São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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O místico selvagem

Em tradução primorosa, "Correspondência" de Rimbaud revela a gênese do poeta maldito e do explorador colonial

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1924, o jovem Carlos Drummond escreve a Mário de Andrade: "Nasci em Minas, quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado". Em 1879, o jovem Arthur Rimbaud (1854-91) escrevia de Charleville a seu mentor: "Minha cidade natal é supremamente idiota entre todas as cidades pequenas da província. Estamos exilados em nossa própria pátria!!!".
A sensação de exílio no torrão natal tem repercussões por personagens como Emma Bovary, de Gustave Flaubert, ou Luísa, de Eça de Queirós, e pelos poemas de Cesário Verde e reafirma a posição de Paris como centro do projeto cultural e artístico ocidental.

Marca de nascença
O exílio é marca de nascença e, no caso de Flaubert e de Eça, serve para reforçar o drama da frustração sentimental da mulher burguesa, conhecido por bovarismo.
Em Drummond e Rimbaud, a província é o berço onde a revolta artística do poeta se amamenta de maneira voraz e contraditória. Lá é que nasce o "albatroz", para retomar a metáfora de Charles Baudelaire para o poeta gauche. Em carta ao poeta Theodore de Banville, Rimbaud proclama o futuro sucesso em Paris, resgatando expressão do Renascimento italiano: "Anch'io, senhores jornalistas, serei parnasiano!". E complementa: "Não sei o que tenho dentro de mim... que quer subir à tona...".
Ao substituir parnasiano por modernista, Drummond subscreve a ambição desmedida e a angústia cega de Rimbaud. Se a grafia de vida de Carlos Drummond acaba por encerrá-lo nos meandros da burocracia federal (leia-se a crônica "A Rotina e a Quimera", em "Passeios na Ilha"), a de Rimbaud extrapola a rebeldia bronca para ambientá-lo na loucura da boemia parisiense.
Ao dar adeus à província, ele se lança como poeta maldito, sedutor de corações e mentes. Em suas garras, cai Paul Verlaine (1844-96), com quem mantém um caso amoroso, vulgarizado pelo filme "Eclipse de uma Paixão", com Leonardo di Caprio.

Dois mitos
No Rio de Janeiro, o provinciano Drummond se transforma no mito poético da competência premiada e, em Paris, Rimbaud inaugura o mito da juventude desregrada e suicida, de que James Dean e Jim Morrison (The Doors) serão exemplos mais próximos. O périplo desvairado de Rimbaud pela província francesa, por Paris e a Europa e pelo verdadeiro exílio em países coloniais pode ser agora acompanhado nas próprias palavras do poeta. Primorosamente traduzida, anotada e comentada por Ivo Barroso, sua notável correspondência foi publicada pela Topbooks, que já nos tinha oferecido a poesia completa.
O resultado final é uma mistura de escritas. A biografia erudita de Barroso complementa a autobiografia em conta-gotas de Rimbaud. O leitor fica diante dos plenos e dos vazios de um reality show sem trapaças.
Não há por que destacar essa ou aquela carta. A razão do volume está no todo. No entanto a tradição dos estudos rimbaudianos nos obriga a salientar a carta a Paul Demeny (15/5/1871), tida como leitura pessoal da evolução da poesia francesa e manifesto da sua poesia.
Nela se lê: "O poeta se faz vidente, por meio de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos". As cartas africanas encantarão os leitores familiarizados com a obra de Joseph Conrad ("O Coração nas Trevas") e de Louis-Ferdinand Céline ("Viagem ao Fim da Noite"). Escritas no hospital em Marselha, as cartas à mãe e à irmã historiam a hecatombe final.
Gangrena, perna amputada, dores mortais, o caminhar de muletas, a perna de pau... Isabelle socorre o irmão e, entre o tom provinciano e o carola, mantém um pungente e polêmico diário, que Barroso judiciosamente acrescenta à edição.

Catolicismo
As palavras da irmã transfiguram o poeta maldito e o explorador colonial em homem "justo, santo, mártir e eleito". Depois da santa missa, anota Isabelle, um capelão se aproxima de Rimbaud e lhe propõe que se confesse, e ele aquiesce. Ao sair, o capelão lhe diz: "Seu irmão tem fé".
Outro jovem provinciano, agora de nome Paul Claudel, se extasia diante da sua descoberta. À hora da morte, o maldito Arthur Rimbaud se convertera ao catolicismo. Segundo as palavras do futuro dramaturgo, Rimbaud fora "um místico em estado selvagem". O mito agradecia a egrégia contribuição.

SILVIANO SANTIAGO é crítico literário e escritor, autor de "Heranças" (ed. Rocco).


CORRESPONDÊNCIA

Autor: Arthur Rimbaud
Organização e tradução: Ivo Barroso
Editora: Topbooks (tel. 0/xx/21/2233-8718)
Quanto: R$ 59 (476 págs.)




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