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+ brasil 504 d.C.
Apesar dos pontos
em comum, trajetórias de Getúlio Vargas e Perón divergem quanto às origens familiares
e sociais, algo
que se refletiria na esfera pública
Duas faces do populismo
Boris Fausto
Na área das ciências humanas, o
conceito de populismo tem
traços bastante específicos. De
um lado, caracteriza-se pela
longevidade e pela extensão espacial. De
outro, tem servido para designar relações sociais e formas políticas tão diversas que seu uso se torna muitas vezes
problemático.
Para ficar em um só exemplo, o populismo russo foi um movimento sociopolítico da segunda metade do século 19,
em que intelectuais e estudantes se dirigiram ao campo em busca de uma aproximação com o povo, a partir da crença
de que a comuna rural representava o socialismo em embrião. O fenômeno, como é óbvio, nada tem a ver com os populismos contemporâneos.
Essa observação prévia pode contribuir para evitar as extensões excessivas
de um conceito e para melhor precisar o
que estamos entendendo por populismo
no Brasil e na Argentina. Trata-se de um
fenômeno definido, em suas linhas básicas, por uma aliança sociopolítica e por
um quadro estrutural, embora não se esgote nesses dois elementos. A aliança
abrangeu o Estado, a burguesia nacional
e a classe trabalhadora, tendo como pólo
articulador o primeiro. O quadro estrutural corresponde ao processo de desenvolvimento urbano, sobretudo da industrialização em ambos os países, que provocou a concentração de massas nas
grandes cidades e gerou a possibilidade
de distribuição de ganhos aos setores populares, com os limites conhecidos.
Até aqui, falamos de um processo
idêntico, em suas grandes linhas, tanto
no Brasil quanto na Argentina. Se utilizarmos uma lente de aproximação, perceberemos algo das muitas diferenças,
como o caráter mais radical do movimento peronista, tendo muito a ver com
a cultura política do país e o grau de articulação da classe trabalhadora.
Fluxo de mão-de-obra
Poderíamos lembrar ainda a relação dos dois populismos com a gente do campo. Embora sua base social estivesse essencialmente nas cidades, Perón lançou uma ponte
em direção aos trabalhadores rurais, aos
quais estendeu vários direitos. Vargas,
pelo contrário, os ignorou praticamente,
e isso num país caracterizado pelas miseráveis condições de vida das massas do
campo e em que a reforma agrária sempre fora um tema sensível e recorrente.
Uma explicação para o comportamento de Vargas [que governou o Brasil entre 1930-45 e 1951-54] tem a ver com um
conjunto de fatores, entre os quais destacam-se o desejo de manter boas relações
com os grandes proprietários e o fato de
não existirem, em sua época, mobilizações significativas no campo.
Ainda, por um cálculo econômico ou
não, é certo que a instituição de direitos
trabalhistas para os trabalhadores urbanos, em contraste com o que ocorria no
meio rural, facilitou o fluxo migratório
de mão-de-obra barata, necessária à industrialização.
Por outro lado, como o populismo representa também um estilo político, é
importante nos determos nas figuras de
Vargas e Perón [que governou a Argentina entre 1946-55 e 1973-74]. Comecemos
pelas origens. Vargas nasceu em uma família tradicional do interior do Rio
Grande do Sul, integrada nas disputas
políticas daquele Estado. Embora tenha
pertencido ao Exército por um breve período, abandonou a carreira militar. Sua
história prévia à ascensão presidencial o
liga à política da Primeira República, como deputado estadual e federal, ministro
da Fazenda de Washington Luís e presidente do Rio Grande do Sul.
Perón tinha origem na classe média, filho de um funcionário público e de uma
interiorana de condição muito humilde.
Seu ingresso no Colégio Militar representou uma via de ascenso e de legitimação social que acabou se transformando
num instrumento de escalada ao poder.
Embora sua base social estivesse
nas cidades,
Perón lançou uma ponte para os trabalhadores rurais; Vargas,
pelo contrário,
os ignorou
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Foi como homem do Exército, integrante de uma facção militar -o Grupo de
Oficiais Unidos (GOU)- que Perón
chegou à Vice-Presidência da República
em 1944 e, a seguir, à Presidência, pelo
voto popular, em fevereiro de 1946.
É difícil estabelecer a relação entre as
respectivas formações e o ideário assumido por Vargas e Perón, tanto mais que
o pragmatismo de ambos se sobrepôs ao
peso das idéias. Com essa ressalva, Getúlio bebeu o caldo positivista dos republicanos gaúchos, a que alguns atribuem
suas inclinações autoritárias e a outorga
de direitos aos trabalhadores urbanos.
Quanto a Perón, tem-se identificado a
influência da formação militar, em sua
concepção de atividade política, com a
ênfase posta na dialética amigo-inimigo,
na noção peculiar de acumulação de forças e na idéia de organização.
A diversidade da história familiar dos
dois líderes não é indiferente, dado seu
claro reflexo na esfera pública, no caso de
Perón. Getúlio foi muito mais tradicional, na vida familiar, por força de seu
meio social. Sua mulher, Darcy Vargas,
figura discreta, limitou-se às funções assistenciais nos muitos anos em que o
marido esteve na Presidência da República. Perón, pelo contrário, teve dois casamentos, nada convencionais, com mulheres de origem plebéia, as quais tiveram papel preponderante na vida política. A primeira mulher, Eva Perón (Evita), converteu-se num ícone do peronismo, como "abanderada de los humildes", e seu nome foi associado às aparatosas obras sociais do governo.
Embora tenha morrido prematuramente, depois de morta se tornou um
mito da esquerda peronista, em particular da guerrilha montonera.
Desastre econômico
A segunda
mulher, Maria Martínez de Perón (Isabelita), uma bailarina que encontrou Perón durante o exílio no Panamá, acabou
conduzida à Vice-Presidência da República, nas eleições de 1973, na fórmula conhecida como Perón-Perón. Com a morte do general, assumiu a Presidência. Seu
governo foi marcado pelo desastre econômico e pelos crimes da Ação Anticomunista Argentina -a Triple A. Esse caminho tortuoso alentou o golpe de Ongania, em março de 1976, que iria inaugurar uma era de torturas e mortes, sob o
rótulo trágico-irônico de Processo de
Reorganização Nacional.
O que se pode deduzir de tudo isso
num plano mais teórico? Na minha percepção, que a análise comparada de fenômenos históricos como o populismo e
outros mais não se esgota nas grandes linhas, mas ganha maior sentido pela via
da microistória.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho
acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve
mensalmente na seção "Brasil 504 d.C.".
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