São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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As quatro faces de Emma: Flaubert


Publicado em 1857, "Madame Bovary" valeu ao seu autor um processo; eram tempos em que as artes causavam escândalo por razões menos artísticas que morais

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Com a recente edição em DVD de "Madame Bovary" [1933], de Jean Renoir (Versátil), estão disponíveis as três mais importantes versões para o cinema desse romance. As outras foram dirigidas por Vincente Minelli [1949] e Claude Chabrol [1991].
Uma tentativa de compará-las não é descabida. A tarefa, porém, não pode se enfeixar numa só coluna: é melhor estendê-la um pouco. O romance é um bom começo para hoje.
"Madame Bovary" entrou de modo definitivo na cultura do Ocidente. Diz-se bovarismo como se diz don-juanismo ou quixotesco. O dicionário define: "Bovarismo: tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem".
O livro, publicado em 1857, valeu ao seu autor um processo. Eram tempos em que as artes causavam escândalo por razões menos artísticas que morais: Baudelaire, Manet, Courbet, entre outros, sofreram a execração pública que podia ativar a Justiça.
Depois dos movimentos revolucionários de 1848, chamados de "a Primavera dos Povos", a palavra realismo pairava com muita força no campo das artes. O termo conjugava significações diversas; dentre as mais fortes estava a recusa dos mundos imaginários criados pelos românticos.
A sociedade contemporânea de então escandalizava-se com o rosto de si própria, reconstituído sem embelezamento por meio das artes.

Oco
Émile Zola declarou que "Madame Bovary" foi o primeiro dos romances naturalistas porque haveria nele a "reprodução exata da vida, a ausência de todo elemento romanesco".
Realista, naturalista, a classificação importa pouco. Interessa, na frase de Zola, aquilo que está além de sua própria intenção. Há, decerto, em "Madame Bovary", uma ausência de toda peripécia romanesca, no sentido em que não ocorrem episódios excitantes na vida tediosa da cidade provinciana.
Ocorre porém que, nesse romance, o romanesco se encontra exatamente na ausência de romanesco. Flaubert disse que as origens de "Madame Bovary" estavam no "Dom Quixote". De fato, Emma é uma espécie de Dona Quixote, que sofre, como o herói de Cervantes, com as relações complicadas entre ler, imaginar e viver.
De um ponto de vista moral, os livros românticos, que ela devorou quando foi educada num convento, deformaram-lhe a vida, fazendo-a aspirar ao impossível. Mas foram eles que lhe deram a grandeza de transformar-se na protagonista de um melodrama.
Por imaginário que fosse, esse melodrama incidiu sobre sua existência, levando-a ao suicídio, ato de exceção, ponto em que a heroína que ela imaginava ser encontra-se com a morte verdadeira.
O vazio criado pela ausência do romanesco foi preenchido.
As frustrações de Emma permitiram um romance que se lê apaixonadamente.

Pulsões
Flaubert amava Chateaubriand e a eloqüência das frases românticas. Daria vazão a mundos voluptuosos, embebidos num exotismo desvairado, em outra obra: "Salammbô", ponte admirável entre o romantismo e o decadentismo.
Com "Madame Bovary", ao contrário, regrou sua escrita e seu imaginário, de maneira exata, direta, precisa.
Mas o romantismo se infiltra ao caracterizar os sentimentos de Emma.

Contraste
A tristeza de Emma é diagnosticada assim: "Era uma doença nervosa; deviam fazer com que mudasse de ares". Do lado de Emma, porém, muda o estilo: "Como os marujos perdidos, ela passeava uns olhos desesperados sobre a solidão de sua vida, buscando, ao longe, alguma vela branca nas brumas do horizonte".


jorgecoli@uol.com.br


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