São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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"Não há indústria do mal"

Para chefe do departamento de psiquiatria da USP, drogas interferem só no temperamento, e não no caráter

DA REDAÇÃO

O conflito de interesses quanto ao conceito de sanidade mental não se restringe à relação de alguns médicos com a indústria farmacêutica.
Para Valentim Gentil Filho, chefe do departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, esse é apenas o viés mais comentado do problema.
"O assunto é complexo, eticamente importante e sujeito a um monte de vieses. Há muitos conflitos de interesse; além da indústria farmacêutica, há os interesses políticos, ideológicos, financeiros, de ONGs, de linhas de psicoterapia. Isso em geral não é dito", afirma o professor.
Para Gentil Filho, quando um psicoterapeuta critica o uso de medicamentos, é preciso notar que "também há uma briga de mercado corporativa entre profissionais de saúde". (EGN)

 

FOLHA - Como avalia as críticas ao DSM ("Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais"), segundo as quais ele tem má influência sobre os médicos do mundo inteiro, incluindo novos distúrbios para comportamentos comuns?
VALENTIM GENTIL FILHO
- O DSM é só uma classificação estatística, serve apenas para dimensionar os problemas que aparecem. É para fins quantitativos, e deve ser usado para catalogar; não é um livro-texto.
Infelizmente, em muitos países, inclusive no Brasil, às vezes há confusão, as pessoas o utilizam como manual de ensino.
O DSM evolui com os conhecimentos, com novas definições. O DSM 4 é um avanço em relação ao DSM 3. O mau uso do DSM 3 pode ter gerado distorções -talvez isso seja corrigido na nova versão que está sendo desenvolvida.
O comentário de que o DSM 3 e o DSM 4 levaram à ampliação do diagnóstico psiquiátrico e que isso levou a um exagero de prescrição de medicamentos é uma afirmação freqüente, mas difícil de debater ou comprovar.
Pois, nos últimos 28 anos (o DSM 3 é de 1980), houve disseminação de informações por meios eletrônicos, além da ampliação do conhecimento sobre disponibilidade de recursos terapêuticos, o que contribuiu para um aumento da demanda -as pessoas que sofrem querem ajuda.
E os profissionais de saúde tendem a tentar atender essa demanda.

FOLHA - Em "Timidez", Christopher Lane afirma que a elaboração do DSM foi influenciada pela indústria farmacêutica, legitimando uma "cultura da droga". Há essa cultura no meio da saúde mental hoje em dia?
GENTIL FILHO
- Há uma cultura da droga na sociedade em geral. As pessoas abusam de substâncias desde o tempo do Noé. A indústria farmacêutica não é uma entidade filantrópica nem universitária -vai atrás de seus potenciais usuários.
O difícil é pensar que a medicina é enganada pela indústria farmacêutica, que somos influenciados só por um vendedor ou um congresso. A sociedade procura ajuda; isso sempre existiu, buscou-se a cura nas religiões, em outros procedimentos. Mas quantas pessoas estão sendo medicadas indevidamente por causa da propaganda, quanta psicoterapia é prescrita indevidamente... Isso é muito difícil de saber.

FOLHA - Que exageros já encontrou?
GENTIL FILHO
- Lembro do caso do transtorno de pânico. Alguns diziam que estávamos simplesmente rediagnosticando uma coisa já descrita em 1895 por Freud, sempre abordada como um problema comum de ansiedade e angústia, que a abordagem deveria ser mais relativa à filosofia ou à psicoterapia.
Hoje o transtorno de pânico tem um diagnóstico robusto, uma base bem demonstrada.

FOLHA - E quanto à timidez?
GENTIL FILHO
- Há traços de personalidade que existem há séculos e podem ser influenciáveis por medicação. Se não fosse assim, as pessoas tímidas não beberiam antes de entrar em cena em festivais de MPB, por exemplo.
É possível usar medicamentos para interferir na resposta temperamental. O temperamento depende de regulagem biológica, também. O caráter é muito influenciado pela cultura, mas o temperamento é biologicamente modelado. O fato de haver medicamentos capazes de diminuir a reação não quer dizer que todos devam ser medicados.
Mas, se uma pessoa tem uma timidez patológica, que método deve ser usado? Ou as pessoas devem se autoflagelar antes da ajuda médica?
Se uma pessoa tem timidez patológica, será que deixar de atender a demanda não é omissão de socorro?

FOLHA - Há estatísticas para classificar a timidez?
GENTIL FILHO
- Timidez não é diagnóstico psiquiátrico. O fato de haver um medicamento ou método psicoterápico que ajuda a resolver a timidez não a transforma em síndrome.
Se ela o será um dia, isso dependerá de convenções. Há uma cultura numa das ilhas do Pacífico em que as pessoas não tratam uma certa doença de pele, porque acham que fica bonito.

FOLHA - Então, para o sr., a pessoa pode usar drogas para ter uma qualidade de vida melhor...
GENTIL FILHO
- O que me incomoda é dizerem que a indústria farmacêutica é uma "indústria do mal". Existem recursos para lidar com problemas -álcool, tabaco, chocolate etc.
Como médico, é preciso ter alguma base científica. Os médicos tendem a ser éticos e dizer: "Vale a pena fazer tal mudança de vida" ou "vale a pena tomar medicamento". Esses autores que lutam contra o demônio da indústria farmacêutica não são donos da verdade.

FOLHA - O sr. falou em evitar o "autoflagelo". Adam Phillips trata como erro a idéia de que é possível ser feliz o tempo todo. O sr. concorda?
GENTIL FILHO
- Está errada a colocação. Medicamento não faz ninguém feliz. Diminuir o sofrimento não é trazer felicidade. A felicidade aparece e desaparece de acordo com circunstâncias, é medida em momentos; há felicidade em meio à dor.


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