São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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Femme fatale

Primeira mulher a dirigir o "Le Monde", Sylvie Kauffmann diz que a internet é uma oportunidade, e não uma catástrofe, para a imprensa escrita

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

Ela é a primeira mulher a dirigir a Redação do jornal "Le Monde", o mais respeitado da França, conhecido como "le quotidien de référence" [o diário de referência] e leitura obrigatória de intelectuais e políticos.
"O diário de referência é um jornal que se torna uma autoridade -ao qual se dá crédito e do qual não se contestam, a priori, as informações que veicula", explica Sylvie Kauffmann, 55, que assumiu a direção do jornal em janeiro. Antes, havia sido correspondente da agência France Presse em Moscou no fim da década de 1980. Já no "Le Monde", Kauffmann foi correspondente em Washington, entre 1993 e 2001, e, nos últimos três anos, no Sudeste Asiático.
Formada em direito e em ciências políticas, ela dirige uma Redação de 115 jornalistas, que compõem a "Société des Rédacteurs du Monde". A SRM tem direito de veto sobre a nomeação do presidente do diretório que comanda o rico grupo que edita o jornal, uma revista semanal ("Le Monde Magazine") e, a partir de fevereiro, uma revista mensal ("Le Mensuel"), com uma seleção de artigos, perfis e entrevistas.
Kauffmann, que diariamente chega à Redação do vespertino às 6h30 da manhã para comandar o fechamento, fala também, na entrevista abaixo, sobre a relação entre mídia escrita e internet.

 

FOLHA - A sra. é a primeira mulher a dirigir o "Le Monde". O que isso representa para a sociedade francesa, onde as mulheres tiveram o direito de votar apenas depois da Segunda Guerra (1939-45) e, até os anos 60, não podiam assinar um cheque sem a autorização do marido?
SYLVIE KAUFFMANN
- Não é uma revolução, mas apenas a continuação de uma evolução -um pouco lenta, no meu ponto de vista. O jornalismo se feminizou nesses últimos 20 anos: por exemplo, 40% da Redação do "Le Monde" é composta por mulheres, e também há mulheres como chefes de editoria. Sinto-me orgulhosa pelo modo como a chegada das mulheres à profissão fez o jornalismo evoluir e espero poder continuar a enriquecer nosso jornal com a nossa sensibilidade um pouco diferente. Mas, fundamentalmente, tenho os mesmos valores jornalísticos que meu predecessor [Alain Frachon], que é um homem. Por outro lado, não acho que a sociedade francesa seja mais machista do que outras sociedades europeias.

FOLHA - No dia em que o jornal anunciava aos leitores a sua nomeação como diretora da Redação, ele registrou uma tiragem de 381.954 exemplares -número que se aproxima dos 407 mil exemplares que vendia em 2002. Este diário começa a sair da crise por que vem passando a imprensa?
KAUFFMANN
- O "Le Monde" briga com toda sua energia para se transformar e continuar a ser um jornal indispensável num ambiente midiático que mudou muito desde 2002. Assim, comparar as tiragens de 2002 e 2010 não faz muito sentido: em 2002, havia menos sites e menos jornais gratuitos; a concorrência era outra.

FOLHA - Os jornais gratuitos e a internet são os únicos responsáveis pela perda de receitas publicitárias e das vendas da mídia impressa?
KAUFFMANN
- Não são os únicos. A situação econômica também contribuiu, as condições de distribuição da imprensa na França... Há vários fatores. Pode-se considerar também que não soubemos seguir bem de perto a evolução das expectativas dos leitores. Pessoalmente, vejo a internet como uma oportunidade para a imprensa escrita, e não como uma catástrofe. Ambas são bastante complementares e podem funcionar em relação recíproca.

FOLHA - A sra. foi correspondente em Moscou durante o período da "glasnost", antes do fim da União Soviética. Teve a impressão de viver um momento decisivo da história?
KAUFFMANN
- Sim, e talvez mais ainda quando cobri, para o "Le Monde", o Leste Europeu e a Rússia, de 1988 a 1993. Acompanhei o fim do comunismo e a transição para a democracia e a economia de mercado de países que se tornariam membros da União Europeia. Encontrei por lá personagens corajosos e visionários. Foi um período que me marcou muito intelectualmente, mas também do ponto de vista humano e jornalístico.

FOLHA - A revista mensal recém-lançada é uma nova fórmula para enfrentar a crise da imprensa?
KAUFFMANN
- A revista é um dos produtos que propomos para diversificar a oferta do jornal. Muitas pessoas se interessam pelo conteúdo do "Le Monde" e pela expertise dos nossos jornalistas, mas não têm tempo ou possibilidade de comprá-lo todos os dias. Então propomos essa seleção mensal de nossos melhores artigos. Além do mais, é um belo objeto, parece um livro, com belas fotos, uma nova forma de leitura diferente do cotidiano, da internet ou de um semanário. Nunca se deve parar de inventar e inovar.

FOLHA - Em que consiste um "diário de referência"?
KAUFFMANN
- É o diário indispensável, que deve ser lido e que se torna referência pela independência de seu julgamento e pelo amplo espectro de sua cobertura, principalmente a internacional e a política.

FOLHA - O "Le Monde" pertence a um grupo de imprensa independente no qual os jornalistas têm uma grande liberdade. Em que ele é diferente de um jornal de esquerda, como o "Libération", ou um de direita, como "Le Figaro"?
KAUFFMANN
- Em 20 anos de carreira no jornal, jamais sofri pressão sobre qualquer assunto que escrevi. Nossos acionistas não nos impõem uma prioridade ou outra. Isso é extremamente precioso. Para nossa Redação, esse valor é fundamental, mesmo se nossa situação financeira é, por consequência, mais precária que a de outros jornais.

FOLHA - O livro "La Face Cachée du Monde" (A Face Oculta do "Monde", de Pierre Péan e Philippe Cohen, ed. Mille et Une Nuits, 640 págs., 24, R$ 60) foi visto pelo jornal "como uma campanha para lançar descrédito sobre ele e impedir que construa seu projeto de grande grupo de imprensa independente". O livro arranhou sua reputação?
KAUFFMANN
- Não sei qual era o objetivo preciso do livro além de lançar o descrédito sobre o jornal. Ele fez estragos, claro. Algumas críticas poderiam ter sido construtivas porque o "diário de referência" pode ser criticado, evidentemente. Tudo pode ser criticado, por que estaríamos ao abrigo da crítica? Infelizmente, às críticas legítimas se misturavam muitos ataques pessoais de baixo nível e erros factuais, e isso tudo foi muito negativo. Mas acho que depois disso restabelecemos solidamente nossa reputação [leia texto ao lado].

FOLHA - Em 1981, o jornal apoiou, em editoriais assinados, a candidatura de François Mitterrand à Presidência e, em 2007, a de Ségolène Royal, ambos socialistas. Ele permanece um jornal de esquerda?
KAUFFMANN
- Não, ele é um jornal independente. Nosso leitorado se situa em ambos os espectros políticos.

FOLHA - O que mudou na empresa com as saídas de Jean-Marie Colombani e Edwy Plenel (ex-diretores do jornal)?
KAUFFMANN
- Passamos a privilegiar nossa credibilidade em vez de tentar grandes "furos" jornalísticos.

FOLHA - A sra. pode resumir seu dia de trabalho?
KAUFFMANN
- Somos um jornal vespertino que fecha pela manhã para ser vendido em Paris na hora do almoço. Acordo às 5h30 para chegar ao jornal às 6h30. A primeira reunião de redatores e jornalistas é às 7h30.
De manhã, o ritmo é muito intenso até as 10h30, hora do fechamento. Meio-dia, nova reunião da Redação, mais longa, para iniciar o jornal que sairá no dia seguinte e determinar o conteúdo dele.
Metade das páginas do dia seguinte, as que dependem menos da atualidade (investigação, perfis, cultura, debates, modo de vida) são realizadas à tarde e à noite. Temos uma nova reunião às 17h para ver o que será preciso mudar nos nossos planos em razão dos acontecimentos do dia. Saio do jornal entre 19h e 20h.


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