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+(s)ociedade
Nostalgia da lama
Escândalos envolvendo os jogadores Adriano e Vagner Love, do Flamengo, escancaram o preconceito de classe no Brasil
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Talvez não seja correto
dizer que o esporte é
um espelho da sociedade, mas a maneira
como os fatos do esporte e seu entorno são lidos
pela mídia certamente diz muito sobre ambas (a sociedade e a
própria mídia).
O "mea culpa" do golfista Tiger Woods diante das câmeras
expôs muito mais que suas infidelidades conjugais. Colocou a
nu uma cultura manifestamente puritana que transforma em
espetáculo midiático a repressão de suas pulsões.
Como se sabe, muitos norte-americanos, talvez a maioria,
acham que gostar de sexo é
uma espécie de doença.
No Brasil, a cobertura e a repercussão crítica dos recentes
escândalos envolvendo os astros do futebol Adriano e Vagner Love revelam, entre outras
coisas, um indisfarçável preconceito de classe.
O que mais escandaliza a
chamada crônica esportiva,
com honrosas exceções, parece
ser o ambiente em que os personagens foram "flagrados". A
própria recorrência desse verbo é significativa, como se estar
num baile funk ou simplesmente na favela fosse por si só
uma atitude ilícita ou, no mínimo, suspeita.
Na Chatuba e na Barra
O vínculo entre os termos favela e crime, martelado durante décadas pelos meios de comunicação, parece ter-se tornado indissolúvel.
Condena-se Adriano não
tanto por trocar socos com a
namorada, mas por fazê-lo no
morro da Chatuba, e não numa
cobertura na Barra da Tijuca ou
num palacete em Milão.
O viés de classe nunca ficou
tão evidente, aliás, como quando o jogador, um ano atrás, deixou de se reapresentar a seu
clube, a Internazionale de Milão, e se refugiou durante três
dias no bairro onde se criou, no
Rio de Janeiro. A perplexidade
foi geral, na imprensa e no
mundo futebolístico.
A pergunta que se repetia
era: como um sujeito abre mão
de milhões de euros, do destaque num clube de ponta, de
uma cidade sofisticada, para
voltar à favela? O corolário, explícito ou subjacente, era mais
ou menos o seguinte: "Quem
nasceu na maloca nunca vai
deixar de ser maloqueiro".
Uma espécie de "nostalgia da
lama" arrastaria Adriano para
baixo -ainda que, topograficamente, para cima.
O que escandaliza, no fundo,
é a recusa em aderir aos valores, condutas e discursos tornados praticamente compulsórios para quem "vence" na nossa sociedade.
Não se perdoa Vagner Love
por optar por um baile funk na
Rocinha em vez de uma boate
na zona sul do Rio. No primeiro, estão os "bandidos"; na segunda, a gente de bem.
Pouco importa que o tráfico
que mata tanta gente no morro
se alimente do consumo recreativo de muitos habitués das
casas noturnas chiques.
Num país de "malandros
com contrato, com gravata e capital", não escandaliza ninguém que Kaká saia publicamente em defesa dos líderes de
sua argentária igreja, investigados em dois países por estelionato e lavagem de dinheiro.
Kaká, diz a crônica em uníssono, é um rapaz de boa cabeça,
de boa família, de boa "estrutura". Mas Vagner Love aparecer
num baile na Rocinha ladeado
por traficantes armados (algo
que talvez ocorresse com qualquer celebridade que visitasse o
local) é intolerável.
Motel e travestis
Para reforçar a constatação
de que, entre nós, o viés de classe é ainda mais forte do que o
viés moralista, um caso exemplar é o de Ronaldo, "flagrado"
(olha o verbo de novo) com três
travestis num motel do Rio.
O que mais se ouviu, nos bastidores da imprensa, foi: "Como é que um sujeito com a grana que ele tem vai se meter com
travecos de rua? Era só pegar o
telefone e encomendar a perversão que quisesse, no sigilo
do seu apartamento ou de um
hotel de luxo".
Ou seja, dependendo do
montante gasto, do cenário e
dos figurinos, tudo é bonito e
aceitável.
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