São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Cinema de grife

O diretor da "Cahiers du Cinéma", que falará em SP e no Rio, diz que revista mantém a mesma independência dos tempos de Godard e Truffaut

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Diretor de redação da mítica "Cahiers du Cinéma", que ainda é a mais famosa revista de cinema do mundo, Jean-Michel Frodon não mostra o gosto pela polêmica e pela intervenção radical de seus antecessores de redação. Nomes como André Bazin, Jean-Luc Godard ou François Truffaut fizeram história unindo ousadia e radicalismo. Os dois últimos partiram para a prática, criando a "nouvelle vague", que influenciou diversas cinematografias a partir dos anos 1960. Ex-crítico do jornal "Le Monde", que adquiriu a publicação em 1998, Frodon assumiu a direção da "Cahiers" em 2003, numa época de crise entre a revista e o diário parisiense, dizendo querer "restabelecer a confiança" entre as duas publicações, "garantir a independência editorial" e promover novo impulso econômico. A grife famosa então procurou se modernizar e hoje compreende editora e site. Frodon estará no Rio e em São Paulo nos dias 28 e 30. Vem apresentar o ciclo de filmes "O Cinema Que Reinventa a Política", organizado pela "Cahiers" e pela Embaixada da França. O evento, que faz parte do ciclo de conferências " Esquecimento da Política", promovido por Adauto Novaes, apresentará em cinco cidades nove filmes europeus que se relacionam com o tema. A seleção inclui "A Comédia do Poder" (2005), de Claude Chabrol, e "Amantes Constantes" (2004), de Philippe Garrel, entre outros.

 

FOLHA - Qual é a relação entre cinema e política?
JEAN-MICHEL FRODON -
Como toda narrativa, o cinema pode transmitir idéias e símbolos políticos. Como toda arte, investiga a ordem do mundo, abre espaços obscuros que questionam a ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, constrói maneiras de ficarmos juntos. Como arte, é agente de interrogação e de construção. Esses são os dois vetores da política. Diferentemente de outras artes, é um registro do real e também criação coletiva, o que lhe dá uma força política que as outras formas de discurso ou de arte não possuem.

FOLHA - O sr. defende que o cinema europeu não tem os meios estéticos nem ideológicos para enfrentar o cinema político americano. Godard e Rossellini, por exemplo, não fizeram um cinema político e inovador com poucos recursos? Não é necessária uma "forma" revolucionária, como pregava Eisenstein?
FRODON -
O cinema europeu e o cinema americano fazem política de formas diferentes. Godard e Rossellini, para usar seus exemplos, fizeram filmes que questionavam as ligações sociais. Isso compreendia as formas de narrativa e de representação -fizeram um cinema crítico. Trata-se menos de uma questão de meios do que de abordagem da política. Eisenstein acreditou que podia fazer um cinema revolucionário ao lado de um poder que acreditava ser revolucionário, mas não era, e Eisenstein pagou muito caro por seu erro, mas seus filmes permanecem revolucionários.

FOLHA - A "Cahiers" perdeu muitos leitores e prestígio com o "coletivo maoísta" nos anos 70. A atitude política extremada não é negativa?
FRODON -
Para mim, a "Cahiers" do início dos anos 70 produziu uma reflexão forte e importante sobre a dimensão política do cinema, que ainda é útil. Mas cometeu o erro de perder a articulação entre essa reflexão teórica e a realidade do cinema propriamente dita. Com isso, deixou de ser uma revista de cinema, o que a enfraqueceu bastante. A "volta ao cinema" no fim dos anos 70 não destruiu as idéias elaboradas nessa época, mas as reinscreveu dentro de uma relação forte com o cinema.

FOLHA - O cinema político está renascendo com nomes como Michael Moore e com filmes como "Syriana" e "Munique"? O 11 de Setembro influenciou? Qual é a diferença entre esse cinema e aquele dos anos 70 ("Apocalipse Now", "Síndrome da China", Costa-Gavras etc.)?
FRODON -
Os atentados de 11 de Setembro influenciaram o poder dos conservadores sobre a TV (Fox News) e reavivaram os temas políticos nos filmes feitos nos EUA. Há uma vertente de propaganda esquerdista, da qual Michael Moore é o representante mais conhecido, que faz filmes sem interesse cinematográfico. São ilustrações de um discurso (com o qual se pode, aliás, estar de acordo). Spielberg sempre fez filmes com "mensagem", com os recursos da grande ficção espetacular hollywoodiana. "Munique" é interessante na medida em que certamente é seu filme menos claro, em que a mensagem é a da dúvida. O cinema político é cada vez mais representado por cineastas que defendem um compromisso liberal democrático, como é o caso de "Syriana", do antigo "Síndrome da China", assim como dos filmes de Costa-Gavras. "Apocalipse Now" é uma obra-prima que não se compara a nenhum dos outros. Não é um filme contra a Guerra do Vietnã, mas uma reflexão ética e política sobre o espetáculo e sobre o desejo da morte.

FOLHA - Qual é a melhor crítica cinematográfica? A anglo-saxã ou a francesa?
FRODON -
Há excelentes críticos no mundo anglo-saxão e vários críticos ruins na França. Mas a crítica é melhor na França do que nos EUA ou no Reino Unido, porque na França o cinema é majoritariamente considerado como arte. Não há crítica sem arte. É possível encontrar nos grandes jornais franceses espaços importantes para acompanhar um trabalho crítico, enquanto no mundo anglo-saxão a promoção do "star system" -uma abordagem estritamente ligada ao consumo- domina amplamente a expressão sobre o cinema.

FOLHA - O sr. era crítico do "Monde" antes de se tornar diretor de Redação da "Cahiers". Quais são seus planos? O "charme" da independência da revista foi perdido com a sua aquisição pelo grupo "Monde"?
FRODON -
Hoje a "Cahiers" não é só uma revista mas também uma editora de livros, que produz DVDs e tem um site. Trata-se de organizar o trabalho desses diferentes elementos para fazer no mundo atual o que é o trabalho da "Cahiers" há 55 anos. Compreender os filmes a partir do amor pelo cinema, compreender o mundo em que vivemos por meio do cinema. Temos programas nas escolas (para as crianças e adolescentes) e as Semanas da "Cahiers", organizadas em vários países. Também haverá uma versão em espanhol da revista. Já há um site na internet em seis línguas. Também há o projeto de uma edição on-line da "Cahiers" em inglês. Eu trabalhava de forma independente no "Monde" e trabalho assim na "Cahiers". A compra da "Cahiers" pelo "Monde" garantiu a independência dos dois.

FOLHA - O cinema argentino atual é mais político do que o brasileiro?
FRODON -
Não posso falar de algo que não conheço. Não vi muitos filmes brasileiros -nem no circuito nem em festivais- que manifestassem uma dinâmica forte em relação ao mundo atual. Mas sei que existe no Brasil uma importante escola de documentários. Infelizmente não conheço o suficiente para comentar.
Já faz dez anos que o jovem cinema argentino de ficção introduz narrativas e modos de representação ao mesmo tempo inovadores e críticos. Espero que existam no Brasil cineastas comparáveis a Pablo Trapero, Lucrecia Martel, Lisandro Alonso, Diego Lehrman, Celina Murga ou ao saudoso Bielinsky. Ficaria muito contente de descobrir.


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