São Paulo, domingo, 21 de março de 2010

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Ponto de Fuga

Além do testemunho


O coração se aperta graças a uma estranha fraternidade: a fotógrafa Maureen Bisilliat, que é anglo-brasileira, que é cósmica, nunca se sente superior ao que fotografa


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Os braços estão cruzados sob os seios. Os mamilos são largos. Uma peça de roupa esconde a nudez do ventre. Uma das meias, pretas, cobre o joelho, a outra o deixa à mostra. Sobre a coxa, a penugem leve.
Falta a cabeça, faltam os pés, cortados pelos limites da fotografia. O corpo surge da escuridão, que submerge reentrâncias: as axilas, os vales entre as pernas, entre as mamas.
As imagens do livro são belas, muito belas, não se discute.
Mas não é isso o principal. Há alguma coisa além, impossível de definir. O coração se aperta graças a uma estranha fraternidade: a fotógrafa, Maureen Bisilliat, que é anglo-brasileira, que é cósmica, nunca se sente superior ao que fotografa.
Cada um dos homens, mulheres, crianças, que ela surpreendeu pelo Brasil afora, e na Bolívia, na China, no Japão, são portadores da mais intensa humanidade.
Nem mesmo, coisa que faz a força de certos seus congêneres, Maureen Bisilliat deseja o que fotografa. Não transforma o clique num instante de apropriação. Entra em sintonia com os modelos, com os ambientes.
Engrandece-os e os respeita, deixando-os simplesmente ser.
Na forma do corpo, na presença da roupa, no espírito do gesto, na vida do olhar, habita um mistério aprisionado naquele instante preciso.
O livro é "Fotografias", editado pelo Instituto Moreira Salles [304 págs., R$ 140]. Acompanha a exposição no Sesi da avenida Paulista, consagrada a essa maga poderosa.


Matriochka
São tempos de viajantes: Landseer no Rio (Instituto Moreira Salles), Hercules Florence na Pinacoteca [SP, até hoje].
A eles se acrescem os desenhos, mapas e aquarelas da expedição Langsdorff [1825-29], ora no CCBB de São Paulo (depois em Brasília e no Rio). Rara ocasião de descobrir documentos preciosos para o Brasil e que pertencem a arquivos russos.
Langsdorff, cônsul da Rússia no Rio, chefia uma expedição custeada pelo governo do czar Alexandre 1º. Enfronha-se mata adentro. Atravessa o Mato-Grosso, a Amazônia. Muitos anos de viagem e retorno trágico ao Rio em 1829: Langsdorff, atacado por febres tropicais, perdera a memória e agia "como se fosse uma criança", no dizer de um contemporâneo.
A expedição contava com cientistas, topógrafos, artistas, capazes de fixar panoramas, tipos humanos, exemplos botânicos e zoológicos. [Johann Moritz] Rugendas, com mão certeira, Aimé-Adrien Taunay, excelente colorista, e o jovem Hercules Florence, perscrutador, interrogativo, fizeram parte da equipe.
Desenhados pelo astrônomo Rubtsov, os mapas encerram uma poesia feita de linhas e de manchas.


Desajeitado
Há, na mostra do CCBB, uns manequins mal-ajambrados diante de cenários toscos, com a intenção de reconstituir momentos da expedição Langsdorff ou coisa que o valha. São do pior efeito. Chocam ao lado das qualidades finas trazidas pelas obras em papel, iluminadas com discrição e eficácia. As paredes estão saturadas de textos miúdos, que atrapalham. Bobagens indignas dessa mostra excepcional.

Declive
Acompanhando a expedição Langsdorff, Rugendas captou paisagens de Minas Gerais: Barbacena, Mariana, Ouro Preto, o convento do Caraça, vales úmidos e montanhas azuladas. Sua visão é atenta ao mais amplo e à minúcia, ao atmosférico e ao sólido. Cada local sugere-lhe uma abordagem precisa da luz, do volume, do desenho, por vezes da cor.
Vêm à mente as paisagens imaginárias de [Alberto da Veiga] Guignard, inspiradas nesses mesmos cerros e que são todo o contrário: uma fórmula sumária, que deu certo e que se repete de tela em tela.


jorgecoli@uol.com.br


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