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Os mundos paralelos de Nuno Ramos
O ARTISTA PLÁSTICO, ENSAÍSTA E FICCIONIS TA ELOGIA A "LIBIDO' DA CRÍTICA, SEU "DESEJO POR MAIS ARTE", E SE DIZ OTIMISTA EM RELAÇÃO À PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA, APESAR DO "BLABLABLÁ CURATORIAL" E DAS MOSTRAS
SATURADAS
Leonardo Wen - 25.ago.09/Folha Imagem
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O artista plástico Nuno Ramos, 49, no seu ateliê em São Paulo
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
As palavras "ameaça"
e "iminência" têm a
mesma origem: algo que está próximo, em suspensão.
Mas o que está prestes a acontecer não deveria representar,
necessariamente, um perigo.
Entretanto, esse momento
-em que se sabe que algo vai
ocorrer, mas não se sabe o quê,
como ou quando- é tido muitas vezes como ameaçador.
Não há como fixá-lo e não se
sabe o que virá. É esse pomo da
coisa, esse nó em que a coisa,
em pleno acontecimento, é
igual a si mesma, que Nuno Ramos quer deter, tanto na arte
como na literatura.
Em seus textos literários, esse momento aparece numa espécie de captura em flagrante
da palavra, quando ela ainda
não deixou de ser som e tampouco se cristalizou em significado. A palavra é pega com a
boca na botija, no meio do caminho; por isso tanto estranhamento e a ausência de sequências narrativas.
No trabalho artístico de Nuno, esse instante, como ele
mesmo diz nesta entrevista à
Folha, é aquele da quase catástrofe, antes que ela se desencadeie, quando a matéria está inteira, bruta e infinita no ato
mesmo de acontecer. Percebe-se que alguma coisa, que não
está lá, ronda a obra. O que está
lá é o quase, como se pudesse
ser "completamente quase".
Já em seus ensaios -sobre
arte, futebol, música e, de forma mais geral, sobre o Brasil-,
Nuno Ramos não se fixa mais
tanto na iminência e parte direto para os resultados, em análises tão claras quanto poéticas.
Prestes a publicar dois livros, que
dão sequência a sua dupla atividade em artes plásticas e literatura, Nuno fala, nesta entrevista, sobre alguns dos temas constantes em sua produção.
Entre eles, a aproximação entre as coisas e as palavras, o
processo de institucionalização
da arte e o caráter inevitavelmente "tardio" da arte contemporânea.
FOLHA - Você acha a arte inútil?
NUNO RAMOS - Acho que não há
arte sem um lado inútil, algo
que não caiba na vida nem no
tempo. Você olha uma coisa antiga e parece que ela foi feita
ontem. O azul da capela Scrovegni, de Giotto [do século 14],
é tão recente quanto o azul de
Yves Klein [1928-62]. No fundo, toda arte é contemporânea.
FOLHA - Mas, em algum outro momento da "contemporaneidade", já
se chegou à saturação de significados em que estamos hoje?
RAMOS - Concordo que o conjunto de obras de uma grande
mostra possa parecer inacessível e saturado, em grande parte
porque muito voltado para o
blablablá curatorial, que muitas vezes neutraliza e adormece
o bicho vivo que mora em tantas obras.
Mas acho que há muita coisa
boa rolando, e fica difícil ser
pessimista diante de obras como as "Elipses" de [Richard]
Serra, o teatro do sublime de
Olafur [Eliasson], a solidez de
um quadro de Paulo Pasta.
FOLHA - Alberto Tassinari, sobre
sua obra, fala em um alpinista que
escala ao mesmo tempo em que escorrega. Isso lembra Camus (1913-60), que, em "O Mito de Sísifo", fala
de um Sísifo orgulhoso de sua condenação, um "rebelde ativo".
RAMOS - A diferença entre as
duas imagens é que, no meu caso, erguer e perder a pedra formam um só movimento. Mas
queria voltar à pergunta do começo. Embora não reconheça
em obras individuais a saturação que você menciona, vejo no
processo institucional uma
pressão dissipadora, uma conspiração difusa pela mediocridade. Por isso, o artista hoje talvez devesse descobrir um sentido contemporâneo para um
outro livro de Camus, "O Estrangeiro". Um sentido de ambivalência.
FOLHA - A pressão institucional
tende a destruir a ambivalência, a
capacidade de ser estrangeiro?
RAMOS - A gente vive à sombra
do movimento moderno, em
que a polaridade arte-mundo
era definida por negação. Hoje,
esse confronto se esfacelou. No
entanto, o que se busca numa
obra de arte é ainda ar novo; a
arte foi inventada para trair a
mesmice da vida. O problema é
que esse movimento já foi de
alguma forma ocupado pelo jogo institucional. A "estrangeirice" hoje está na capacidade do
artista, como um tatu convicto,
de cavar o buraco da própria visão de mundo, de fixar e enraizar sua própria "poética".
Arte, é bom lembrar, é sempre uma espécie de visão, de
mundo paralelo, um "como se".
O mais maluco é que quase não
dá para imaginar fazer isso sem
contato e contágio com as instituições (mercado, bienais, museus etc.), que parecem querer
sobrepor o seu próprio "como
se" ao das obras que abrigam.
De novo, acho que ambivalência é a palavra-chave.
FOLHA - Tassinari fala de duas tradições do pensamento brasileiro. De
um lado, Euclydes da Cunha, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre,
Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa,
Zé Celso, Glauber Rocha e Hélio Oiticica; do outro, Manuel Bandeira,
Mário de Andrade, Niemeyer, concretos, João Cabral, bossa nova, tropicalismo. No meio: Carlos Drummond de Andrade. E afirma que você opera esteticamente nos dois
campos. Concorda?
RAMOS - Drummond é a coisa
mais livre que o Brasil produziu, o artista que topou olhar
para este patrimônio peculiar
brasileiro: o da indecisão constitutiva entre o moderno e o
atraso, entre o gentil e o violento. Drummond descreveu esses
dois polos contrários como irmãos gêmeos, amarrados, desencapando os dois fios e fazendo ligação direta entre eles.
Dos dois outros lados, me
identifico com o primeiro, talvez, pela estridência estilística,
mas principalmente com o segundo, o lado Goeldi-Bandeira-Nelson Cavaquinho, que escapa desse nasce-morre drummondiano e mergulha direto na
derrisão nacional. Fico pulando de um lado para o outro.
Arte é sempre uma espécie de visão, de mundo paralelo, um "como se"
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FOLHA - Em sua produção, em geral, vejo uma mistura de entusiasmo
e cansaço, desencanto e promessa.
RAMOS - A palavra "tardio" se
aplica um pouco a todos nós. A
arte é ainda o buraco para o
agora, a fagulha do diferente,
mas alguma coisa tardia cerca
tudo e, mesmo no meu trabalho, o Brasil já foi de certa forma convertido em cultura. É
bom lembrar que as "Elipses"
do Serra, um dos trabalhos
mais potentes dos últimos
anos, são, de fato, elipses -um
sistema estranho de retorno.
Ainda que fora da plenitude do
círculo, algo ali quer voltar.
FOLHA - A crítica já destacou um
aspecto alegórico no seu trabalho.
Seus textos e obras são alegóricos,
no sentido benjaminiano, de reconstruir o mundo a partir das ruínas, de ruínas que podem se positivar? Eu acho que você fez isso no
"111", por exemplo.
RAMOS - Concordo. Mas num
certo sentido "111" é uma exceção, porque parti de significados postos no mundo (notícias
de jornal, nomes dos mortos
etc.). Eu não parto quase nunca
desse ponto, mas da matéria, o
que é sempre mais abstrato.
Procuro um estado de matéria arruinado em que nascer e
morrer não sejam opostos. Preciso da matéria em estado bruto, preciso que ela quase caia e
quase se transforme em outra
coisa. Esse ponto de virada é o
núcleo do que quero -uma espécie de suspensão, de susto, da
iminência da catástrofe, das
grandes mudanças que a vida
tem. Quando acho esse ponto, o
resto parece encaixar-se.
A canção brasileira é uma espécie de utopia realizada, quando você encosta ali, tudo reage e se encaixa
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FOLHA - Ambiguidade é uma palavra que você usa muito. Pensando
em seu trabalho, Lorenzo Mammì
fala de indefinição congênita, Tassinari, de indecisão entre os limites...
RAMOS - Exatamente. Acho
que a passagem entre os opostos é instigante para mim. Nesse sentido, meu trabalho lida
com alguma coisa pré-formada,
que não se constituiu ainda. Os
barcos de sabão, que fiz agora
na exposição "Mar Morto" [no
primeiro semestre, no Rio], pareciam geológicos. Procuro
achar esse estado ambivalente
entre o formado e o disforme, o
sólido e o líquido, o cafona e
o austero, o eufórico e o luto.
FOLHA - Já ouvi gente dizer, inclusive críticos, que considera um abuso
colocar sambas como os do Nelson
Cavaquinho (1911-86) em seus trabalhos, porque são "incriticáveis".
RAMOS - O que é incriticável?
FOLHA - O samba e o próprio Nelson, como verdadeiras instituições,
coisas de que todo mundo gosta...
RAMOS - Tudo é criticável -falar bem é criticar também. Não
tenho medo de utilizar nada do
que possa se oferecer para mim
-esse medo me parece uma
forma perversa de controle cultural. A cultura deve ser usada à
vontade, comida com a boca
aberta. Era só o que faltava: o
Nelson Cavaquinho, que morria de fome anteontem, virar
agora panteão nacional.
Isso vem de um certo pânico
de que aspectos da cultura voltem a misturar-se (artes plásticas e canção, neste caso). Procuro justamente conectar, pôr
em comunicação, aquilo que
parece isolar-se cada vez mais.
A canção brasileira é uma espécie de utopia realizada, quando
você encosta ali, tudo reage e se
encaixa.
FOLHA - Existe uma tradição brasileira de crítica de arte que procura
relacionar a forma social (aspectos
específicos da sociedade brasileira)
às formas artísticas particulares. O
exemplo maior dessa tradição talvez seja Antonio Candido, mas autores como Roberto Schwarz, Mammì
e Rodrigo Naves dialogam com ela.
Como se relaciona com essa tentativa de leitura nas diversas áreas do
fazer artístico?
RAMOS - O elemento verdadeiro dos meus ensaios é o elogio
do objeto à minha frente, a tentativa de entrar, digamos, em
"fase poética" com ele. Isso
vem, eu acho, de uma outra vertente, da tradição crítica das artes plásticas, que tem origem
em [Mário] Pedrosa e [Ferreira] Gullar e um momento decisivo no Ronaldo Brito, chegando aos críticos que são realmente próximos de mim: Rodrigo Naves, Alberto Tassinari
e Lorenzo Mammì.
Talvez essa leitura da cultura
brasileira através de um desvio
entre um modelo original e sua
implantação entre nós, que está no núcleo do pensamento de
Antonio Candido e Roberto
Schwarz e que é importante
também no livro do Rodrigo sobre a formação das artes plásticas no Brasil (mas não tanto na
sua produção crítica), tenha sido substituída nos meus ensaios, meio sem querer (e sem
formar, é claro, uma teoria), pela tematização de um desvio em
relação ao espírito do tempo, à
"agoridade" de cada época.
É curioso como eu rendo
mais falando de artistas como
Paulinho da Viola ou [Oswaldo]
Goeldi, marcados por um sentido de distância e de extemporaneidade. E mesmo no artista
brasileiro de que mais gosto, o
Hélio Oiticica [1937-80], claramente voltado para uma intervenção direta no seu tempo, fui
buscar uma leitura a partir de
suas contradições -a atividade
misturada à passividade e ao
torpor; o entrar na obra como
buraco e refúgio dentro do
mundo; a reversão do dentro e
do fora na fita de Möbius tendo
como preço um circuito infindável de retorno.
FOLHA - Quais são as referências
artísticas que você mantém afastadas de seu trabalho porque admira,
mas à distância? E quais são as que
você quer possuir, incorporar?
RAMOS - Acho que, para manter o pique do trabalho, reduzi a
expectativa pela obra-prima
(não gosto completamente de
nada do que fiz) e o pânico da
influência. Tenho influências a
torto e a direito, escolhendo ou
não escolhendo, sabendo ou
não sabendo. Há dois grandes
tipos de influência -a "poética" e a "técnica", que não se separam completamente.
Tenho uma grande influência "técnica" do Frank Stella,
no sentido daqueles relevões
dele, que são muito importantes para mim. Mas meu trabalho é absolutamente diverso do
dele no sentido poético -ele é
um pragmático norte-americano e meu trabalho não tem nada com isso.
Tenho uma influência poética, mais profunda, do [alemão
Joseph] Beuys -um fascínio
pelo que está dissolvido, um
amor pelo desastre. Mas não
acho produtiva, numa situação
periférica como a nossa, a reivindicação literal pela originalidade. Nós temos um "delay"
histórico inevitável, que é rico
também, e temos que nos haver
com isso.
Na verdade, ao invés de buscar o que em nós é contemporâneo, talvez fosse mais rico
procurar o que em nós é extemporâneo, deslocado no seu
tempo, mas sem qualquer arcaísmo. Drummond tem grande dose de extemporaneidade,
como Machado, Paulinho da
Viola, Volpi ou Amilcar de Castro, e isso responde por grande
parte da originalidade deles.
Esse escorregão no tempo
parece uma reação inteligente
à ambivalência central de nossa
presença no mundo -o estar
"condenado ao moderno" simultâneo à impossibilidade radical de sê-lo completamente.
FOLHA - Seu trabalho há muito
tempo inclui um diálogo próximo
com críticos como Rodrigo Naves,
Mammì, Tassinari e, agora, Paulo
Sérgio Duarte. Isso parece fazer parte de seu próprio projeto. Podem até
fazer reservas a alguns aspectos do
trabalho, mas dessa forma mantêm
viva uma tradição crítica em extinção, como a que existiu entre Mário
de Andrade e Manuel Bandeira.
RAMOS - Isso é fundamental
para mim. Uma das caretices
supremas do nosso tempo é
transformar o crítico num ser
enfatuado e ressentido -na
verdade, há uma libido na crítica, um desejo por mais arte. O
que a crítica verdadeiramente
faz, mesmo quando fala mal, é
pedir à obra que vá mais longe,
que seja mais profundamente o
que ela tiver de ser.
O Brasil tem tradição disso,
desde os anos 60, numa quase
simbiose entre obra e crítica, e
seria fundamental que o jogo
institucional-curatorial entre
nós pudesse aproximar-se dessa voltagem. Mas acho que essa
era está se encerrando, porque
agora há muito mais lugar para
a obra no próprio mundo, e a
crítica já não é tão umbilicalmente presa ao seu objeto. Eu
vivi, e vivo, a transição entre estes dois modelos.
FOLHA - Você parece querer penetrar na linguagem das coisas, como
se elas pudessem falar sem sua interferência. Nesse sentido, parece
que há uma espécie de "teoria da
linguagem", como no texto de abertura de seu último livro, "Ó".
RAMOS - Tem um tema que volta sempre -como seria se a palavra tivesse o poder de substituir fisicamente aquilo a que se
refere? Isso trava o aspecto aéreo, gasoso, das palavras, que
passam a querer carregar peso,
corpo, suor. Isso não é uma teoria, mas volta sempre, e talvez
queira compensar a loquacidade desenfreada das minhas coisas, como um freio ético, como
se dar corpo às palavras pudesse diminuir a mentira delas.
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