São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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Os mundos paralelos de Nuno Ramos

O ARTISTA PLÁSTICO, ENSAÍSTA E FICCIONIS TA ELOGIA A "LIBIDO' DA CRÍTICA, SEU "DESEJO POR MAIS ARTE", E SE DIZ OTIMISTA EM RELAÇÃO À PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA, APESAR DO "BLABLABLÁ CURATORIAL" E DAS MOSTRAS SATURADAS

Leonardo Wen - 25.ago.09/Folha Imagem
O artista plástico Nuno Ramos, 49, no seu ateliê em São Paulo

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

As palavras "ameaça" e "iminência" têm a mesma origem: algo que está próximo, em suspensão. Mas o que está prestes a acontecer não deveria representar, necessariamente, um perigo. Entretanto, esse momento -em que se sabe que algo vai ocorrer, mas não se sabe o quê, como ou quando- é tido muitas vezes como ameaçador. Não há como fixá-lo e não se sabe o que virá. É esse pomo da coisa, esse nó em que a coisa, em pleno acontecimento, é igual a si mesma, que Nuno Ramos quer deter, tanto na arte como na literatura.
Em seus textos literários, esse momento aparece numa espécie de captura em flagrante da palavra, quando ela ainda não deixou de ser som e tampouco se cristalizou em significado. A palavra é pega com a boca na botija, no meio do caminho; por isso tanto estranhamento e a ausência de sequências narrativas.
No trabalho artístico de Nuno, esse instante, como ele mesmo diz nesta entrevista à Folha, é aquele da quase catástrofe, antes que ela se desencadeie, quando a matéria está inteira, bruta e infinita no ato mesmo de acontecer. Percebe-se que alguma coisa, que não está lá, ronda a obra. O que está lá é o quase, como se pudesse ser "completamente quase".
Já em seus ensaios -sobre arte, futebol, música e, de forma mais geral, sobre o Brasil-, Nuno Ramos não se fixa mais tanto na iminência e parte direto para os resultados, em análises tão claras quanto poéticas. Prestes a publicar dois livros, que dão sequência a sua dupla atividade em artes plásticas e literatura, Nuno fala, nesta entrevista, sobre alguns dos temas constantes em sua produção.
Entre eles, a aproximação entre as coisas e as palavras, o processo de institucionalização da arte e o caráter inevitavelmente "tardio" da arte contemporânea.

 

FOLHA - Você acha a arte inútil?
NUNO RAMOS
- Acho que não há arte sem um lado inútil, algo que não caiba na vida nem no tempo. Você olha uma coisa antiga e parece que ela foi feita ontem. O azul da capela Scrovegni, de Giotto [do século 14], é tão recente quanto o azul de Yves Klein [1928-62]. No fundo, toda arte é contemporânea.

FOLHA - Mas, em algum outro momento da "contemporaneidade", já se chegou à saturação de significados em que estamos hoje?
RAMOS
- Concordo que o conjunto de obras de uma grande mostra possa parecer inacessível e saturado, em grande parte porque muito voltado para o blablablá curatorial, que muitas vezes neutraliza e adormece o bicho vivo que mora em tantas obras. Mas acho que há muita coisa boa rolando, e fica difícil ser pessimista diante de obras como as "Elipses" de [Richard] Serra, o teatro do sublime de Olafur [Eliasson], a solidez de um quadro de Paulo Pasta.

FOLHA - Alberto Tassinari, sobre sua obra, fala em um alpinista que escala ao mesmo tempo em que escorrega. Isso lembra Camus (1913-60), que, em "O Mito de Sísifo", fala de um Sísifo orgulhoso de sua condenação, um "rebelde ativo".
RAMOS
- A diferença entre as duas imagens é que, no meu caso, erguer e perder a pedra formam um só movimento. Mas queria voltar à pergunta do começo. Embora não reconheça em obras individuais a saturação que você menciona, vejo no processo institucional uma pressão dissipadora, uma conspiração difusa pela mediocridade. Por isso, o artista hoje talvez devesse descobrir um sentido contemporâneo para um outro livro de Camus, "O Estrangeiro". Um sentido de ambivalência.

FOLHA - A pressão institucional tende a destruir a ambivalência, a capacidade de ser estrangeiro?
RAMOS
- A gente vive à sombra do movimento moderno, em que a polaridade arte-mundo era definida por negação. Hoje, esse confronto se esfacelou. No entanto, o que se busca numa obra de arte é ainda ar novo; a arte foi inventada para trair a mesmice da vida. O problema é que esse movimento já foi de alguma forma ocupado pelo jogo institucional. A "estrangeirice" hoje está na capacidade do artista, como um tatu convicto, de cavar o buraco da própria visão de mundo, de fixar e enraizar sua própria "poética". Arte, é bom lembrar, é sempre uma espécie de visão, de mundo paralelo, um "como se". O mais maluco é que quase não dá para imaginar fazer isso sem contato e contágio com as instituições (mercado, bienais, museus etc.), que parecem querer sobrepor o seu próprio "como se" ao das obras que abrigam. De novo, acho que ambivalência é a palavra-chave.

FOLHA - Tassinari fala de duas tradições do pensamento brasileiro. De um lado, Euclydes da Cunha, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Zé Celso, Glauber Rocha e Hélio Oiticica; do outro, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Niemeyer, concretos, João Cabral, bossa nova, tropicalismo. No meio: Carlos Drummond de Andrade. E afirma que você opera esteticamente nos dois campos. Concorda?
RAMOS
- Drummond é a coisa mais livre que o Brasil produziu, o artista que topou olhar para este patrimônio peculiar brasileiro: o da indecisão constitutiva entre o moderno e o atraso, entre o gentil e o violento. Drummond descreveu esses dois polos contrários como irmãos gêmeos, amarrados, desencapando os dois fios e fazendo ligação direta entre eles. Dos dois outros lados, me identifico com o primeiro, talvez, pela estridência estilística, mas principalmente com o segundo, o lado Goeldi-Bandeira-Nelson Cavaquinho, que escapa desse nasce-morre drummondiano e mergulha direto na derrisão nacional. Fico pulando de um lado para o outro.


Arte é sempre uma espécie de visão, de mundo paralelo, um "como se"


FOLHA - Em sua produção, em geral, vejo uma mistura de entusiasmo e cansaço, desencanto e promessa.
RAMOS
- A palavra "tardio" se aplica um pouco a todos nós. A arte é ainda o buraco para o agora, a fagulha do diferente, mas alguma coisa tardia cerca tudo e, mesmo no meu trabalho, o Brasil já foi de certa forma convertido em cultura. É bom lembrar que as "Elipses" do Serra, um dos trabalhos mais potentes dos últimos anos, são, de fato, elipses -um sistema estranho de retorno. Ainda que fora da plenitude do círculo, algo ali quer voltar.

FOLHA - A crítica já destacou um aspecto alegórico no seu trabalho. Seus textos e obras são alegóricos, no sentido benjaminiano, de reconstruir o mundo a partir das ruínas, de ruínas que podem se positivar? Eu acho que você fez isso no "111", por exemplo.
RAMOS
- Concordo. Mas num certo sentido "111" é uma exceção, porque parti de significados postos no mundo (notícias de jornal, nomes dos mortos etc.). Eu não parto quase nunca desse ponto, mas da matéria, o que é sempre mais abstrato. Procuro um estado de matéria arruinado em que nascer e morrer não sejam opostos. Preciso da matéria em estado bruto, preciso que ela quase caia e quase se transforme em outra coisa. Esse ponto de virada é o núcleo do que quero -uma espécie de suspensão, de susto, da iminência da catástrofe, das grandes mudanças que a vida tem. Quando acho esse ponto, o resto parece encaixar-se.


A canção brasileira é uma espécie de utopia realizada, quando você encosta ali, tudo reage e se encaixa


FOLHA - Ambiguidade é uma palavra que você usa muito. Pensando em seu trabalho, Lorenzo Mammì fala de indefinição congênita, Tassinari, de indecisão entre os limites...
RAMOS
- Exatamente. Acho que a passagem entre os opostos é instigante para mim. Nesse sentido, meu trabalho lida com alguma coisa pré-formada, que não se constituiu ainda. Os barcos de sabão, que fiz agora na exposição "Mar Morto" [no primeiro semestre, no Rio], pareciam geológicos. Procuro achar esse estado ambivalente entre o formado e o disforme, o sólido e o líquido, o cafona e o austero, o eufórico e o luto.

FOLHA - Já ouvi gente dizer, inclusive críticos, que considera um abuso colocar sambas como os do Nelson Cavaquinho (1911-86) em seus trabalhos, porque são "incriticáveis".
RAMOS
- O que é incriticável?

FOLHA - O samba e o próprio Nelson, como verdadeiras instituições, coisas de que todo mundo gosta...
RAMOS
- Tudo é criticável -falar bem é criticar também. Não tenho medo de utilizar nada do que possa se oferecer para mim -esse medo me parece uma forma perversa de controle cultural. A cultura deve ser usada à vontade, comida com a boca aberta. Era só o que faltava: o Nelson Cavaquinho, que morria de fome anteontem, virar agora panteão nacional. Isso vem de um certo pânico de que aspectos da cultura voltem a misturar-se (artes plásticas e canção, neste caso). Procuro justamente conectar, pôr em comunicação, aquilo que parece isolar-se cada vez mais. A canção brasileira é uma espécie de utopia realizada, quando você encosta ali, tudo reage e se encaixa.

FOLHA - Existe uma tradição brasileira de crítica de arte que procura relacionar a forma social (aspectos específicos da sociedade brasileira) às formas artísticas particulares. O exemplo maior dessa tradição talvez seja Antonio Candido, mas autores como Roberto Schwarz, Mammì e Rodrigo Naves dialogam com ela. Como se relaciona com essa tentativa de leitura nas diversas áreas do fazer artístico?
RAMOS
- O elemento verdadeiro dos meus ensaios é o elogio do objeto à minha frente, a tentativa de entrar, digamos, em "fase poética" com ele. Isso vem, eu acho, de uma outra vertente, da tradição crítica das artes plásticas, que tem origem em [Mário] Pedrosa e [Ferreira] Gullar e um momento decisivo no Ronaldo Brito, chegando aos críticos que são realmente próximos de mim: Rodrigo Naves, Alberto Tassinari e Lorenzo Mammì. Talvez essa leitura da cultura brasileira através de um desvio entre um modelo original e sua implantação entre nós, que está no núcleo do pensamento de Antonio Candido e Roberto Schwarz e que é importante também no livro do Rodrigo sobre a formação das artes plásticas no Brasil (mas não tanto na sua produção crítica), tenha sido substituída nos meus ensaios, meio sem querer (e sem formar, é claro, uma teoria), pela tematização de um desvio em relação ao espírito do tempo, à "agoridade" de cada época. É curioso como eu rendo mais falando de artistas como Paulinho da Viola ou [Oswaldo] Goeldi, marcados por um sentido de distância e de extemporaneidade. E mesmo no artista brasileiro de que mais gosto, o Hélio Oiticica [1937-80], claramente voltado para uma intervenção direta no seu tempo, fui buscar uma leitura a partir de suas contradições -a atividade misturada à passividade e ao torpor; o entrar na obra como buraco e refúgio dentro do mundo; a reversão do dentro e do fora na fita de Möbius tendo como preço um circuito infindável de retorno.

FOLHA - Quais são as referências artísticas que você mantém afastadas de seu trabalho porque admira, mas à distância? E quais são as que você quer possuir, incorporar?
RAMOS
- Acho que, para manter o pique do trabalho, reduzi a expectativa pela obra-prima (não gosto completamente de nada do que fiz) e o pânico da influência. Tenho influências a torto e a direito, escolhendo ou não escolhendo, sabendo ou não sabendo. Há dois grandes tipos de influência -a "poética" e a "técnica", que não se separam completamente. Tenho uma grande influência "técnica" do Frank Stella, no sentido daqueles relevões dele, que são muito importantes para mim. Mas meu trabalho é absolutamente diverso do dele no sentido poético -ele é um pragmático norte-americano e meu trabalho não tem nada com isso. Tenho uma influência poética, mais profunda, do [alemão Joseph] Beuys -um fascínio pelo que está dissolvido, um amor pelo desastre. Mas não acho produtiva, numa situação periférica como a nossa, a reivindicação literal pela originalidade. Nós temos um "delay" histórico inevitável, que é rico também, e temos que nos haver com isso. Na verdade, ao invés de buscar o que em nós é contemporâneo, talvez fosse mais rico procurar o que em nós é extemporâneo, deslocado no seu tempo, mas sem qualquer arcaísmo. Drummond tem grande dose de extemporaneidade, como Machado, Paulinho da Viola, Volpi ou Amilcar de Castro, e isso responde por grande parte da originalidade deles. Esse escorregão no tempo parece uma reação inteligente à ambivalência central de nossa presença no mundo -o estar "condenado ao moderno" simultâneo à impossibilidade radical de sê-lo completamente.

FOLHA - Seu trabalho há muito tempo inclui um diálogo próximo com críticos como Rodrigo Naves, Mammì, Tassinari e, agora, Paulo Sérgio Duarte. Isso parece fazer parte de seu próprio projeto. Podem até fazer reservas a alguns aspectos do trabalho, mas dessa forma mantêm viva uma tradição crítica em extinção, como a que existiu entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
RAMOS
- Isso é fundamental para mim. Uma das caretices supremas do nosso tempo é transformar o crítico num ser enfatuado e ressentido -na verdade, há uma libido na crítica, um desejo por mais arte. O que a crítica verdadeiramente faz, mesmo quando fala mal, é pedir à obra que vá mais longe, que seja mais profundamente o que ela tiver de ser. O Brasil tem tradição disso, desde os anos 60, numa quase simbiose entre obra e crítica, e seria fundamental que o jogo institucional-curatorial entre nós pudesse aproximar-se dessa voltagem. Mas acho que essa era está se encerrando, porque agora há muito mais lugar para a obra no próprio mundo, e a crítica já não é tão umbilicalmente presa ao seu objeto. Eu vivi, e vivo, a transição entre estes dois modelos.

FOLHA - Você parece querer penetrar na linguagem das coisas, como se elas pudessem falar sem sua interferência. Nesse sentido, parece que há uma espécie de "teoria da linguagem", como no texto de abertura de seu último livro, "Ó".
RAMOS
- Tem um tema que volta sempre -como seria se a palavra tivesse o poder de substituir fisicamente aquilo a que se refere? Isso trava o aspecto aéreo, gasoso, das palavras, que passam a querer carregar peso, corpo, suor. Isso não é uma teoria, mas volta sempre, e talvez queira compensar a loquacidade desenfreada das minhas coisas, como um freio ético, como se dar corpo às palavras pudesse diminuir a mentira delas.


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