São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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A filosofia de Espinosa é uma ética do contentamento intelectual e da liberdade individual e política; essa ética é a verdadeira entrada da filosofia na modernidade, pois se oferece liberada do peso da transcendência teológico-religiosa ameaçadora e da normatividade repressiva da moral
Paixão, ação e liberdade em Espinosa

por Marilena Chaui

No "Tratado Político", Espinosa escreve: "O homem é livre na exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da natureza humana (...), a liberdade não se confunde com a contingência. E, porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade. Assim, quando consideramos um homem como livre, não podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem (...). Portanto aquele que existe e age por uma necessidade de sua própria natureza, age livremente (...). A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe" (TP, II, 7 e 11). Essas palavras indicam pelo menos duas rupturas com a tradição moral: em primeiro lugar, a liberdade não se confunde com um poder voluntário para escolher entre alternativas, ou para fazer ou deixar de fazer alguma coisa; em segundo, se a impotência não pode ter a potência da liberdade como causa, então não podemos atribuir a esta o pecado original ou a culpa originária do homem. Como, portanto, há de ser uma ética que não identifica liberdade e livre-arbítrio da vontade e que não tem como ponto de partida a natureza culpada ou viciosa dos seres humanos? A filosofia de Espinosa (1632-1677) é uma ética da alegria, da felicidade, do contentamento intelectual e da liberdade individual e política. Essa ética é a verdadeira entrada da filosofia na modernidade, pois se oferece liberada do peso de duas tradições: a da transcendência teológico-religiosa ameaçadora, fundada na idéia de culpa originária, e a da normatividade repressiva da moral, fundada na heteronomia do agente submetido a fins e valores externos não definidos por ele. A primeira, coloca a ética sob a tutela da teologia do pecado, imaginando a liberdade como livre-arbítrio e transgressão aos mandamentos divinos. A segunda submete a ética às idéias imaginativas de bom e mau, isto é, a modelos externos da conduta virtuosa (conforme ao bem) e viciosa (conforme ao mal), identificando a liberdade com o poder para escolher entre valores postos como regras e normas para o agente moral. Ambas consideram o corpo a causa das paixões da alma e julgam as paixões vícios em que caímos por nossa culpa, contrariando as leis da Natureza e a vontade de Deus.

Homem e natureza
A ética espinosana busca o livre exercício do corpo e da alma. Sua viga mestra é a idéia de que o homem é parte imanente da Natureza que possui a peculiaridade de não ser apenas parte e sim capaz de tomar parte na atividade da própria Natureza. O que é a Natureza? É a expressão imanente de uma atividade absolutamente infinita ou a Substância, una e única, unidade infinitamente complexa constituída por infinitos atributos infinitos, isto é, por infinitas ordens de realidade diferenciadas, unificadas pela potência infinita de autoprodução e de produção de todas as coisas. Na medida em que a Substância é a unidade imanente e ativa de seus infinitos atributos infinitos, isto é, de uma complexidade causal ou produtora, sua ação se realiza diferenciadamente, cada uma de suas qualidades ou atributos produzindo ordens de realidade ou efeitos próprios ou exprimindo de maneira própria a ação comum do todo, pois os atributos são potências infinitas de produção do real. A atividade do atributo Extensão dá origem aos corpos; a do atributo Pensamento, às idéias. Assim, a ação dos atributos produz regiões diferenciadas de realidade, mas essas regiões exprimem sempre o mesmo Ser. Em outras palavras, a unidade e a relação entre os entes produzidos pelos atributos são internas à própria Substância. O que um atributo realiza numa esfera de realidade é realizado de maneira diferente noutra por um outro atributo, e as atividades de ambos são ações da mesma Substância complexa. Os seres humanos, constituídos pela união de um corpo e uma mente, não são substâncias criadas, mas modos finitos de Deus. Ou, como demonstra Espinosa, são partes da natureza infinita de Deus. O que é o corpo humano? Um modo finito do atributo Extensão, isto é, um indivíduo extremamente complexo constituído por uma diversidade e pluralidade de corpúsculos duros, moles e fluidos relacionados entre si pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso. É uma unidade estruturada: não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos, portanto é um indivíduo. Sobretudo é um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é obtido por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações centrípeto e centrífugo, de sorte que, por essência, o corpo é relacional: é constituído por relações internas entre seus órgãos, por relações externas com outros corpos e por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos internos e externos, pressupõe e põe a intercorporeidade como originária.

Tradição subvertida
Se Espinosa subverte a tradição negando que o homem seja uma substância e um composto substancial, e afirmando que o corpo é uma individualidade dinâmica e intercorpórea, maior ainda é a subversão quanto à alma, pois não a define como substância simples alojada ou aprisionada no corpo, mas como idéia do corpo e idéia de si mesma. Expressão finita de um força infinita, a mente humana é uma idéia. De que é ela idéia? É idéia de seu corpo e idéia dessa idéia, ou idéia de si mesma como idéia de seu corpo.
Espinosa começa negando que corpo e alma sejam substâncias finitas e demonstra que são modificações ou expressões singulares da atividade imanente de uma substância única e infinita. Assim, a comunicação corpo e alma, de um lado, e, de outro, a singularidade do homem como unidade de um corpo e de uma alma são imediatas. Em outras palavras, a união corpo e alma e a comunicação entre eles decorre direta e imediatamente do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e única substância, cujos atributos se exprimem diferenciadamente numa atividade comum a ambos.
Porque são efeitos simultâneos da atividade de dois atributos substanciais de igual força ou potência e de igual realidade, corpo e alma não estão numa relação hierárquica de comando, o corpo comandando a alma na paixão e no vício, a alma assumindo o comando sobre o corpo na ação e na virtude.
Corpo e alma estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressos diferenciadamente. Rompe-se, portanto, a longa tradição hierárquica que definira a alma como superior ao corpo e devendo ter comando sobre ele. A alma -mens, a mente, na linguagem de Espinosa- é uma força pensante. Pensar é conhecer alguma coisa afirmando ou negando sua idéia. Afirmar ou negar são atos singulares de afirmação ou negação, de sorte que uma idéia ou um pensamento é um ato de pensar ou atividade pensante que se realiza como imaginação, desejo e reflexão.

Ter e ser consciência
O que é pensar, em suas várias formas? Pensar é afirmar ou negar alguma coisa. É ter consciência de alguma coisa e ser consciência de alguma coisa. Isso significa que a alma, como potência pensante, está natural e essencialmente voltada para os objetos que constituem os conteúdos ou as significações de suas idéias ou imagens. É de sua natureza estar internamente ligada a seu objeto porque não é senão atividade de pensá-lo. Se assim é, podemos avaliar a subversão espinosana ao definir e demonstrar que a alma é idéia do corpo e idéia da idéia do corpo, isto é, de si mesma como consciência de seu corpo. Espinosa demonstra que a ordem e conexão das idéias na alma é a mesma que a ordem e conexão das causas no corpo, pois sendo ambos modos ou efeitos imanentes dos atributos infinitos que constituem a unidade da Substância, as idéias e as coisas possuem a mesma origem e seguem as mesmas leis, mas de maneira qualitativamente diferenciada porque referidas a esferas diferenciadas de realidade. Há, pois, correspondência entre os acontecimentos corporais e os psíquicos, manifestando a causalidade única da Substância. Somos a unidade de um complexo corporal (os milhares de corpos que constituem nosso corpo) e de um complexo psíquico (as inumeráveis idéias que constituem nossa mente ou nossa alma). A ligação entre a alma e o corpo não é algo que lhes acontece, mas é o que ambos são quando são corpo e alma humanos. De que a alma é idéia? Não é idéia de uma máquina corporal que ela observaria de fora e sobre a qual ela formaria representações. Espinosa demonstra com precisão: ela é idéia das afecções corporais. Em outras palavras, é consciência dos movimentos, das mudanças, das ações e reações de seu corpo na relação com outros corpos, das mudanças no equilíbrio interno de seu corpo sob a ação das causas externas. A alma é consciência da vida de seu corpo e consciência de ser consciente disso. Deixa de existir, portanto, o problema metafísico da união entre a alma e o corpo: é da essência da alma, por ser atividade pensante (ou, em nossa linguagem contemporânea, atividade consciente), estar ligada ao seu objeto de pensamento, o corpo. Melhor, à vida do seu objeto. Como demonstra Espinosa, a alma só tem consciência de si por meio da consciência das modificações, dos movimentos, da vida ou das afecções de seu corpo. No entanto, não nos precipitemos. Dizer que a alma é idéia das afecções de seu corpo e que só é idéia de si por meio delas não significa, de maneira alguma, que por isso a alma seria e teria imediatamente um conhecimento verdadeiro de seu corpo e de si. Pelo contrário. A alma começa e vive num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Tem idéias imaginativas e vive imaginariamente. Como os demais pensadores do século 17, Espinosa emprega as palavras "imaginar" e "imaginação" com o sentido de "perceber" e "percepção", isto é, imaginar não é inventar pela fantasia (como hoje pensamos), mas perceber sensorialmente as coisas. Imaginar não é uma atividade da alma, mas do corpo. Afetando outros corpos e sendo por eles afetado de inúmeras maneiras, o corpo cria imagens de si a partir do modo como é afetado pelos demais corpos. Imaginar exprime a primeira forma da intercorporeidade, aquela na qual a imagem do corpo e de sua vida é formada pela imagem que os demais corpos oferecem do nosso e pelas imagens que ele produz deles. A imagem, por nascer do sistema das afecções corporais, é instantânea e momentânea, volátil, fugaz e dispersa, não oferecendo a duração contínua da vida do próprio corpo, mas instantes fragmentados dela. Nascida de encontros corporais, a imagem institui o campo da experiência vivida como relação imediata e abstrata com o mundo. Imediata, porque contato direto de nosso corpo com os outros corpos. Abstrata, porque fragmentada, parcial, mutilada, separada do conhecimento verdadeiro das causas do imaginar e das imagens. Consciente do corpo por meio dessas imagens, a mente produz idéias imaginativas com que representa seu corpo e outros corpos, tendo por isso dele e deles um conhecimento inadequado ou imaginativo, isto é, não o conhece tal como é em si mesmo, nem tal como é sua vida própria, mas o pensa segundo imagens externas que ele recebe ou forma na relação intercorporal. A alma pensa o seu corpo e a si mesma segundo a ação causal externa exercida sobre nosso corpo pelos outros corpos e sobre eles pelo nosso. Por esse motivo, na experiência imediata, não possui uma idéia verdadeira dos corpos exteriores, pois os conhece segundo as imagens que seu corpo deles forma a partir das imagens que eles formaram dele, de sorte que há espelhamento dele neles e deles nele e é isso o objeto atual que constitui o ser da alma.

Marca da imagem
Ora, a marca da imagem é a abstração, no sentido rigoroso do termo: a imagem é o que está separado de sua causa real e verdadeira e que, por esse motivo, leva a alma a fabricar causas imaginárias para o que se passa em seu corpo, nos demais corpos e nela mesma, enredando-se num tecido de explicações ilusórias sobre si, sobre o seu corpo e sobre o mundo porque explicações parciais, nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas.
Isso não significa, porém, como sempre afirmou a tradição intelectualista, que a alma esteja impedida do conhecimento verdadeiro de seu corpo, de si e do mundo, porque estaria essencialmente ligada a seu corpo como se encarcerada numa prisão.
O bloqueio à verdade não nasce da ligação corpo-alma, e sim do fato de que a alma deixa a iniciativa do conhecimento ao corpo e este só é capaz de imaginar, pois não é de sua natureza pensar. O acesso ao verdadeiro abre-se para a alma quando esta assume sua natureza própria, sua potência própria, isto é, o poder para pensar, quando, então, toma a iniciativa do conhecimento.
Ora, é aqui que, mais uma vez, Espinosa inova de maneira radical. Como a alma passa da confusão entre o poder imaginante de seu corpo e seu próprio poder pensante à iniciativa do conhecimento? Como poderá ter uma força para pensar equivalente à força de seu corpo para imaginar?
Longe de afirmar, como faria a tradição intelectualista, que tal iniciativa depende de um afastamento da alma com relação ao corpo, de um desligamento voluntário que ela operaria, distanciando-se de seu corpo, Espinosa demonstrará que, pelo contrário, será aprofundando essa relação que a alma poderá tomar a iniciativa do conhecimento. Para tanto, é preciso compreendermos a forma originária da ligação corpo-mente.
As afecções do corpo e as idéias das afecções na alma não são representações cognitivas desinteressadas. Se o fossem, seriam apenas experiências dispersas e sem sentido. São modificações da vida do corpo e significações psíquicas dessa vida corporal, fundadas no interesse vital que, do lado do corpo, o faz mover-se (afetar e ser afetado por outros corpos) e, do lado da alma, a faz pensar. Qual é o interesse vital? O interesse do corpo e da alma é a existência e tudo quanto contribua para mantê-la.
Empregando um conceito muito caro aos pensadores seiscentistas, Espinosa se refere ao desejo de vida do corpo e da alma com o termo conatus, que significa "esforço para se conservar na existência". Os humanos, como os demais seres, são dotados de conatus, com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de possuir o esforço de perseveração na existência. Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência, o conatus é uma força interna positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a autodestruição. O conatus possui, assim, uma duração ilimitada até que causas exteriores mais fortes e mais poderosas o destruam. Definindo corpo e alma pelo conatus, Espinosa os define como potências de existir e agir internamente indestrutíveis, portanto como vida. Assim, na definição da essência humana, não entra a morte. Esta é o que vem do exterior, jamais do interior.

Apetite e desejo
No corpo, o conatus se chama apetite, na alma, desejo. Eis por que Espinosa afirma que a essência do homem é desejo, consciência do que, no corpo, se chama apetite. Assim, dizer que somos apetite corporal e desejo psíquico é dizer que as afecções do corpo são afetos da alma. Em outras palavras, as afecções do corpo são imagens que, na alma, se realizam como idéias afetivas ou sentimentos. Assim, a relação originária da alma com o corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva. Nossas idéias (sejam verdadeiras ou inadequadas) são afetos. Afecções e afetos, exprimindo nosso conatus, obedecem à lei natural que rege o esforço de preservação na existência. Isso significa, antes de mais nada: somos passivos (ou estamos na paixão), enquanto somos apenas causa parcial do que se passa em nós, e somos ativos (ou estamos na ação), quando somos a causa total do que se passa em nós. Somos causa inadequada de nossos afetos quando são causados em nós pelo poder de causas externas; somos causa adequada de nossos afetos quando são causados em nós por nossa própria potência interna. Ser causa inadequada é ser passivo e passional. Ser causa adequada é ser ativo e livre. Com a definição da paixão e da ação pelo conatus como causa eficiente inadequada ou adequada, Espinosa afasta a suposição tradicional de que somos movidos (seja na paixão, seja na ação) por causas finais externas e que seríamos livres quando nosso apetite e nosso desejo fossem levados por nossa vontade a escolher os fins bons e virtuosos. Somos causas eficientes, apenas. Não causas finais, a não ser como explicações imaginárias de nossos desejos, paixões e ações. Donde outra inovação espinosana: bom e mau não são valores em si, nem correspondem a qualidades que existiriam nas próprias coisas, nem são modelos externos das virtudes e dos vícios. Bom é tudo quanto aumente a força de nosso conatus; mau, tudo quanto a diminua. Eis por que Espinosa afirma que algo não é desejado por nós por ser bom, mas é bom porque o desejamos. Os propósitos e intenções que realizamos, passiva ou ativamente, não são fins externos escolhidos por nossa vontade, mas exprimem a causalidade eficiente de nosso apetite e de nosso desejo, isto é, de nosso conatus. A lei natural da autoconservação, no caso dos humanos, não determina apenas a conservação da existência como perseverança no mesmo estado (como ocorre com os demais seres da Natureza), mas a determina como perseverança no ser e, por esse motivo, determina a variação de intensidade do conatus. Nosso ser é definido pela intensidade maior ou menor da força para existir -no caso do corpo, da força maior ou menor para afetar outros corpos e ser afetado por eles; no caso da alma, da força maior ou menor para pensar. A variação da intensidade da potência para existir depende da qualidade de nossos apetites e desejos e, portanto, da maneira como nos relacionamos com as forças externas, sempre muito mais numerosas e mais poderosas do que a nossa. A força do desejo aumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e a intensidade do desejo aumenta ou diminui conforme este seja ou não conseguido, havendo ou não satisfação.

Alegria e tristeza
O desejo realizado aumenta nossa força para existir e pensar. Chama-se alegria, definida por Espinosa como o sentimento que temos de que nossa capacidade existir aumenta, chamando-se amor quando atribuímos esse aumento a uma causa externa (o objeto do desejo). O desejo frustrado diminui nossa força para existir e pensar. Chama-se tristeza, definida por Espinosa como o sentimento que temos de que nossa capacidade para existir diminui, chamando-se ódio, se considerarmos essa diminuição existencial um efeito proveniente de uma causa externa (o objeto do desejo). Todos os demais apetites e afetos são derivados ou variantes dos três originários: desejo, alegria e tristeza.
Na vida imaginária, as afecções corporais e os afetos são paixões. Estas, diz Espinosa, não são vícios nem pecados nem desordem nem doença, mas efeitos necessários do fato de sermos uma parte finita da Natureza, circundados por um número ilimitado de outras que, mais poderosas e mais numerosas do que nós, exercem poder sobre nós. Além disso, como vimos, a relação originária do corpo com o mundo é a imagem e a da alma com o corpo e o mundo, a idéia imaginativa. A passividade natural possui, assim, três causas: a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua satisfação, a força das causas externas maior do que a nossa e a vida imaginária, que nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no consumo e apropriação das imagens das coisas, dos outros e de nós mesmos.
Por isso, na paixão, diz Espinosa, somos causa inadequada de nossos apetites e de nossos desejos, isto é, somos apenas parcialmente causa do que sentimos, fazemos e desejamos, pois a causa mais forte e poderosa é a imagem das coisas, dos outros e de nós mesmos, portanto a exterioridade é mais forte e mais poderosa do que a interioridade causal corporal e psíquica. A tradição e o século 17 definem a paixão e a ação como termos reversíveis e recíprocos: a ação está referida ao termo de que algo parte; a paixão, ao termo em que algo incide. Eis por que fala-se na paixão da alma como ação do corpo sobre ela e na passividade corporal como ação da vontade e da razão sobre ele. A um corpo ativo corresponderia uma alma passiva. A uma alma ativa, um corpo passivo. Espinosa rompe radicalmente com essa concepção da vida passional. Sendo a alma idéia de seu corpo e idéia de si a partir da idéia de seu corpo, sendo ela desejo como expressão consciente do apetite, será passiva juntamente com seu corpo, e ativa, juntamente com ele. Pela primeira vez, em toda a história da filosofia, corpo e alma são ativos ou passivos juntos e por inteiro, em igualdade de condições e sem relação hierárquica entre eles. Nem o corpo comanda a alma nem a alma comanda o corpo. A alma vale e pode o que vale e pode seu corpo. O corpo vale e pode o que vale e pode sua alma. Se reunirmos essa ligação profunda entre corpo e alma à crítica espinosana da teoria da vontade como livre-arbítrio (que escolheria entre possíveis contrários) encarregada de dirigir a razão para o domínio total sobre as paixões, compreenderemos a outra originalidade de Espinosa quando demonstra que uma idéia verdadeira ou a razão jamais vencem uma paixão simplesmente por serem uma idéia verdadeira ou razão. Somente uma paixão vence outra paixão, se for mais forte e contrária a ela. Estão desfeitos tanto o voluntarismo quanto o intelectualismo que pretenderam, durante séculos, outorgar à vontade e à razão um poder que não possuem e que, justamente para encobrir a impotência de ambas, inventaram a moral ascética e a moral dos fins e valores como paradigmas externos a serem obedecidos pelos humanos. O moralismo, impondo finalidades externas ao apetite e ao desejo humanos, impondo modelos de virtudes e vícios, é a forma imaginária de suprir o fracasso de um outro imaginário: o da vontade onipotente e da razão onisciente capazes de exercer o pleno império da alma sobre o corpo. Desfaz-se, assim, uma das imagens do homem que, durante séculos, servira de modelo para a invenção da imagem antropomórfica de Deus: uma divindade dotada de vontade onipotente e razão onisciente agindo em vista de fins externos, definidos como bons e justos em si mesmos. A naturalidade da paixão, e o fato de que bom e mau dependam inteiramente da qualidade de nosso próprio desejo não significam, porém, que seus efeitos sejam necessariamente positivos. Pelo contrário. Espinosa demonstrará que a paixão aumenta imaginariamente a intensidade do conatus e a diminui realmente. Esse aumento imaginário da força para existir e sua diminuição real é a servidão humana.

Servidão e paixões
A servidão não resulta dos afetos, mas das paixões. Resulta da força de algumas delas sobre outras. Passividade significa ser determinado a existir, desejar, pensar a partir das imagens exteriores que operam como causas de nossos apetites e desejos. A servidão é o momento em que a força interna do conatus, tendo-se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação das forças externas, submete-se a elas imaginando submetê-las. Ilusão de força na fraqueza interior extrema, a servidão é deixar-se habitar pela exterioridade, deixar-se governar por ela e, mais do que isso, Espinosa a define literalmente como alienação (o indivíduo passivo-passional é servo de causas exteriores, está sob o poder de um outro que, em latim, se diz "alienus"). Alienados, não só não reconhecemos o poderio externo que nos domina, mas o desejamos e nos identificamos com ele. A marca da servidão é levar o apetite-desejo à forma limite: a carência insaciável que busca interminavelmente a satisfação fora de si, num outro que só existe imaginariamente.
Entre seus vários efeitos, a servidão produz dois de consequências gigantescas: do lado do indivíduo, coloca-o em contradição consigo mesmo, levando-o a confundir exterior e interior, perdendo a referência de seu conatus e, justamente por isso, provocando sua própria destruição, como no caso do ciúme, da auto-abjeção e do suicídio; do lado da vida intersubjetiva, torna cada um contrário a todos os outros, em luta contra todos os outros, temendo e odiando todos os outros, cada qual imaginando satisfazer seu desejo com a destruição do outro, percebido como obstáculo aos apetites e desejos de cada um e de todos os outros. Ao suicídio individual corresponde, no plano intersubjetivo, a luta mortal das consciências e, no plano político, a guerra civil como luta entre facções.
Ora, se somos passivos por Natureza, se somos passivos de corpo e alma, se a alma tem conhecimento inadequado dos apetites de seu corpo e de seus desejos, se não há uma vontade racional capaz de dominar as paixões, como a ética há de ser possível?
A ética supõe e exige seres autônomos, mas somos naturalmente heterônomos; a ética supõe e exige seres racionais, mas somos naturalmente afetos e desejos. Como sair do imaginário sem sair dos afetos? Como sair da passividade sem separar corpo e alma? Em suma, como passar da paixão à ação? Ou, na linguagem espinosana, como nos tornarmos causa adequada, isto é, causa total dos efeitos daquilo que se passa em nós?
Espinosa demonstra que "não se pode conceber nenhuma virtude anterior a esta, isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo". E que "o esforço para se conservar (o conatus) é o primeiro e único fundamento da virtude". A chave da ética encontra-se nessa posição do conatus como fundamento primeiro e único da virtude, palavra que é empregada por Espinosa não no sentido moral de valor e modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna (em latim, virtus vem da mesma raiz de vis, força).
A virtude do corpo é poder afetar de inúmeras maneiras simultâneas outros corpos e ser por eles afetado de inúmeras maneiras simultâneas, pois o corpo é um indivíduo que se define tanto pelas relações internas de equilíbrio de seus órgãos quanto pelas relações de harmonia com os demais corpos, sendo por eles alimentado, revitalizado e fazendo o mesmo para eles. A virtude da alma, seu conatus próprio, é pensar e sua força interior dependerá, portanto, de sua capacidade para interpretar as imagens de seu corpo e dos corpos exteriores, passando delas às idéias propriamente ditas e das quais é a única causa possível. Em suma, passar da condição de causa inadequada à de causa adequada exige passarmos das idéias inadequadas às adequadas, de sorte que, para nossa alma, conhecer é agir e agir é conhecer.
Em outros termos, um desejo só se encontra em nossa alma ao mesmo tempo em que a idéia da coisa desejada. Na paixão, a coisa desejada surge na imagem de um fim externo; na ação, como idéia posta internamente por nosso próprio ato de desejar e, portanto, como algo de que nos reconhecemos como causa, interpretando o que se passa em nós e adquirindo a idéia adequada de nós mesmos e do desejado. E é no interior do próprio desejo que esse desenvolvimento intelectual acontece.
A virtude é, por um lado, um movimento e um processo de interiorização da causalidade -ser causa interna ou adequada dos apetites, dos desejos e das idéias- e, por outro, a instauração de nova relação com a exterioridade, quando esta deixa de ser sentida como ameaçadora ou como supressão de carências imaginárias. Mas isso significa que a possibilidade da ética se encontra, portanto, na possibilidade de fortalecer o conatus para que se torne causa adequada dos apetites e imagens do corpo e dos desejos e idéias da alma, e a originalidade de Espinosa está em considerar que essa possibilidade e esse processo são dados pelos próprios afetos e não sem eles ou contra eles. A alegria e todos os afetos dela derivados, mesmo quando passiva, é o sentimento do aumento da força para existir. Por isso, lemos na proposição 18 da "Parte 4" da "Ética": "O desejo que nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza". Ora, uma paixão não é vencida por uma idéia verdadeira, mas por uma outra paixão contrária e mais forte. Espinosa nos mostra que a alegria e o desejo nascido da alegria (e, portanto, o desejo nascido de todos os afetos de alegria, como o amor, a amizade, a generosidade, o contentamento, a misericórdia, a benevolência, a gratidão, a glória) são as paixões mais fortes. A vida ética começa, assim, no interior das paixões, pelo fortalecimento das mais fortes e enfraquecimento das mais fracas, isto é, de todas as formas da tristeza e dos desejos nascidos da tristeza (ódio, medo, ambição, orgulho, humildade, modéstia, ciúme, avareza, vingança, remorso, arrependimento, inveja). Uma tristeza intensa é uma paixão fraca; uma alegria intensa, uma paixão forte, pois fraco e forte se referem à qualidade do conatus ou da potência de ser e agir, enquanto a intensidade se refere ao grau dessa potência. Passar dos desejos tristes aos alegres é passar da fraqueza à força. Ora, na última parte da "Ética", Espinosa demonstra que o processo de passagem da paixão à ação é um processo de reflexão, isto é, um processo no qual a mente humana se torna apta a encadear por si mesma as idéias das afecções corporais e apta a compreender que a causa dessas afecções é o próprio corpo na relação com outros e que a causa das idéias é a própria mente. Por isso Espinosa demonstra que "um afeto que é paixão deixa de ser paixão quando dele formamos uma idéia clara e distinta". O afeto não deixa de ser afeto e sim deixa de ser uma paixão para se tornar um afeto ativo ou uma ação do corpo e da alma. O processo liberador se realiza no interior da vida afetiva, iniciando-se no campo das paixões e terminando no campo das ações. À medida que as paixões tristes vão sendo afastadas e as alegres vão sendo aproximadas, a força do conatus aumenta, de sorte que a alegria e o desejo dela nascido tendem, pouco a pouco, a diminuir nossa passividade e preparar-nos para a atividade. O primeiro instante da atividade é sentido como um afeto decisivo: quando, para nossa alma, pensar e conhecer for sentido como o mais forte dos afetos, o mais forte desejo e a mais forte alegria, um salto qualitativo tem lugar, pois descobrimos a essência de nossa alma e sua virtude no instante mesmo em que a paixão de pensar nos lança para a ação de pensar. É o momento em que descobrimos a diferença entre a potência imaginante-memoriosa do corpo e potência pensante da alma e, simultaneamente, quando sabemos que os pensamentos se encadeiam na alma exatamente como as imagens se encadeiam no corpo, mas que uma idéia difere de uma imagem porque é o conhecimento verdadeiro das causas das imagens e das idéias, conhecimento verdadeiro da essência do corpo e da alma, conhecimento verdadeiro da relação entre ambos e deles com o todo da Natureza. Que é, pois, a ética? O movimento de reflexão, isto é, o movimento de interiorização no qual a alma interpreta seus afetos e as afecções de seu corpo, destruindo as causas externas imaginárias e descobrindo-se e a seu corpo como causas reais dos apetites e desejos. A possibilidade da ação reflexiva da alma encontra-se, portanto, na estrutura da própria afetividade: é o desejo de alegria que a impulsiona rumo ao conhecimento e à ação. Pensamos e agimos não contra os afetos, mas graças a eles.

O múltiplo simultâneo
A essência da alma, escreve Espinosa, é o conhecimento e, quanto mais conhece, mais realiza sua essência ou sua virtude. Por isso mesmo, quanto mais apto for seu corpo para o múltiplo simultâneo, mais ativa será a alma que, finalmente, poderá compreender-se como idéia da idéia de seu corpo, isto é, como poder reflexivo que alcança pelo pensamento o sentido de si mesma, de seu corpo, do mundo e da Natureza inteira.
Por isso a liberdade não é o poder da vontade para extirpar os afetos, nem para escolher entre alternativas contrárias, mas a aptidão do corpo e da mente para o plural simultâneo.
É isto a liberdade: reconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites e imagens, dos desejos e idéias, afastando a miragem ilusória de uma vontade que escolhe entre fins possíveis ou segundo causas finais externas. Somos livres quando somos causa adequada do que se passa em nós e fora de nós e quando, fortes de corpo e alma, somos capazes da multiplicidade simultânea, isto é, de um corpo capaz de ser afetado e afetar outros corpos de inúmeras maneiras simultâneas e de uma alma capaz de pensar inúmeras idéias e sentir inúmeros afetos simultâneos. É isso a felicidade suprema, pois reconhecemos agora que somos uma atividade plena e, como tais, não somos meras partes do todo da Natureza, mas tomamos parte ou participamos de sua atividade infinita.


Marilena Chaui é professora do departamento de filosofia da USP, autora, entre outros, de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras). Ela escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.", da Folha.


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