, acho que ele fez bem em ligar. Não exatamente daquele jeito, mas quem se importa...


Jane de Almeida é professora da pós-graduação em arte e cultura na Universidade Mackenzie e do curso de mídias digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autora de "Achados Chistosos" (Educ/Escuta).
Tradução de Rodrigo Leite.


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