São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Apesar dos pontos em comum, trajetórias de Getúlio Vargas e Perón divergem quanto às origens familiares e sociais, algo que se refletiria na esfera pública

Duas faces do populismo

Boris Fausto

Na área das ciências humanas, o conceito de populismo tem traços bastante específicos. De um lado, caracteriza-se pela longevidade e pela extensão espacial. De outro, tem servido para designar relações sociais e formas políticas tão diversas que seu uso se torna muitas vezes problemático. Para ficar em um só exemplo, o populismo russo foi um movimento sociopolítico da segunda metade do século 19, em que intelectuais e estudantes se dirigiram ao campo em busca de uma aproximação com o povo, a partir da crença de que a comuna rural representava o socialismo em embrião. O fenômeno, como é óbvio, nada tem a ver com os populismos contemporâneos. Essa observação prévia pode contribuir para evitar as extensões excessivas de um conceito e para melhor precisar o que estamos entendendo por populismo no Brasil e na Argentina. Trata-se de um fenômeno definido, em suas linhas básicas, por uma aliança sociopolítica e por um quadro estrutural, embora não se esgote nesses dois elementos. A aliança abrangeu o Estado, a burguesia nacional e a classe trabalhadora, tendo como pólo articulador o primeiro. O quadro estrutural corresponde ao processo de desenvolvimento urbano, sobretudo da industrialização em ambos os países, que provocou a concentração de massas nas grandes cidades e gerou a possibilidade de distribuição de ganhos aos setores populares, com os limites conhecidos. Até aqui, falamos de um processo idêntico, em suas grandes linhas, tanto no Brasil quanto na Argentina. Se utilizarmos uma lente de aproximação, perceberemos algo das muitas diferenças, como o caráter mais radical do movimento peronista, tendo muito a ver com a cultura política do país e o grau de articulação da classe trabalhadora.

Fluxo de mão-de-obra
Poderíamos lembrar ainda a relação dos dois populismos com a gente do campo. Embora sua base social estivesse essencialmente nas cidades, Perón lançou uma ponte em direção aos trabalhadores rurais, aos quais estendeu vários direitos. Vargas, pelo contrário, os ignorou praticamente, e isso num país caracterizado pelas miseráveis condições de vida das massas do campo e em que a reforma agrária sempre fora um tema sensível e recorrente. Uma explicação para o comportamento de Vargas [que governou o Brasil entre 1930-45 e 1951-54] tem a ver com um conjunto de fatores, entre os quais destacam-se o desejo de manter boas relações com os grandes proprietários e o fato de não existirem, em sua época, mobilizações significativas no campo. Ainda, por um cálculo econômico ou não, é certo que a instituição de direitos trabalhistas para os trabalhadores urbanos, em contraste com o que ocorria no meio rural, facilitou o fluxo migratório de mão-de-obra barata, necessária à industrialização. Por outro lado, como o populismo representa também um estilo político, é importante nos determos nas figuras de Vargas e Perón [que governou a Argentina entre 1946-55 e 1973-74]. Comecemos pelas origens. Vargas nasceu em uma família tradicional do interior do Rio Grande do Sul, integrada nas disputas políticas daquele Estado. Embora tenha pertencido ao Exército por um breve período, abandonou a carreira militar. Sua história prévia à ascensão presidencial o liga à política da Primeira República, como deputado estadual e federal, ministro da Fazenda de Washington Luís e presidente do Rio Grande do Sul. Perón tinha origem na classe média, filho de um funcionário público e de uma interiorana de condição muito humilde. Seu ingresso no Colégio Militar representou uma via de ascenso e de legitimação social que acabou se transformando num instrumento de escalada ao poder.


Embora sua base social estivesse nas cidades, Perón lançou uma ponte para os trabalhadores rurais; Vargas, pelo contrário, os ignorou


Foi como homem do Exército, integrante de uma facção militar -o Grupo de Oficiais Unidos (GOU)- que Perón chegou à Vice-Presidência da República em 1944 e, a seguir, à Presidência, pelo voto popular, em fevereiro de 1946. É difícil estabelecer a relação entre as respectivas formações e o ideário assumido por Vargas e Perón, tanto mais que o pragmatismo de ambos se sobrepôs ao peso das idéias. Com essa ressalva, Getúlio bebeu o caldo positivista dos republicanos gaúchos, a que alguns atribuem suas inclinações autoritárias e a outorga de direitos aos trabalhadores urbanos. Quanto a Perón, tem-se identificado a influência da formação militar, em sua concepção de atividade política, com a ênfase posta na dialética amigo-inimigo, na noção peculiar de acumulação de forças e na idéia de organização. A diversidade da história familiar dos dois líderes não é indiferente, dado seu claro reflexo na esfera pública, no caso de Perón. Getúlio foi muito mais tradicional, na vida familiar, por força de seu meio social. Sua mulher, Darcy Vargas, figura discreta, limitou-se às funções assistenciais nos muitos anos em que o marido esteve na Presidência da República. Perón, pelo contrário, teve dois casamentos, nada convencionais, com mulheres de origem plebéia, as quais tiveram papel preponderante na vida política. A primeira mulher, Eva Perón (Evita), converteu-se num ícone do peronismo, como "abanderada de los humildes", e seu nome foi associado às aparatosas obras sociais do governo. Embora tenha morrido prematuramente, depois de morta se tornou um mito da esquerda peronista, em particular da guerrilha montonera.

Desastre econômico
A segunda mulher, Maria Martínez de Perón (Isabelita), uma bailarina que encontrou Perón durante o exílio no Panamá, acabou conduzida à Vice-Presidência da República, nas eleições de 1973, na fórmula conhecida como Perón-Perón. Com a morte do general, assumiu a Presidência. Seu governo foi marcado pelo desastre econômico e pelos crimes da Ação Anticomunista Argentina -a Triple A. Esse caminho tortuoso alentou o golpe de Ongania, em março de 1976, que iria inaugurar uma era de torturas e mortes, sob o rótulo trágico-irônico de Processo de Reorganização Nacional.
O que se pode deduzir de tudo isso num plano mais teórico? Na minha percepção, que a análise comparada de fenômenos históricos como o populismo e outros mais não se esgota nas grandes linhas, mas ganha maior sentido pela via da microistória.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C.".


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