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ADULTESCÊNCIA
Sentido da vida se esvazia com a desvalorização da experiência no mundo contemporâneo
A 'teenagização' da cultura
MARIA RITA KEHL
especial para a Folha
"O Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos", escreveu Nelson
Rodrigues em uma crônica sobre
sua infância na rua Alegre. "Os
moços não tinham função, nem
destino. A época não suportava a
mocidade" (1). O escritor estava
se referindo aos sinais de respeitabilidade e seriedade que todo moço tinha pressa em ostentar. Um
homem de 25 anos já portava o bigode, a roupa escura e o guarda-chuva necessário para identificá-lo entre os homens de 50, e não
entre os rapazes de 18. Já um futuro escritor do ano 2030, quando
escrever sobre a infância nos anos
90, poderá afirmar: "No meu
tempo, todo mundo era jovem".
Ou melhor: há 30 anos somos todos jovens. No "nosso" tempo,
essa história de ser jovem começou a sair de uma certa obscuridade culposa e obediente à qual discursos médicos e morais a haviam
relegado. De início (não preciso
repetir o que já se escreveu sobre
os anos 60 no Ocidente), o fenômeno tinha o vigor e a beleza caótica típicos do retorno do recalcado. "Jovem" era o significante
para tudo o que até então vivia nos
porões da civilização. Jovem era a
inteligência quando se aventurava
a pensar para além dos cânones
universitários. Jovem era a sexualidade que saiu à luz do dia (com
ajuda, convenhamos, dos anticoncepcionais), dispensando as culpas e tabus que fizeram a angústia
e a acne das gerações anteriores.
Mais que o sexo, jovens eram as
pulsões de vida todas, eróticas ou
agressivas, que impregnaram a
música, a política e os costumes,
na esperança de que a vida pudesse se revolucionar de ponta a ponta, se estetizar, se fazer puro fluxo,
puro gozo. Titio Nietzsche, aquele
velho bigodudo que pensava como um eterno rebelde, teria adorado.
Mas também não preciso repetir
que forças bem mais poderosas do
que os anseios de uma ou duas gerações de filhos, logo entraram em
jogo. Que as forças de capital -as
mesmas que, inadvertidamente,
contribuíram para evocar espíritos juvenis adormecidos-, com
seu senso imbatível de oportunidade, souberam reorganizar o
caos em torno da chamada lógica
do mercado. Ser jovem virou slogan, virou clichê publicitário, virou imperativo categórico -condição para se pertencer a uma certa elite atualizada e vitoriosa. Ao
mesmo tempo, a "juventude" se
revelava um poderosíssimo exército de consumidores, livres dos
freios morais e religiosos que regulavam a relação do corpo com
os prazeres, e desligados de qualquer discurso tradicional que pudesse fornecer critérios quanto ao
valor e à consistência, digamos,
existencial, de um enxurrada de
mercadorias tornadas, da noite
para o dia, essenciais para a nossa
felicidade.
Quanto mais tempo pudermos
nos considerar jovens hoje em dia,
melhor. Melhor para a indústria
de quinquilharias descartáveis,
melhor para a publicidade -melhor para nós? O fato é que nas últimas décadas viramos jovens perenes. Por que não? Se no tempo
de Nelson Rodrigues todos queriam ser velhos; se cada época elege um período da vida para simbolizar seus ideais de perfeição
-que lei, moral ou natural, deve
determinar os critérios de maturação humana, os padrões de longevidade, o limite para o que podemos exigir ou desfrutar de nossos
corpos? Se ainda não se sabe do
que a máquina humana, feita de
apetites e de linguagem, é capaz,
por que o poder da cultura, do dinheiro, do cinema e da televisão
não podem congelar cinco, seis
gerações num estado de juventude
perpétua?
O que importa agora é pensar os
efeitos disto que estamos chamando de "teenagização" da cultura
ocidental. O primeiro que me
ocorre é o seguinte: todo adulto
(biologicamente falando, digo,
sem querer ofender ninguém)
sente uma certa má consciência
diante de sua experiência de vida.
Se a regra é viver com a disponibilidade, a esperança e os anseios de
quem tem 13, 15 ou 17 anos, que
fazer da seletividade, da desconfiança e até mesmo da consolidação de um certo perfil existencial
mais definido, inevitáveis para
quem viveu 40 ou 50 anos?
Verdade que o imperativo jovem
tem o interesse de nos forçar contra a inércia que a passagem do
tempo confere aos corpos, e a prova de que isto é possível é que pessoas de 40 anos, nos anos 90, têm a
aparência e a vitalidade de pessoas
de 25, três gerações atrás. Mas,
uma vez que se produz a mascarada jovem, composta de objetos e
atitudes ready-made, a inércia se
reinstala num outro lugar. A matrona que envelhecia instalada na
cadeira de balanço agora se cristaliza em pin-up entediada sobre a
bicicleta ergométrica. O cavalheiro que se aboletava com o jornal e
os chinelos, agora se aboleta no
volante de uma poderosa van de
última geração -quando não sai
pelas estradas fazendo as mesmas
burradas exibicionistas que seu filho adolescente. A atitude pode ser
mais saudável, mas a esclerose
mental é a mesma. Afinal, o corpo
não é o único produtor de inércia:
há que se contar com os efeitos estagnantes da alienação.
O adulto que se espelha em
ideais teen se sente desconfortável
ante a responsabilidade de tirar
suas conclusões sobre a vida e passá-las a seus descendentes. Isso
significa que a vaga de "adulto",
na nossa cultura, está desocupada.
Ninguém quer estar "do lado de
lá", o lado careta, do conflito de
gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou. Mães
e pais dançam rock, funk e reggae
como seus filhos, fazem comentários cúmplices sobre sexo e drogas, frequentemente posicionam-se do lado da transgressão
nos conflitos com a escola e com
as instituições.
Esta liberdade cobra seu preço
em desamparo: os adolescentes
parecem viver num mundo cujas
regras são feitas por eles e para
eles, já que os próprios pais e educadores estão comprometidos
com uma leveza e uma "nonchalance" jovem. Não que os pais
"de antigamente" soubessem como os filhos deveriam enfrentar a
vida, mas pensavam que sabiam, e
isso era suficiente para delinear
um horizonte, constituir um código de referência -ainda que fosse
para ser desobedecido. Quando os
pais dizem: "Sei lá, cara, faz o que
você estiver a fim", a rede de proteção imaginária constituída pelo
que o Outro sabe se desfaz, e a própria experiência perde significação. E, como nenhum lugar de
produção de discurso fica vazio
muito tempo sem que algum
aventureiro lance mão, atenção!, o
Estado autoritário, puro e simples,
pode vir fazer as vezes dos adultos
que se pretendem teen. Neste caso,
em vez da elaboração da experiência, teremos "razões de Estado"
(ou pior, razões do Banco Mundial) ditando o que fazer de nossas
vidas.
A desvalorização da experiência
esvazia o sentido da vida. Não falo
da experiência como argumento
de autoridade -"eu sei porque
vivi". Sobretudo numa cultura
plástica e veloz como a contemporânea, pouco podemos ensinar
aos outros partindo da nossa experiência. No máximo, que a alteridade existe. Mas a experiência,
assim como a memória, produz
consistência subjetiva. Eu sou o
que vivi. Descartado o passado,
em nome de uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de
suportar.
Parece contraditório supor que
uma cultura teen possa ser depressiva, sobretudo quando se aposta
no império das sensações -adrenalina, orgasmo, cocaína- para
agitar a moçada. Mas às vezes me
preocupa, desligados a tevê e o
walk-man, este enorme silêncio à
nossa volta.
Nota:
1. Nelson Rodrigues, "Só os Idiotas Respeitam Shakespeare", em "O Óbvio Ululante", Companhia das Letras, 1993, pág.
158.
Maria Rita Kehl é psicanalista, poeta e ensaísta,
autora de "A Mínima Diferença" (Imago) e "Processos Primários" (Estação Liberdade). Ela está
lançando "Deslocamentos do Feminino" (Imago).
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