São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Sociedade

A Justiça de cada um

A FOLHA OUVIU 2 DOS PRINCIPAIS CIENTISTAS SOCIAIS BRASILEIROS PARA DISCUTIR A RECENTE CRISE DO JUDICIÁRIO


1 A Justiça brasileira é elitista?

2 O Judiciário brasileiro está em crise? Em caso positivo, qual a solução para ela?

3 O Judiciário precisa de controle externo? Em caso positivo, como fazê-lo?



FÁVIO WANDERLEY REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

1 Creio que, numa sociedade com forte tradição elitista (que foi mesmo escravista durante séculos), é fatal que haja certo elitismo da Justiça.
Não só alguns têm melhor acesso à Justiça que outros, mas me parece inegável que tende a haver também maior sensibilidade da Justiça aos direitos civis de uns do que de outros: não se vêem pronunciamentos indignados de ministros do STF sobre o banal comprometimento até do direito à vida entre populações pobres das periferias urbanas.
Mas há matizes importantes.
A Justiça do Trabalho, por exemplo, tem claro viés em favor do trabalhador.
E pesquisas recentes mostram que o tradicional conservadorismo dos profissionais ligados ao direito tem sido substituído pelo apego até majoritário de juízes e promotores à idéia de justiça social, em detrimento do apego à letra da lei.

2 Há clara tensão entre duas concepções da atuação do sistema judiciário, uma salientando a independência dos juízes de instâncias inferiores e outra empenhada em racionalizar e centralizar (com a "súmula vinculante", por exemplo).
Isso provavelmente é intensificado com a disposição ativista e legislativa que órgãos como STF e TSE têm manifestado.
Mas não vejo como isso pudesse resultar em crise mais séria, com efeitos paralisantes ou algo parecido: creio que vamos ter aprendizado e acomodação, eventualmente com graduais mudanças institucionais que se tornem necessárias.

3 Já temos o Conselho Nacional de Justiça, criado recentemente e encarregado do controle administrativo e financeiro do Judiciário.
Talvez fosse possível cogitar ampliar a participação nele de gente alheia à área jurídica.
Mas não me parece que faça sentido pretender que se viesse a ter algum órgão "externo" com autoridade para interferir na dimensão propriamente jurisdicional da atividade do Judiciário.


FÁBIO WANDERLEY REIS é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.


GLÁUCIO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

1 Se por "elitista" entendermos que as pessoas pobres têm risco mais alto de a) serem condenadas; b) cumprir pena e c) cumprir penas mais longas, sem dúvida a justiça é elitista.
As estatísticas existentes são escassas e não confiáveis, mas bastam para ilustrar isso. [O cientista político] Sérgio Adorno demonstrou que o simples poder de contratar um advogado privado reduz o risco de condenação.
Mas, se entendermos que os juízes são muito influenciados pela situação de classe dos acusados e de suas vítimas, devido a valores, percepções e preconceitos, é possível que sim, seja elitista, mas não de maneira ostensiva e com muita variação entre os juízes. Em muitos países, o Ministério Público conduz parte do inquérito e, em alguns, chega a ter escritórios próximos do equivalente aos nossos delegados.
Passar a função de acompanhar os inquéritos para o Ministério Público reduziria o tempo dos trâmites e retiraria parte do que considero um poder excessivo dos delegados.

2 Há uma crise de credibilidade, que não é só do Judiciário, mas de todas as instituições públicas. As pesquisas mostram que a população não confia nelas.
Até que ponto o descrédito do Judiciário se deve ao descrédito maior, do setor público, é difícil dizer. Parte do problema deriva das leis, que são muito arcaicas; o desprestígio do Judiciário deve ser avaliado no contexto de leis que favorecem as delongas e a impunidade.
Mas parte do desprestígio deriva do afastamento do Judiciário em relação à população, com a construção de prédios caros, ostentosos, num país em que há dezenas de milhões de pobres. O Judiciário perdeu sua mágica, seu apelo, porque seu padrão de vida se afastou demasiadamente do da média da população.

3 Quando um poder cresce e invade as atribuições de outros, a democracia sofre. Exemplos recentes são o Peru de Fujimori e a Venezuela de Chávez.
No Brasil, a invasão mais séria não foi de pessoas, mas do Estamento militar. Todos os Poderes devem explicar as suas ações, devem ser responsáveis por elas. Essas exigências encontram obstáculos culturais e institucionais em países com uma herança corporativista.
A nossa é pesadíssima, e cada poder protege seus membros além da razão e, às vezes, além da decência.
Temos, sempre, problemas de fronteiras internas, funcionais, entre Poderes. Essa confusão no que concerne os limites do poder de cada um foi evidente no encontro do presidente do Supremo, do ministro da Justiça e do presidente da República.
O encontro não tinha razão de ser: o STF não é subordinado à Presidência da República.
É um poder independente. Essas invasões não acontecem só entre Poderes, mas dentro de Poderes, quando um nível invade a jurisdição de outro, do mesmo Poder, fazendo caso omisso do processo e de suas instâncias. É o que está acontecendo.


GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ.


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