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A viagem
Autora de "Fumaça Negra", musicóloga Margaret de Wys
diz que os médicos não acreditam que tenha se curado
com hoasca; feito de cipó e arbusto, chá alucinógeno lança
altas doses de serotonina no sistema nervoso central
A hoasca confere status de realidade às experiências interiores
Divulgação
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Cerimônia conduzida pelo xamã Carlos no interior da floresta
amazônica, no Equador
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
O poder da ayahuasca sobre a vida de
uma pessoa pode
ser devastador
-em geral, para o
bem. A americana Margaret de
Wys que o diga. Depois do contato com a bebida alucinógena
originária da Amazônia, conhecida no Brasil como hoasca, sua
carreira de compositora sofreu
um baque e o casamento acabou, mas ela se curou de um
câncer de mama.
O tumor havia sido diagnosticado em 1999. Com simpatia
pelo xamanismo, De Wys (pronuncia-se "di uaiz"), rumou para a Guatemala. Queria buscar
uma cura entre os participantes de uma cerimônia maia de
caráter ecumênico, com curandeiros de vários países. Ali encontrou o equatoriano Carlos
e, por suas mãos, a hoasca.
"Eu enxergo dentro de você
-suas veias, seus órgãos, seu
sangue, suas células", anunciou-lhe Carlos, da etnia shuar
(ou jivaro), na cerimônia em
que beberam o preparado do
cipó Banisteriopsis caapi e das
folhas de Psychotria viridis.
"A fumaça negra está presa
em seu peito. Venha para o
Equador e eu a curarei."
"Black Smoke - A Woman's
Journey of Healing, Wild Love,
and Transformation in the
Amazon" (Fumaça Negra, ed.
Sterling, 240 págs., US$ 19,95,
R$ 36) é o título do livro que a
professora do Bard College, de
Nova York, publicou há um ano
sobre "a jornada de cura, amor
selvagem e transformação de
uma mulher na Amazônia", como diz o subtítulo.
"Carlos" é um nome fictício
que ela deu, na obra, à sua paixão sul-americana. Após a publicação, De Wys passou a organizar pequenos grupos de
americanos para conhecer os
poderes do shuar (a primeira
viagem, em fevereiro, tinha
cinco pessoas).
Entre a Guatemala e o Equador, ela se submeteu a uma
lumpectomia (retirada de tumor e tecidos adjacentes) nos
EUA. Não seguiu, contudo, o
tratamento prescrito pelos médicos americanos: seis semanas
de radioterapia e cinco anos do
antitumoral tamoxifeno.
"Fico aterrorizada com remédios ocidentais", diz, "por
causa dos efeitos colaterais".
Todos os anos ela faz exames
para verificar se o tumor voltou, e o resultado é sempre negativo. "Você não tem mais nada no peito, não enxergo nada",
disse-lhe Carlos há poucos meses, durante sua última visita
ao Equador.
"Nem eu", respondeu-lhe a
compositora. "Mas os médicos
não acreditam em cura."
Na iniciação com "natem"
(nome shuar para a hoasca) há
dez anos, porém, De Wys viu de
tudo. Suas "mirações", como se
diz entre praticantes brasileiros do Santo Daime e da União
do Vegetal, incluíram entrar na
boca de uma sucuri do tamanho de uma garagem.
Numa das alucinações, uma
onça macho invadiu o corpo de
Carlos, e outra, fêmea, o da
americana. "O jaguar em Carlos era selvagem e brutal", contou De Wys à jornalista Roberta Louis em entrevista publicada pela "Bomb Magazine".
Hoje, sua relação com o
equatoriano é estritamente
profissional, ressalva.
Olhos bem fechados
O poder da hoasca sobre a
mente deriva dos potentes alcalóides presentes no cipó B.
caapi e no arbusto P. viridis
empregados no preparo do chá.
O arbusto é rico na substância alucinógena dimetiltriptamina (DMT), que não tem efeito quando ingerido. Mas a
DMT conta com a ajuda da harmina e da harmalina do cipó
para chegar ao sistema nervoso
central, onde juntas iniciam a
subversão da consciência.
O mecanismo básico é uma
inundação de serotonina, neurotransmissor com múltiplos e
complexos efeitos no corpo e
no cérebro.
Pessoas deprimidas, por
exemplo, costumam ter baixos
teores de serotonina. A fluoxetina (Prozac) consegue melhorar sua vida porque impede a
recaptação (retirada) do neurotransmissor no espaço livre
entre os neurônios, reforçando
a comunicação entre eles.
Há uma tradição de pelo menos duas décadas de pesquisa
sobre a hoasca no Brasil.
Uma equipe de dez neurocientistas da USP de Ribeirão
Preto, do Instituto Internacional de Neurociência de Natal
Edmond e Lily Safra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e do Centro IBM
JB Watson (Nova York) tem
apresentado em congressos
um trabalho com algumas revelações surpreendentes sobre
a beberagem. Seis deles já experimentaram a hoasca.
Draulio de Araujo, Sidarta
Ribeiro e seus colegas trabalharam com dez usuários frequentes do chá. Todos eram
membros do grupo de Mestre
Pelicano (irmão do cartunista
Glauco) em Ribeirão Preto. O
manuscrito tem o título "Vendo com os Olhos Fechados".
O grupo de pesquisa registrou imagens de atividade cerebral obtidas por ressonância
magnética funcional durante
tarefas visuais antes e depois
da ingestão de 0,2 litro do chá.
A tarefa tinha três passos:
contemplar uma imagem familiar por 21 segundos, depois fechar os olhos e imaginar a foto
mostrada, e, por fim, olhar uma
versão embaralhada da mesma
imagem.
Três testes psiquiátricos padronizados avaliaram sintomas
psicóticos, despersonalização/desrealização e sintomas
maníacos dos participantes.
Como era de esperar, todos tiveram aumento de sintomas
depois de tomar o chá.
Todos também relataram
aumento da capacidade de
imaginação no segundo passo
da tarefa, com as cenas tornando-se muito mais vívidas e
reais -apesar dos olhos bem
fechados. As áreas cerebrais
mais ativadas estão associadas
com a recuperação de memórias episódicas (fatos, lugares,
pessoas), a ação intencional e o
processamento visual.
Sua ordem unida, contudo, é
reorganizada pela hoasca. Na
vigília sem o chá, sensações interiores são intencionalmente
interpretadas à luz de memórias e servem de base para a
ação, a cada momento.
Revelações místicas
Sob a ação do chá, a imaginação chega ao poder, de certo
modo, com a área visual primária (BA17) tomando a dianteira
da ativação das áreas frontais
envolvidas na vida consciente.
Nessa sequência, as imagens
compostas pela imaginação
sem peias aparecem para a
mente como fatos.
"A hoasca confere status de
realidade às experiências interiores", resumem os neurocientistas. "É compreensível,
portanto, por que a hoasca foi
culturalmente selecionada ao
longo de muitos séculos por xamãs da floresta tropical para facilitar revelações místicas de
natureza visual."
"As mirações são tão reais
quanto a percepção visual de
elementos externos, pelo menos no que diz respeito à modulação observada no sistema visual primário", explica Draulio
de Araujo.
"Foi uma baita surpresa",
afirma Sidarta Ribeiro. "Esperávamos que as áreas frontais
assumissem a liderança."
Tais conclusões, no entanto,
"explicam" (aspas de Ribeiro,
em comunicação por e-mail)
como ocorrem as mirações,
sem excluir nem confirmar interpretações místicas.
No Brasil, a hoasca foi retirada em 1987 da lista de substâncias proibidas
É uma droga muito mais benigna para o organismo do que a heroína e a cocaína
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Na tradição de pesquisa sobre a hoasca, ganhou fama um
artigo publicado em fevereiro
de 1996 por cientistas brasileiros, americanos e finlandeses
no periódico "The Journal of
Nervous & Mental Disease".
Tinha como primeiro autor
Charles Grob, da Universidade
da Califórnia.
Era tudo de bom: 15 usuários
do chá na União do Vegetal,
comparados com 15 não usuários no grupo de controle, se
mostraram mais reflexivos,
leais, estoicos, frugais, ordeiros
e persistentes. E ainda mais
confiantes, relaxados, otimistas, despreocupados, desinibidos, enérgicos...
O estudo chegou a ser usado
em tribunais americanos na batalha iniciada em 1999 por Jeffrey Bronfman em favor da legalidade da hoasca. Representante da União do Vegetal nos
EUA e um dos herdeiros do império Seagram de bebidas alcoólicas, Bronfman teve três
tambores da bebida confiscados como droga ilegal.
O caso só se encerraria em fevereiro de 2006, quando a Suprema Corte confirmou decisões anteriores determinando
a devolução da hoasca e a legalidade de seu uso em contexto
religioso.
No Brasil, a hoasca foi retirada da lista de substâncias proibidas em 1987, e a decisão sofre
contestações desde então. No
entanto, foi reconfirmada em
25 de janeiro deste ano pela resolução nº 1 do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre
Drogas).
Apesar do reconhecimento
da legitimidade do uso religioso
do chá, parece haver consenso
de que se trata, sim, de uma
droga. "Certamente, como o
LSD, a maconha, o álcool e o café", afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro.
"É uma droga muito mais benigna para o organismo do que
a heroína e a cocaína, pois não
há overdose conhecida, nem
adição [vício] pronunciada."
Potencial perturbador
Henrique Carneiro, especialista em história de alimentos e
bebidas da USP, concorda que o
chá não é fisiologicamente perigoso: "Psicologicamente, depende. É uma substância com
potencial perturbador para
quem não é experiente, ou dependendo do ambiente -um
ambiente sereno tende a garantir boas experiências".
Para Ribeiro, a hoasca não
deve ser dada a quem estiver no
limiar de psicose, grávida ou for
criança. "Pessoas com tendências psicóticas? Mentes frágeis? Esquece!", sentencia De
Wys, que não admite gente desse tipo em seus grupos.
Mas ela sustenta que Carlos
já curou esquizofrenia com a
hoasca -e até gangrena.
Seu fascínio pelas curas que
evita chamar de "miraculosas"
-pois, para os xamãs, elas e os
espíritos envolvidos fazem parte da ordem natural do mundo- também a trouxe "quatro
ou cinco vezes ao Brasil".
Quem a atraiu foi o médium
João de Deus, de Abadiânia
(GO),
mas ela aproveitou para conhecer terreiros de umbanda. Tudo para escrever um novo livro,
concentrado em curandeiros
do Brasil e da África do Sul.
Para a americana, Carlos e
João de Deus, de certo modo,
têm práticas similares, na medida em que se comunicam
com espíritos ou os incorporam para realizar as curas.
Há uma grande diferença,
porém: Carlos o faz de forma
"consciente".
É ver para crer.
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