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Ponto de Fuga
Além do testemunho
O coração se aperta graças a uma estranha fraternidade: a fotógrafa Maureen Bisilliat, que é anglo-brasileira, que é cósmica, nunca se sente superior ao que fotografa
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Os braços estão cruzados
sob os seios. Os mamilos são largos. Uma peça de roupa esconde a nudez do
ventre. Uma das meias, pretas,
cobre o joelho, a outra o deixa à
mostra. Sobre a coxa, a penugem leve.
Falta a cabeça, faltam os pés,
cortados pelos limites da fotografia. O corpo surge da escuridão, que submerge reentrâncias: as axilas, os vales entre as pernas, entre as mamas.
As imagens do livro são belas, muito belas, não se discute.
Mas não é isso o principal. Há
alguma coisa além, impossível
de definir. O coração se aperta
graças a uma estranha fraternidade: a fotógrafa, Maureen Bisilliat, que é anglo-brasileira,
que é cósmica, nunca se sente
superior ao que fotografa.
Cada um dos homens, mulheres, crianças, que ela surpreendeu pelo Brasil afora, e na
Bolívia, na China, no Japão, são
portadores da mais intensa humanidade.
Nem mesmo, coisa que faz a
força de certos seus congêneres, Maureen Bisilliat deseja o
que fotografa. Não transforma
o clique num instante de apropriação. Entra em sintonia com
os modelos, com os ambientes.
Engrandece-os e os respeita,
deixando-os simplesmente ser.
Na forma do corpo, na presença da roupa, no espírito do
gesto, na vida do olhar, habita
um mistério aprisionado naquele instante preciso.
O livro é "Fotografias", editado pelo Instituto Moreira Salles [304 págs., R$ 140]. Acompanha a exposição no Sesi da
avenida Paulista, consagrada a
essa maga poderosa.
Matriochka
São tempos de viajantes:
Landseer no Rio (Instituto Moreira Salles), Hercules Florence
na Pinacoteca [SP, até hoje].
A eles se acrescem os desenhos, mapas e aquarelas da expedição Langsdorff [1825-29],
ora no CCBB de São Paulo (depois em Brasília e no Rio). Rara
ocasião de descobrir documentos preciosos para o Brasil e que
pertencem a arquivos russos.
Langsdorff, cônsul da Rússia
no Rio, chefia uma expedição
custeada pelo governo do czar
Alexandre 1º. Enfronha-se mata adentro. Atravessa o Mato-Grosso, a Amazônia. Muitos
anos de viagem e retorno trágico ao Rio em 1829: Langsdorff,
atacado por febres tropicais,
perdera a memória e agia "como se fosse uma criança", no
dizer de um contemporâneo.
A expedição contava com
cientistas, topógrafos, artistas,
capazes de fixar panoramas, tipos humanos, exemplos botânicos e zoológicos. [Johann
Moritz] Rugendas, com mão
certeira, Aimé-Adrien Taunay,
excelente colorista, e o jovem
Hercules Florence, perscrutador, interrogativo, fizeram parte da equipe.
Desenhados pelo astrônomo
Rubtsov, os mapas encerram
uma poesia feita de linhas e de
manchas.
Desajeitado
Há, na mostra do CCBB, uns
manequins mal-ajambrados
diante de cenários toscos, com
a intenção de reconstituir momentos da expedição Langsdorff ou coisa que o valha.
São do pior efeito. Chocam
ao lado das qualidades finas
trazidas pelas obras em papel,
iluminadas com discrição e eficácia. As paredes estão saturadas de textos miúdos, que atrapalham. Bobagens indignas
dessa mostra excepcional.
Declive
Acompanhando a expedição
Langsdorff, Rugendas captou
paisagens de Minas Gerais:
Barbacena, Mariana, Ouro Preto, o convento do Caraça, vales
úmidos e montanhas azuladas.
Sua visão é atenta ao mais
amplo e à minúcia, ao atmosférico e ao sólido. Cada local sugere-lhe uma abordagem precisa da luz, do volume, do desenho, por vezes da cor.
Vêm à mente as paisagens
imaginárias de [Alberto da Veiga] Guignard, inspiradas nesses
mesmos cerros e que são todo o
contrário: uma fórmula sumária, que deu certo e que se repete de tela em tela.
jorgecoli@uol.com.br
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