São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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A subcondição humana

Em "Abolição", a historiadora Emilia Viotti da Costa disseca a formação do racismo no Brasil

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

É muito bonito e raro ver uma historiadora no auge de sua carreira retomar o gosto pela fala direta, didática e sintética, voltada aos leitores em geral. Isso é apenas uma das coisas que singularizam o trabalho de Emilia Viotti da Costa.
Uma das maiores "scholars" atuais, professora titular da Universidade Yale, professora emérita da USP, uma parte de seu trabalho atual é organizar coleções didáticas.
Neste caso, ela reedita um livro cuja primeira edição apareceu em 1982, agora acrescido de um belo capítulo inédito, "Depois do Fato", que trata das conseqüências e dos impasses do processo abolicionista.
Neste livro, a autora sintetiza as idéias que desenvolveu em trabalhos anteriores, como o clássico "Da Senzala à Colônia" [ed. Unesp] ou mesmo posteriores, como "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue" [Cia. das Letras], no qual estudou a rebelião dos escravos em Demerara (uma sofisticadíssima análise, que trabalha de modo surpreendente a relação entre macro e micro-história e que teve entre nós uma recepção muito inferior àquela que merecia).

Luta legalista
Em "A Abolição" [ed. Unesp, 142 págs., R$ 27], ela apresenta as questões mais relevantes que envolvem o processo abolicionista e suas contradições.
Há um belo trecho em que nos é explicada a importância da Guerra do Paraguai para a crise que levaria à abolição.
Acompanhamos a luta "legalista" do advogado e poeta negro Luis Gama, que astutamente usava as armas do opressor, a legislação, a favor dos oprimidos (sua biografia e seus poemas são analisados em um capítulo que discute também os motivos do engajamento de abolicionistas como André Rebouças e Joaquim Nabuco).
Vemos as negociações feitas no Parlamento, pelo menos desde 1871, para tramar a lenta "transição" para a abolição da escravidão, em meio às transformações sociais trazidas pelos processos de modernização urbana e agrícola.
A desfaçatez do racismo brasileiro aparece de várias maneiras neste livro, inclusive de lugares e temas surpreendentes, como o episódio da frustrada tentativa de trazer imigrantes chineses, discutida no Congresso Agrícola de 1878.
De um lado, evocavam-se os bons resultados dos chineses na Califórnia ou em Cuba, além do fato de que aceitavam qualquer trabalho, quase sem pagamento. De outro lado, os críticos diziam que eram indolentes, corruptos, viciados em ópio e que iriam "mongolizar" a "raça" brasileira.
No final, o que impediu a imigração chinesa foi a oposição da Inglaterra e de Portugal, que fecharam os portos de Hong Kong e de Macau.

Mulheres e jangadeiros
Aprendemos o essencial sobre as razões da Abolição, mas não apenas do ponto de vista "político" mais restrito.
Vemos a luta das mulheres urbanas e suas associações, a luta dos jangadeiros do Nordeste, de ferroviários, de poetas. A autora é especialmente sensível aos "heróis anônimos", tema de um capítulo que trata das sociedades secretas que instigavam rebeliões e fugas das senzalas. Tudo isso se soma, e possibilita, o "golpe final", nas palavras da historiadora, trazido pelas "rebeliões das senzalas".
Ela sabe e nos mostra que a abolição não foi uma "dádiva" das classes dominantes, mas o resultado da ação inconformista dos escravos associada a uma ampla crise social.
O último capítulo mostra a terrível condição na qual os ex-escravos foram lançados: a pobreza, a exclusão, a mendicância, a exploração dos fazendeiros (agora patrões).
A abolição da desigualdade social, diz Viotti, ainda não terminou. A historiadora conclui seu livro com as palavras de um antigo líder operário lembrando que a escravidão do negro acabou, "mas a do trabalhador, e do pobre, ainda continua".


FRANCISCO ALAMBERT é historiador.



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