São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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Ensaísta diz que é preciso dissociar os "sexos" de toda forma de organização social e defende que homossexuais podem se unir e adotar crianças

O direito ao casamento gay

Alain Touraine

A violência dos conflitos internacionais, a gravidade das crises nacionais e o calor das esperanças que se erguem em alguns países fizeram com que, nos últimos anos, deixássemos de ver e de adotar as mudanças da vida moral e social que estavam no centro de nossas preocupações havia poucos anos, sobretudo em conseqüência dos grandes abalos dos anos 60. Isso se explica também pela profundidade das mudanças exigidas. As mulheres conseguiram retomar os direitos sobre seu corpo, mas avançamos com prudência e hesitação no domínio da reprodução, que pode levar até à clonagem, e estamos divididos quanto à eutanásia. E nos perguntamos se a família deve absolutamente conservar uma base biológica ou se é possível aceitar escolhas em que não haja vínculos biológicos das crianças com os pais. Na verdade, transformações importantes estão em curso há muito tempo. Nenhum sociólogo fala mais de família "normal", isto é, composta de um pai, uma mãe e seus filhos, como se os outros tipos de família monoparental, recomposta, adotiva, homossexual, fossem por princípio anormais. Mas a separação da família e do genitor é tão carregada de sentido, põe em causa um fundamento tão profundo de nossa cultura, que ela merece uma reflexão séria, sobretudo no momento em que se acentua a pressão em favor do casamento de homossexuais. No entanto não é dessa pressão que devemos partir, mas antes de realidades bem estabelecidas e que permitem fundar solidamente nosso julgamento. Deixemos de lado uma forma tradicional, muito difundida no passado, que permitia a parentes ou amigos adotar uma criança órfã que poderia conservar seu nome e recuperar seus bens e direitos na maioridade. Consideremos apenas a adoção dita plena, que consiste para adultos em adotar uma ou várias crianças abandonadas por seus pais e que, na maioria dos casos, foram recolhidas por instituições públicas ou privadas.

Evitar crises
A idade da adoção é muito variável segundo os países, assim como as condições da adoção, gratuita ou não, honestas ou não. Um grande número de adoções, feitas nos países mais ricos, tem por objeto crianças vindas de países semidesenvolvidos e, mais ainda, de países pobres. As idéias e as práticas sobre a adoção evoluíram muito; sobretudo, a regra hoje é informar o fato à criança o mais cedo possível e de maneira progressiva, se possível sob a orientação de um psicólogo. Isso permite evitar as crises que devastaram tantos adolescentes. Mas é a conduta dos pais adotivos que apresenta o maior interesse.


A recusa aos pais não-biológicos, não-genitores, se revela desprovida de qualquer fundamento e é humanamente escandalosa à simples visão da realidade


Quem já observou cenas de adoção, no momento em que requerentes vindos de longe vêem a criança que querem adotar, não pode duvidar de que o envolvimento afetivo dos pais adotivos seja pelo menos tão forte e com freqüência mais intenso que o dos pais biológicos. A recusa aos pais não-biológicos, não-genitores, se revela desprovida de qualquer fundamento e é humanamente escandalosa à simples visão da realidade. Antes de abordar o problema central, convém lembrar também o que são as regras de direito em matéria de nacionalidade. Alguns países mantêm o direito do sangue, como a Alemanha, que concede sua nacionalidade a famílias de origem alemã instaladas há séculos na Europa Oriental; inversamente, a França está ligada ao direito do solo, muito enfatizado em sua recente reforma do Código da Nacionalidade. Evidentemente, países de forte imigração estão ligados ao direito do solo, que corresponde a sua história. Eis portanto um atributo importante da pessoa -a nacionalidade-, que em numerosos países não está fundado numa base biológica e no qual a referência ao sangue é mais uma imagem do que uma realidade claramente definível. Evoquei os problemas da adoção e da nacionalidade para afastar as objeções de princípio. Mas é fácil responder que não há, nessas situações, desaparecimento do casal pai-mãe, definido ao menos por uma referência biológica, ao passo que o casal não mais a possui no casamento homossexual.

História do feminismo
É verdade que essa situação é bastante diferente para exigir uma argumentação de outro tipo. Da mesma maneira, a união legal praticada na maioria das vezes, mas não unicamente, entre homossexuais -como o Pacs [Pacto de Solidariedade Civil], na França- é importante por proteger os membros do casal, particularmente em caso de herança, mas não constitui um casamento, isto é, não cria uma filiação. Aliás, existem oposições muito fortes à idéia de casamento homossexual, e não é possível contentar-se com um apelo a uma liberalização cada vez maior quando se trata de conservar ou de transformar um princípio fundamental. Penso que só se pode defender o casamento entre homossexuais -como eu o defendo- passando pela longa história do feminismo, que, sobretudo no período recente, aprofundou muito a crítica à noção de mulher, criada, no dizer de Judith Butler, para fundar a superioridade da relação heterossexual. Se a noção de mulher -e portanto também a de homem- foi criada para subordinar a definição do indivíduo a uma forma de organização social ligada estritamente à dominação masculina, cumpre concluir que a mulher deve ser definida fora de toda relação social -especialmente fora da família- e até mesmo que as noções de homem e mulher devem ser suprimidas, como o quer a teoria "queer", que acredita na fragmentação múltipla da sexualidade.

Estatuto parental
Sigo aqui um raciocínio contrário ao que se espera. Não falo de igualdade de direitos para todos, pois me parece um argumento muito frágil ante as realidades da biologia -ninguém reclama o direito à gravidez para os homens; penso, ao contrário, que é preciso dissociar os "sexos" (ou "genders") de toda forma de organização social e, em particular, da família, o que deve permitir aos homossexuais assim como a homens ou mulheres solitários adquirir um estatuto parental.
Com uma ressalva, porém: permaneço contrário, tanto no caso de homossexuais como de heterossexuais, ao recurso a mães de aluguel e outras técnicas, enquanto sou favorável à adoção por um casal homossexual, o que torna lógico o reconhecimento do casamento e da filiação. Um problema tão sério merece um debate bem mais amplo e mais aberto. Quis pelo menos apresentar, sem espírito doutrinário, as razões pelas quais defendo o direito dos homossexuais ao casamento, mesmo sabendo que essa posição é hoje minoritária.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Paulo Neves.


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