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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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EM "OS SOLDADOS JUDEUS DE HITLER", O HISTORIADOR BRYAN MARK RIGG INVESTIGA A TRAJETÓRIA DE 150 MIL ALEMÃES COM METADE OU UM QUARTO DE SANGUE JUDEU QUE CONSEGUIRAM INTEGRAR AS FORÇAS ARMADAS DO 3º REICH

A mestiçagem nazista

Maria Luiza Tucci Carneiro
especial para a Folha

Os Soldados Judeus de Hitler" [ed. Imago, trad. de Marcos Santarrita, 332 págs., R$ 70] é de autoria de Bryan Mark Rigg, Ph.D. pela Universidade de Cambridge e ex-voluntário no Exército israelense que integrou o corpo de fuzileiros navais dos Estados Unidos. Atualmente é professor de história em uma universidade militar americana. Este seu livro traz à luz um tema polêmico para a historiografia do Holocausto e da era nazista: os "Mischlinge" na "Wehrmacht", ou seja, a história dos judeus "mestiços" (meio-judeu ou um quarto-judeu) que conseguiram romper as regras raciais impostas pelo Terceiro Reich e ocupar cargos nas Forças Armadas alemãs entre 1935 e 1945. Esses casos pontuais, se comparados aos 6 milhões de judeus que morreram nas câmaras de gás, têm que ser interpretados com muita ponderação. O autor cita 150 mil homens, incluindo veteranos e oficiais do alto escalão, alguns generais e almirantes. Se "vários deles serviram na Luttwaffe e três tornaram-se generais", como afirma o autor, não quer dizer que tivessem seus direitos assegurados como alemães puros ("Volk"). De 1.671 soldados judeus e "Mischlinge" documentados por Mark Rigg, 7 judeus, 80 meio-judeus e 74 um quarto-judeus morreram em combate. Cerca de 44 receberam a Cruz de Ferro; um, a Cruz de Prata Alemã; 19, a Cruz de Ouro Alemã; e 15, a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro, uma das mais altas honrarias militares. Cerca de 3.000 fotografias documentam as experiências militares dos "Mischlinge". A partir das 430 entrevistas realizadas por Mark Rigg, passados humilhantes e dolorosos revelam uma história horrível, nebulosa. No entanto vale lembrar que a maioria dos "Mischlinge" não ia além de simples soldados que se comportavam como patriotas devotados para servir a nação reavivada pelas utopias nazistas. Essa realidade nos coloca diante de algumas questões: a da identidade judaica, visto que muitos não se consideravam judeus após séculos de assimilação e casamentos mistos; que o processo de investigação e eliminação dos judeus apresentou desvios inesperados, demonstrando que eliminar os judeus do cotidiano alemão era mais difícil do que se imaginava; e que as isenções assinadas por Hitler a certos judeus inscritos nas Forças Armadas alemãs expressavam um certo "grau de flexibilidade" da política alemã. Portanto, se este estudo traz implicações importantes, estas só podem ser avaliadas no contexto da política anti-semita do Terceiro Reich, que culminou no Holocausto. As consequências dessa tragédia ainda não foram totalmente avaliadas, dada a dimensão da sua monstruosidade, até hoje incompreensível.

Estigma de perigo
A maioria desses soldados judeus e "Mischlinge", segundo o autor, "achava que estava de alguma forma no controle de sua vida". Ingressar nas Forças Armadas apresentava-se como uma opção oportuna para quem vivia um dia de cada vez. Mas é importante lembrar que restrições radicais existiam para humilhá-los e excluí-los dos círculos dos mais puros.
Mantinham, inclusive, códigos para descobrirem uns aos outros, assim como o fizeram os criptojudeus ibéricos perseguidos pela Inquisição séculos antes da ascensão de Hitler ao poder. Para os nazistas, o sangue de um judeu sempre contou como estigma de perigo e, se descoberto, transformaria seu portador em pária a ser exterminado. De acordo com a visão de mundo dos nazistas, os "impuros" poderiam ser identificados por sua aparência, comportamento e caráter, crença que abriu carreira para médicos e cientistas interessados na revitalização da raça ariana e da cultura alemã.
Haja vista a estreita relação entre ciência e nacional-socialismo: em 1933 foi decretada a lei para a Profilaxia da Progênie com Doença Genética e, em 1935, o Centro de Estudos 2 da Junta Consultiva de Especialistas em Política Educacional e Racial deliberou sobre a esterilização de 380 crianças negras entregues pela Gestapo [a polícia secreta nazista] às clínicas universitárias. Entre 1939 e de 1941 foi colocado em prática um programa de eutanásia, conhecido como "Aktion 4", que usava gás para matar os doentes mentais crônicos. Milhares de judeus foram exterminados por esse processo financiado com recursos técnicos apropriados e equipe treinada para empreender a "solução final". Até o final de 1941 cerca de um milhão de judeus havia sido exterminado por meio de trabalhos forçados, experiências científicas, fome, execuções em massa, gás etc. Acredita-se que em março de 1941 Hitler deu a Goering [assessor de Hitler e segundo homem do Partido Nacional-Socialista] e a Himmler [chefe da SS, a organização responsável, entre outras coisas, pelos campos de concentração] a ordem de execução em massa dos judeus. A partir de julho de 1942 carregamentos ferroviários de judeus começaram a chegar à Polônia provenientes de vários locais da Europa Central e Ocidental. As câmaras de gás de Chelmo, Belzec e Auschwitz já estavam em funcionamento. Isso o mundo não deve jamais esquecer. Ao nos familiarizarmos com as expressões "Mischling" (singular) ou "Mischlinge" (plural), percebemos a crueldade do discurso nazista, interessado em reagrupar os homens em arianos puros, por tradição; e os de raça inferior, malditos por vocação. Aliás, distinguir os cidadãos a partir do sangue que lhes corre nas veias não foi um critério original criado pelos nazistas. O conceito de pureza de sangue tem suas origens na Espanha do século 15, em que tal distinção, de fundamento teológico, era empregada como elemento vetor de exclusão social. Desde o momento de sua gestação, impôs uma situação de enfrentamento entre os puros de linhagem (naquela época, os cristãos-velhos) e os infectos de sangue (cristãos-novos, cuja ascendência judaica os identificava com a idéia de "infecção" e "destruição"). Recuperada pelos teóricos racistas do século 19 e assimilada pelos nazistas, a idéia de limpeza de sangue ganhou vigor respaldada pelos fundamentos da ciência moderna. E, como nos tempos inquisitoriais, as Leis de Nurembergue definiam as categorias de "Mischlinge" segundo a religião dos avós do indivíduo. Provas de "raça" eram procuradas nos arquivos das igrejas e nos registros de tribunais locais: certidões de nascimento, batismo ou casamento de todos os avós. Conversões ao cristianismo em casos mais recentes levantavam dúvidas e não removiam a mancha de sangue judeu. O estudo desenvolvido por Bryan Rigg foi instigado, inicialmente, pelo filme "Filhos da Guerra" (dirigido por Agnieszka Holland), no qual o judeu Shlomo Perel, após ter falsificado sua identidade, serviu na "Wehrmacht" de 1941 a 1942 e estudou num internato de elite da Juventude Hitlerista de 1942 a 1945. Consagrado herói alemão, Perel viveu o pesadelo diário de ter sua verdadeira condição descoberta. Histórias fantásticas, mas não menos cruéis, podem ser ouvidas, ainda hoje, daqueles que estrategicamente conseguiram sobreviver à "solução final". O fato de existirem documentos que atestam a presença de judeus e seus descendentes no Exército de Hitler deve ser interpretado como uma fórmula eficaz de sobrevivência e de resistência por parte daqueles que haviam sido condenados ao extermínio. Encarados como seres descartáveis para o regime totalitarista, os judeus não tinham muitas escolhas. Uma opção era ocultar a ancestralidade na tentativa de livrar seus filhos das leis raciais cuja aplicação tinha consequências mortais; outra era batizar-se católico e conseguir um visto para emigrar. Assim como o cristão-novo dos tempos modernos, o "Mischling" era um "homem dividido", conceito cunhado por Anita Novinsky em seus estudos sobre marranismo em Portugal e Brasil Colônia. Privados da cidadania, os judeus perderam o seu lugar na comunidade política instituída pelo Terceiro Reich, que, desde 1933, havia colocado em prática um programa racista que concretizava uma ética e uma estética da exclusão. E essa visão nazista da judeidade física afetou não apenas a sociedade alemã como também múltiplas comunidades nacionais envenenadas por um anti-semitismo latente, incluindo aqui a sociedade brasileira.

Integrados
Comportamentos radicais anti-semitas foram obtidos por intermédio da prática de uma legislação intolerante, típica dos regimes totalitários. Soluções políticas se fizeram a partir da ação repressiva e do terror. Assim, as Leis de Nurembergue, promulgadas em 1935, oficializaram a primeira etapa do Plano da Solução Final da Questão Judaica. As idéias de pureza racial defendidas pelo Reich foram organizadas em "Lei para Cidadãos do Reich e Lei para a Defesa do Sangue e da Honra". Esta dividia os alemães do Reich em duas categorias de cidadãos: os completos ("Reichsbürger") e os nacionais ("Volksbürger"), sendo estes identificados como cidadãos de segunda classe sem direitos políticos. Os candidatos da SS, por exemplo, tinham de investigar seus antepassados até o ano de 1750, e os candidatos a posições de chefia partidária deveriam responder se "a sua árvore genealógica estava em ordem".
Ser um "Mischling", enfim, era um pesadelo de incertezas. Pesadelo que encontra ecos no século 19, quando manifestações anti-semitas já haviam inspirado muitos judeus a se converterem ao cristianismo. Para Hitler, os judeus assimilados eram mais perigosos porque permaneciam escondidos e corrompiam a pureza do sangue ariano pelo casamento misto. Daí o ""bacillus" judeu" ser interpretado como um agente predador. Mas, após séculos de assimilação e casamentos mistos, descobriu-se que não era tão fácil eliminar os judeus da sociedade alemã. Mesmo porque muitos nem sequer se identificavam como tais. Acreditavam-se "arianos".
A partir de 1935, milhares de alemães tiveram suas vidas investigadas e, qual não foi a surpresa ao descobrirem que eram "um quarto" ou "metade judeus" por parte dos avós ou dos seus progenitores. Muitos já assimilados e integrados à sociedade alemã entraram em crise existencial visto que até então se identificavam com os valores da cultura alemã ("Deutschtum").
Com a implantação das Leis de Nurembergue, os judeus viram a terra ruir sob seus pés. A legislação nazista lhes arrebatou, em segundos, uma posição conquistada com sacrifício ao longo dos séculos: o direito de ser cidadão, de ter uma pátria e de ter uma fronteira como referência geográfica. Perderam também o direito de serem vistos como seres humanos. Haja vista que "Mischlinge", termo apropriado para definir animais, tinha o sentido de "mestiço, vira-lata ou híbrido".
Enfim: a essência de "Os Soldados Judeus de Hitler" não reside no fenômeno dos judeus e homens de parcial ascendência judaica chamados "Mischlinge" por Hitler; e sim no fato de esse termo trazer embutida a idéia de doença do sangue misto, estragado, infectado, infame. E como explicar que os "Mischlinge" eram, ao mesmo tempo, judeus e alemães? Segundo o autor, "só Hitler tinha poder para mudar o status racial de alguém, decidindo quem era judeu ou não". Esse pressuposto tangenciava a nódoa da infalibilidade e do poder messiânico. Com sua assinatura ele podia declarar alguém "deutschblütig"; da mesma forma determinou a morte de 6 milhões de judeus inocentes nas câmaras de gás.
Portanto não devemos nos iludir com as isenções "concedidas" por Hitler aos "Mischlinge"; da mesma forma como não devemos nos iludir com líderes políticos travestidos de profetas.


Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autora de "O Veneno da Serpente" e "O Anti-Semitismo na Era Vargas" (Perspectiva).


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