São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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Protofascismo e as máscaras da ignorância


Aos cem anos de idade, a cineasta alemã Leni Riefenstahl, diretora de clássicos da filmografia nazista como "Triunfo da Vontade" e "Olympia", continua sendo um ponto cego nos debates sobre estética e ideologia


Slavoj Zizek

A obra de Leni Riefenstahl parece se prestar a uma leitura teleológica, progredindo na direção de sua sombria conclusão. Começou com o gênero "Bergfilme", que celebrou o heroísmo e o esforço físico nas condições extremas do alpinismo; continuou com seus dois documentários "nazistas", celebrando a disciplina política e esportiva, a concentração e a força de vontade; depois da Segunda Guerra Mundial, em seus álbuns de fotos, ela redescobriu seu ideal de beleza física e autocontrole gracioso na tribo africana dos núbios; finalmente, nas últimas décadas, ela aprendeu a difícil arte do mergulho submarino e começou a fazer documentários sobre a estranha vida nas escuras profundezas marítimas.
Assim, parecemos ver uma clara trajetória de alto para baixo: começamos com os indivíduos esforçando-se nos picos das montanhas e descemos gradualmente até alcançarmos a luta amorfa da própria vida no fundo do mar -o que ela encontrou lá embaixo não foi seu objeto definitivo, a obscena e irresistível pujança da própria vida eterna, o que ela vinha buscando desde sempre? E isso não se aplica também a sua personalidade?
Efetivamente, parece que o medo daqueles que são fascinados por Leni não é mais "quando ela morrerá?", mas "ela morrerá um dia?", embora racionalmente saibamos que ela morrerá em breve, de certa forma não acreditamos realmente nisso, secretamente convencidos de que ela viverá para sempre...

"Fascinante fascismo"
Essa continuidade geralmente recebe um viés "protofascista", como é exemplar no caso do famoso ensaio de Susan Sontag sobre Leni, "Fascinante Fascismo". A idéia é que mesmo seus filmes pré e pós-nazistas articulam uma visão da vida que é "protofascista": o fascismo de Leni é mais profundo que sua direta celebração da política nazista, ele já reside em sua estética pré-política da vida, em seu fascínio pelos belos corpos exibindo movimentos disciplinados... Talvez seja hora de problematizar esses topos.
Vejamos "Das Blaue Licht" ("A Luz Azul", 1932): não é possível ler o filme também exatamente no sentido inverso? Junta, a solitária e selvagem garota da montanha, não é uma marginal que quase se torna vítima de um pogrom pelos habitantes da aldeia -um pogrom que só pode nos lembrar os pogroms anti-semitas? Talvez não seja por acaso que Béla Balázs (1884-1949, poeta húngaro), o amante de Leni na época e que escreveu o roteiro com ela, fosse um marxista...
O problema aqui é muito mais geral, vai muito além de Leni. Tomemos o oposto exato de Leni, [o músico" Arnold Schoenberg: na segunda parte de "Harmonia" (ed. Unesp), seu importante manifesto teórico de 1911, ele desenvolve sua oposição à música tonal em termos que, superficialmente, quase lembram os panfletos anti-semíticos nazistas posteriores. A música tonal transforma-se em um mundo "doentio", "degenerado", que requer uma solução de limpeza; o sistema tonal cedeu à "consanguinidade e incesto"; acordes românticos como a sétima bemol são "hermafroditas", "errantes" e "cosmopolitas"...
Nada mais fácil que afirmar que essa atitude messiânico-apocalíptica faz parte da mesma "situação espiritual" que deu origem à "solução final" nazista. Essa, porém, é exatamente a conclusão que se deve evitar: o que torna o nazismo repulsivo não é a retórica da solução final em si, mas o viés concreto que ele lhe dá.

O liberalismo ideológico
Outro tema popular desse tipo de análise, mais próximo de Leni, é o caráter supostamente "protofascista" da coreografia de massa, exibindo os movimentos disciplinados de milhares de corpos (desfiles, apresentações em massa nos estádios etc.); se também a encontramos no socialismo, tiramos imediatamente a conclusão de uma "solidariedade mais profunda" entre os dois "totalitarismos".
Esse procedimento, o verdadeiro protótipo do liberalismo ideológico, perde o ponto principal: não apenas essas apresentações de massa não são inerentemente fascistas como nem sequer são "neutras", esperando para ser apropriadas pela esquerda ou a direita -foi o nazismo que se apropriou delas, roubando-as do movimento operário, seu local de nascimento original. Nenhum dos elementos "protofascistas" é fascista em si; o que os torna "fascistas" é apenas sua articulação específica ou, para colocar nos termos de Stephen Jay Gould, todos esses elementos são "expropriados" pelo fascismo. Em outras palavras, não existe "fascismo avant la lettre", porque é a própria letra (a denominação) o que faz do conjunto de elementos o fascismo propriamente dito.
Na mesma linha, devemos radicalmente rejeitar a noção de que a disciplina (desde o autocontrole ao treinamento físico) seja uma característica "protofascista" (o próprio predicado "protofascista" deveria ser abandonado): é o caso exemplar de um pseudoconceito cuja função é impedir a análise conceitual.
Quando dizemos que o espetáculo organizado de milhares de corpos (ou, digamos, a admiração de esportes que exigem grande esforço e autocontrole, como o alpinismo) é "protofascista", dizemos estritamente nada, apenas expressamos uma vaga associação que mascara nossa ignorância.
Assim, quando três décadas atrás os filmes de kung fu se tornaram populares (Bruce Lee etc.), não era óbvio que estávamos tratando com uma genuína ideologia de jovens da classe trabalhadora, cujo único meio de sucesso era o treinamento disciplinar de sua única posse, seus corpos? A espontaneidade e a atitude "deixa estar" de entregar-se a liberdades excessivas pertencem àqueles que têm os meios para tanto; aqueles que nada têm, têm apenas a sua disciplina. A disciplina física "má", se é que isso existe, não é o treinamento coletivo, mas sim o jogging e a musculação como parte do mito da Nova Era de realização dos potenciais internos do "self".
E não admira que a obsessão pelo próprio corpo seja uma parte quase obrigatória da passagem dos antigos radicais de esquerda para a "maturidade" da política pragmática: de Jane Fonda a Joschka Fischer [ministro das Relações Exteriores alemão", o "período de latência" entre as duas fases foi marcado pelo enfoque no próprio corpo.

Leni, Ezra Pound, Yeats
Então, voltando a Leni, o que isso quer dizer não é que devamos desprezar seu envolvimento nazista como um episódio infeliz e limitado. O verdadeiro problema é suportar a tensão que percorre sua obra: a tensão entre a perfeição artística de seus procedimentos e o projeto ideológico que os "apropriou". Por que seu caso seria diferente do de Ezra Pound, W.B. Yeats e outros modernistas com tendências fascistas, que há muito tempo se tornaram parte de nosso cânone artístico?

Talvez a busca da "verdadeira identidade ideológica" de Leni seja enganosa: não existe essa identidade, ela foi na verdade jogada de um lado para outro, incoerente, apanhada em uma teia de forças conflitantes.

Teria sido então o melhor modo de comemorar seu aniversário não assumir o risco de desfrutar um filme como "A Luz Azul", que encerra a possibilidade de uma leitura política de sua obra totalmente diferente da predominante?

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" (Ed. Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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