São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Livros

Os maus companheiros

Com material inédito, "O Cachorro de Rousseau" trata da relação entre o pensador nascido em Genebra e o escocês David Hume, pesos-pesados da filosofia

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

David Edmonds e John Eidinow se especializaram em conflitos dramáticos entre pensadores notáveis: "O Atiçador de Wittgenstein" [Difel], por exemplo, discute as várias versões de uma disputa entre o filósofo e seu colega Karl Popper, tendo talvez o primeiro ameaçado o segundo com um atiçador de lareira.
A última obra dos dois ["O Cachorro de Rousseau"] aborda questão mais substancial, que é o conflito entre Rousseau e Hume -que nunca se tinham encontrado antes de 1766, mas em dois ou três meses tiveram uma das brigas mais ásperas da história da filosofia.
Jean-Jacques Rousseau, perseguido de fato mas também sofrendo de mania de perseguição, é auxiliado por David Hume, que o leva para a Inglaterra e pede -com sucesso- que o rei Jorge 3º lhe dê uma pensão vitalícia.
Contudo mesmo assim Rousseau se convence de que Hume é o cérebro de uma conspiração para desmoralizá-lo, o que incluiria até mesmo as cem libras anuais de Sua Majestade. O consenso dos comentadores é o de que, no caso, Rousseau sucumbiu a sua paranóia. O "bom David" seria vítima, não bem de um ingrato, menos ainda de um patife, mas de um desequilibrado.
O mérito dos autores está em retraçar, com exame de documentos há muito esgotados ou nunca impressos, o conflito dos dois. Simpatizam com Hume, mais que com Rousseau. Mas mostram que David não foi tão bom quanto se dizia.
O conflito eclode quando, pouco após Rousseau chegar a Londres, sai na imprensa uma carta falsa do rei da Prússia, o "déspota esclarecido" Frederico, o Grande, ironizando Rousseau.
Suscetível, nosso autor sofre.
Imagina que Hume teve parte na tal carta.
Ora, nisso ele acerta. O autor da carta é Horace Walpole, mas é de Hume a insinuação de que o rei poderá aumentar os sofrimentos de Rousseau, se é isso o que ele quer.
Certamente o iluminista escocês não viu nada de mal em ironizar, num salão, o mesmo filósofo que ele pretendia socorrer. Muita gente age assim:
percebe que alguém exagera no sofrimento e mesmo assim o acode; ou auxilia e ao mesmo tempo percebe o exagero do outro.
Mas, para Rousseau, isso era fatal. O dinheiro e o conforto material lhe importavam menos do que a certeza da amizade. Ora, essa Hume nunca lhe deu. Aliás, a idéia de amizade para Rousseau incluía exigências que o sociável Hume possivelmente nem entenderia.
Chamariz editorial
A narrativa é mais ou menos essa. O cachorro de Rousseau, Sultan, só ilustra a história. Não tem maior importância para Hume. Serve apenas de chamariz editorial.
E aqui está o problema. Os autores sabem bem que tanto Rousseau quanto Hume são críticos do império da razão, o primeiro pela sensibilidade de que foi o grande defensor e vítima, o segundo pela crítica que tece aos sistemas.
Mas David e John (curiosamente, homônimos dos dois filósofos) não vão além de superficialidades filosóficas. Salvo quando comentam o que é a amizade para Rousseau ou desmontam as mentiras de Hume, o que dizem não nos permite ver que estão lidando com dois dos maiores filósofos que já houve.
Poderiam ter ido mais longe?
Na filosofia, pelo menos no Brasil, reservamos o nome de "filósofos" a 30, talvez 50, pensadores entre o século 6º a.C. e nosso tempo -mais ou menos um a cada 60 ou cem anos.
É verdade que na França, no mundo anglo-saxão e na mídia brasileira se usa o termo com maior complacência, mas os acadêmicos de nosso país -e isso apesar de às vezes serem tímidos quanto a sair da história da filosofia para entrar na filosofia- são exigentes: "filósofo", diferente de "sociólogo" ou "historiador", não é uma descrição ou uma profissão, é um elogio.
E poucos mereceram tal elogio como Rousseau e Hume.

Para além do anedótico
Por alguma razão que só compreendo em parte, estudam-se na história da filosofia sobretudo a teoria do conhecimento (onde navega Hume) e a do ser, enquanto ética e filosofia política ficam como províncias próprias, mas apartadas.
Rousseau trata mais destas.
Mas não importa, são ambos pensadores da maior envergadura. Terá então o (des)encontro deles sido apenas o choque de um britânico que se dava bem com os poderes do Estado (mas não com os da Igreja) e com os "salons" do seu século e de um suíço que se dava mal com os poderes em geral e com a sociedade? Isso é pouco. O assunto merecia mais.
Até porque são raros os momentos dramáticos da nossa história filosófica, como esses em que Edmonds e Eidinow se especializam. Uma peça de Jean-Claude Brisville expôs "O Encontro de Descartes com o Jovem Pascal". Hobbes, por sua vez, se avistou só uma vez com Descartes, que não gostou dele. A Folha deu particular destaque, em 1994 [Mais! de 14/8/94], ao fim da amizade de Sartre com Merleau-Ponty.
Em cada caso, há muito a dizer, além do anedótico.
Ou, concluindo de outro modo: a grande contribuição do estruturalismo à leitura dos textos literários e filosóficos foi, nos anos 60 do século passado, eliminar a anedota e ir ao cerne das obras.
Um exemplo ajudará. Por muito tempo, o grande estudioso de Stendhal [romancista francês, autor de "O Vermelho e o Negro"] foi Henri Martineau, cuja contribuição, porém, com freqüência se concentrava na relação entre a vida do autor e as passagens de suas obras que deveriam alguma coisa a ela.
Esse tipo de abordagem foi liquidado pelo estruturalismo, a custo, é verdade, de cindir demasiado vida e obra.

Vidas médias
Mesmo assim, hoje nenhum estudioso sério da filosofia, da literatura ou das artes reduziria uma obra de relevo à vida de seu autor ou deixaria de realçar a superioridade da primeira sobre a segunda.
Na verdade, somos hoje como discretos cultores de um estranho mistério: como é que de vidas médias, por vezes medíocres, brotam obras esplêndidas? Esse, por sinal, é o tema que mais interessou a Fellini, cujos personagens chegam a ser risíveis, mas produzem obras notáveis (basta lembrar os músicos vaidosos, mas perfeitos de "E la Nave Va").
Pois bem, é isso o que falta no "Cachorro de Rousseau", como por sinal faltava no "Atiçador de Wittgenstein".
Mesmo assim, faço questão de dizer: se o "Atiçador..." não deixava maiores resultados, talvez pela pouca relevância (afinal de contas) do episódio dramático, pelo menos o "Cachorro..." reúne material pouco ou não conhecido que permitirá, a quem o quiser, empreender um estudo mais sério.
Recomendaria que um estudante de doutorado se debruçasse sobre ele e tentasse uma obra de fôlego sobre o desentendimento e o destrato entre os autores da "Investigação sobre o Entendimento Humano" e do "Contrato Social".


RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP e diretor de avaliação da Capes. É autor de, entre outros, "Ao Leitor sem Medo" (Ed. UFMG).

O CACHORRO DE ROUSSEAU
Autores: David Edmonds e John Eidinow
Tradução: Pedro Sette Câmara
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/21/ 2131-1111)
Quanto: R$ 49,90 (384 págs.)


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