São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice John Kenneth Galbraith, um dos mais importantes economistas do mundo, discute por que os pobres foram abandonados pelos países avançados em palestra realizada em Montreal O engajamento social hoje
JOHN KENNETH GALBRAITH
O sistema de mercado distribui a renda de forma altamente desigual. Hoje está claro que os Estados Unidos exercem uma liderança mundial negativa nesse sentido. Uma organização sindical forte e eficaz, um salário mínimo humano, seguridade social e boa assistência à saúde são reconhecidamente uma parte da resposta. Concordamos com isso. E também um imposto de renda decididamente progressivo. Poucos exercícios de argumentação social ocorrem tão obviamente em defesa do próprio interesse financeiro como os que os ricos fazem contra seus impostos. Sempre acabam se resumindo ao caso ligeiramente improvável de que os ricos não trabalham porque sua renda é pequena demais, e os pobres, porque a sua é grande demais. Ou, relembrando minhas origens rurais em Elgin, Ontário, ao que se pode chamar de teoria do cavalo e dos pardais: segundo ela, se for dada ração suficiente ao cavalo, parte dela terminará na estrada, para os pardais. Talvez, quem sabe? Nada contribui tanto para a energia e a iniciativa da economia moderna quanto a luta para manter e aumentar a renda depois da dedução de impostos, mas esse é um ponto em que não quero insistir. Nós, socialmente engajados, não desejamos igualdade na distribuição de renda. As pessoas diferem em capacidade e ambição na busca por recompensa financeira e por lucro. Há também o papel da iniciativa, da sorte e da avareza. Devemos aceitar isso. Mas não podemos esquecer o objetivo de uma distribuição de renda socialmente defensável. Isso, eu repito, o sistema de impostos deve permanentemente considerar. Podemos esperar gritos angustiados dos muito ricos e não precisamos responder a eles. Nossa missão reflete o antigo objetivo de Pulitzer: confortar os aflitos e afligir os confortados. Deve haver também claro reconhecimento de outro grande defeito do sistema de mercado. É sua alocação de renda entre os serviços e funções públicos e privados. Nos Estados Unidos, a televisão privada é generosamente financiada, enquanto as escolas públicas urbanas estão depauperadas. Os edifícios particulares são limpos e agradáveis; as moradias e as vias públicas são repugnantes. As bibliotecas, os locais de lazer público, os serviços sociais básicos -todos mais necessários aos pobres que aos ricos- são considerados um fardo. O padrão de vida particular, em contraste, é bom e sacrossanto. Não toleramos essa anomalia. Alguns meses atrás estive na Califórnia para uma palestra em Berkeley, a outra das duas universidades de minha juventude às quais sou profundamente grato. Lá só se falava nos cortes de verbas que a universidade estava sofrendo. Isso num Estado rico, repleto de bens de consumo e de bilhões em recursos para produções de televisão moralmente depravadas. Isso é totalmente absurdo. Não podemos tolerar erros tão aberrantes no que se refere à educação. Alta competência profissional, financiamento adequado e mesmo generoso e uma disciplina justa e eficaz devem tornar a educação disponível a todos. A justificativa não é somente que uma força de trabalho educada aumenta a produtividade econômica, como se faz hoje, infelizmente. É sobretudo que a boa educação aumenta e enriquece a experiência da vida. Essa é a verdadeira justificativa. É preciso haver, acima de tudo, uma rede de segurança eficaz -apoio individual e familiar- aos que vivem nos limites inferiores do sistema, ou abaixo deles. Isso é humanamente essencial, e também necessário para a liberdade humana. Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de um cidadão quanto a absoluta falta de dinheiro. Nos Estados Unidos, como eu disse, ocorreu durante dois anos um ataque ao sistema de previdência social -em linguagem simples, a guerra dos afluentes contra os pobres. Outros países tiveram manifestações semelhantes, não excluindo esta terra favorecida. Nesse conflito não há dúvida sobre que posição nós, socialmente engajados, devemos tomar. Devemos dar forte apoio às medidas sociais que protegem os mais pobres. Uma sociedade rica não pode fazer menos. Devemos também ter consciência de uma importante causa desse ataque aos serviços públicos e à segurança dos pobres. É mais uma conquista dos socialmente engajados. Durante anos criamos programas sociais -assistência à saúde, seguridade social, medidas para uma economia mais forte e eficaz e muito mais. Assim demos segurança a muitas pessoas em seu bem-estar e, em consequência, como se poderia esperar, elas se tornaram mais conservadoras em suas atitudes e expressões públicas. Agora elas vêem a ajuda aos menos afortunados como uma ameaça a seus amplos e muitas vezes crescentes rendimentos. Sejamos sempre conscientes de que foi esta nossa realização política. Ao criar uma sociedade moderna, socialmente mais funcional e mais compassiva, criamos ao mesmo tempo a cultura da auto-satisfação. Mas não devemos nos arrepender. Como eu já disse, também salvamos o sistema. Volto-me finalmente para o cenário internacional como um todo. A associação mais íntima entre as principais potências econômicas é uma realidade de nossa época. O comércio, as finanças, as empresas internacionais, as viagens, a tecnologia e a atividade cultural -tudo isso causou esse resultado. Em contraste com as duas guerras que toldaram a primeira metade do século 20, é um progresso muito favorável, do qual não se pode arrepender. O nacionalismo desenfreado tem uma história cruel e deprimente. No entanto, há condições que devemos exigir antes de adotar uma política de internacionalismo. O passo na direção de maior associação não pode prejudicar os sistemas assistenciais dos Estados participantes. Estes devem ser protegidos, e esse esforço exige uma ação conjunta internacional. Deve haver uma coordenação eficaz das políticas de assistência social e das políticas fiscais e monetárias, mais gerais e controladoras. É nisto -e não, como hoje, numa política comercial socialmente estéril- que os presidentes e primeiros-ministros cada vez mais devem se concentrar (e fazer acordos) em suas reuniões. Não há possibilidade de um compromisso estreito com a nação-Estado. Mas tampouco pode haver um internacionalismo insensato que sacrifique as conquistas sociais do último século, e as que ainda são necessárias. O internacionalismo vai avançar; deve, no entanto, fazê-lo de mãos dadas com a coordenação e a proteção da política nacional social e de assistência. Há outra obrigação internacional que os países afortunados devem assumir: a preocupação pelo bem-estar humano não termina nas fronteiras nacionais. Deve estender-se aos pobres de todo o planeta; fome, doença e morte são causas de sofrimento humano onde quer que sejam experimentadas. Todas as pessoas civilizadas devem concordar com isso. O pior sofrimento hoje decorre da desordem e do conflito internos. Os habitantes dos países ricos convivem pacificamente, de modo geral. Essa é uma das recompensas do bem-estar. A vida nesse mundo é preferível a uma transferência prematura para o próximo. São os pobres, que têm pouco a perder e maiores expectativas em relação ao mundo seguinte, que se devastam e destroem reciprocamente. Na mesma medida deve haver um sério compromisso entre os países ricos para pôr fim aos conflitos, levar a ordem aonde e quando seja humanamente essencial. Não considero isso uma responsabilidade específica de qualquer país, nem dos Estados Unidos. Deve ser uma função eficiente e bem financiada das Nações Unidas. As reivindicações de soberania nacional não podem permitir a chacina em massa dos mais pobres dos pobres pelos pobres. Além disso, os países ricos devem ter a obrigação absoluta de ajudar. Essa é uma questão com que me preocupo há muito; não devemos ceder ao argumento de que, se essas pessoas continuam pobres, é porque a ajuda anterior foi ineficaz. De fato, nas fases iniciais do esforço de desenvolvimento, nos apressamos demais em transferir o pesado aparato industrial dos países desenvolvidos -usinas de aço, geradores elétricos, aeroportos- para os novos países. Hoje afinal reconhecemos que o investimento humano -em saúde e educação- é mais urgente. Sejamos claros: no mundo inteiro não existe população alfabetizada que seja pobre; e não existe população analfabeta que não seja pobre. Devemos ainda ter consciência -uma questão que antes não se compreendeu- de que o que é certo e possível nas ações sociais e econômicas nos países favorecidos não pode ser transferido impensadamente para os países pobres. Isso também já foi experimentado. Governos de competência limitada receberam tarefas sociais e econômicas além de sua capacidade de atuação honesta e eficiente. Todas as coisas, incluindo a política social, devem acompanhar o ambiente social e político mais amplo e determinante. As funções iniciais do governo e da economia agrícola e urbana relativamente desregulamentada foram propícias aos países hoje avançados. A vida econômica e o papel social do Estado devem igualmente estar de acordo com as novas nações. Deixar de reconhecer essa necessidade foi um grave erro dos socialmente engajados quando começaram a abordar o problema do desenvolvimento econômico. Chego ao fim destes comentários. Sejamos otimistas. As atitudes e ações sociais que preguei hoje não foram uma invenção cerebral dos que possuem inclinação política. Nós, socialmente engajados, não fomos tão criativos e inovadores. A mudança nos foi dada pela história -pelas exigências e oportunidades de uma estrutura social e econômica altamente desenvolvida. A economia agrária elementar do passado não sofria desemprego. Havia sempre trabalho nas fazendas; naquela época os jovens cuidavam dos idosos. A assistência à saúde não era vitalmente importante; antes dos grandes avanços da medicina e da cirurgia modernas, o médico tinha pouco o que vender. A opção entre doença e saúde, morte e vida, não era determinada pela capacidade de pagar. Foi a urbanização que tornou necessária uma ampla gama de serviços públicos, incluindo uma estrutura abrangente e compassiva de apoio assistencial. (Isso certamente não era essencial em Iona Station, 23 habitantes, perto de onde eu nasci.) Os que hoje gostariam de reverter a ação social ou mesmo permitiriam sua estagnação não conflitam com os socialmente engajados; vão contra a força maior da história. Podemos até ter certa simpatia por eles, nossos adversários. Nós, e não eles, estamos acompanhando a história. Mas também devemos estar conscientes de nosso próprio papel. Não foi de criação, mas de adaptação. Sendo como são o mundo e seu compromisso com a mudança, haverá constante necessidade de ajustes. Nossa tarefa -a de todos nós que acompanhamos compassivamente o passo da história- nunca termina. Enquanto resistirmos aos que tentam deter ou reverter essa adaptação, devemos estar prontos para futuras mudanças. Assim sendo, encerrarei este discurso -este tributo ao senador Davey, um líder que, ouso acreditar, simpatiza amplamente com o que preguei hoje. A diferença é que eu preguei, enquanto ele agiu. Termino também afirmando meu prazer e privilégio por voltar ao que ainda posso chamar de minha terra natal. Agradeço à platéia e aos leitores pela atenção paciente e tolerante a minhas idéias, meus ideais e meu permanente idealismo. "The Socially Concerned Today", de John Kenneth Galbraith, é o texto de uma palestra inaugural sobre a política do senador canadense Keith Davey, proferida pelo economista na Universidade de Toronto em 1997 e só publicada neste ano. Copyright University of Toronto Press Incorporated 1998. Publicada com permissão. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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