São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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Ponto de Fuga

Notas de viagem 2


"Cenerentola", de Rossini, a música mais endemo- ninhada que já passou pelo cérebro de um compositor, ficou mais engraçada e maluca graças a Irina Brook, que dirigiu cenicamente o espetáculo


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O teatro de ópera construído por Garnier em Paris é um prodígio. Máquina de fabricar ilusões espetaculares, foi inaugurado em 1875.
Edifício lendário, verdadeiro personagem central do romance "O Fantasma da Ópera", de Gaston Leroux [1868-1927], foi chamado "a ópera de Paris", até que a outra, a da Bastilha, fosse concluída em 1989. Então tomou o nome de seu arquiteto, para se distinguir da irmã 114 anos mais nova.
Os espaços, estreitos ou dilatados, aéreos e suntuosos, protegem o espectador em seus percursos. A ornamentação, abundante, mas justa e necessária, fascina, graças à qualidade dos artistas que nela trabalharam. De "A Dança", de Carpeaux, em pedra, que acena da fachada para quem chega, à "Pítia", em bronze, tremenda, hipnótica, que surpreende e atrai, escondida sob o vão da grande escadaria, sucedem-se maravilhosos gênios alados, alegorias sorridentes ou graves.
A "Pítia" mereceria ser mais conhecida do que é. Seu autor, a duquesa Castiglione Colonna, tomou o pseudônimo masculino de Marcello, para se impor diante de seus concorrentes, todos homens.
Nesse escrínio, "Idomeneo", de Mozart, na representação de 4 de fevereiro, foi medíocre e consternador: cantores limitados, regência superficial, rotineira. Sobre a montagem de Luc Bondy, um crítico escreveu que ela não incomoda ninguém, mas também não convence e excita ainda menos. Esse crítico foi generoso. A música se impõe ainda assim: nessa história mitológica de sacrifícios, Mozart se aproximou de Gluck, voando em arrebatamentos dramáticos.

Abóbora
Teatro dos Champs-Élysées: outra sala mítica de Paris, concebida pelo gênio de Perret, a primeira em estrutura de concreto armado, foi decorada por Maillol e Maurice Denis. Inaugurada em 1913, abrigou, nesse mesmo ano, o mais célebre escândalo das artes modernas: a estreia de "A Sagração da Primavera", de Stravinsky.
No dia 5/2, apresentou "La Cenerentola" (Cinderela), de Rossini, a música mais endemoninhada que jamais passou pelo cérebro de um compositor. Ficou ainda mais engraçada e maluca graças a Irina Brook, filha de Peter Brook, que dirigiu cenicamente o espetáculo.
A casa da Cinderela transformou-se num boteco xexelento, com cartazes, fotos e flâmulas de futebol, propriedade de Don Magnifico, o padrasto. (Na ópera, a madrasta é substituída pelo padrasto viúvo, e a fada madrinha, por um filósofo excêntrico.) Cada gesto correspondia não só ao texto, mas à música, e os cantores se tornaram atores ágeis (para ter uma ideia, ver um trecho no site http://bit.ly/cenen). Orquestra do Concerto Köln, regida com verve febril por Michael Güttler, maestro de 37 anos, com figura de galã.

Cordas vocais
Maravilhoso elenco da "Cenerentola" nos Champs-Elysées. A voz da protagonista, Vivica Genaux, tem o timbre e o vibrato estreito, que caracterizou Conchita Supervía, rossiniana lendária dos anos de 1930. Supervía era dotada de malícia esperta e sensual, Genaux tende para a emoção elegíaca. É capaz de fabulosos vocalises, dificilíssimos, que parecem ágeis e fáceis em sua interpretação.

CD
Entre as gravações de Vivica Genaux, está "Arias for Farinelli" (Harmonia Mundi), celebrado pela crítica e por vários prêmios. São excertos de Porpora, Broschi, Galuppi, escritos especialmente para o grande castrato. Outro é consagrado a Rossini e Donizetti, "Bel Canto Arias" (EMI Classics): felicidade sem mistura e sem fim.

jorgecoli@uol.com.br


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