São Paulo, domingo, 21 de março de 2010

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Realismo mágico

Diretor de "O Que É Isso, Companheiro ?", Bruno Barreto diz que pensa em fazer um filme sobre João de Deus, que conheceu em viagem a Abadiânia

Tem pessoas em cadeiras de rodas, enfaixadas, com curativos nas costas, nas condições mais diferentes

EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO

No início de fevereiro de 2009, o cineasta Bruno Barreto -que dirigiu "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), "O Que É Isso, Companheiro?" (1997) e "Última Parada 174" (2008), entre outros filmes- fez uma viagem, segundo ele mesmo "uma experiência única", pelo interior de Goiás.
Foi a Abadiânia para conhecer de perto João Teixeira de Farias, 67, o médium conhecido como João de Deus e considerado o sucessor de Chico Xavier (1910-2002).
Em entrevista à Folha, por telefone, Barreto diz que a presença de estrangeiros na cidade goiana é tão impactante que a língua inglesa passou a fazer parte do cotidiano. Para o cineasta, que considera a possibilidade de fazer um filme sobre João de Deus, o médium é uma pessoa muito simples, quase "primitiva", mas também ambiciosa.

 

FOLHA - Por que você viajou a Abadiânia?
BRUNO BARRETO
- Um amigo meu estava com problemas de saúde e tinha que fazer uma cirurgia -mais uma das várias que fizera. Então resolveu ir a Abadiânia para se consultar com João de Deus. Até então, nunca tinha ouvido falar nele. A viagem foi uma experiência única. É difícil tecer qualquer julgamento [sobre o que vi], porque Abadiânia é um lugar em que o realismo mágico de Gabriel García Márquez [escritor colombiano] seria pouco para descrevê-la.
É uma cidade muito pequena, mas cheia de estrangeiros. Tudo é escrito em inglês e português. Tem pessoas em cadeiras de rodas, enfaixadas, com curativos nas costas, nas condições mais diferentes e de todo lugar do mundo -indianos, árabes, japoneses, alemães-, uma mistura incrível. Conversei com uma mulher de Abu Dhabi [Emirados Árabes Unidos] que levou lá o seu filho com leucemia. Tinha gente da Arábia Saudita, tinha budista, muçulmano, católico, judeu.
Ficamos dois ou três dias na cidade, onde há vários pequenos hotéis e pousadas; é tudo muito básico.
Tem pessoas que ficam lá três meses, porque querem fazer a "cirurgia" com João de Deus -que só atende duas ou três vezes por semana. Elas formam inicialmente uma fila, ajoelham-se, falam com ele -que fica sentado e diz ao seu assistente o que é preciso fazer. Tem consultas espirituais em que parece não fazer nada, não toca as pessoas. Indica remédios que são comprados lá mesmo. Esse é o atendimento mais generalizado.
Depois, pode-se tentar uma entrevista privada ou marcar uma "cirurgia".

FOLHA - Qual impressão lhe causou sua figura?
BARRETO
- É uma pessoa muito simples, um curandeiro. Sentamos com ele, conversamos. É uma pessoa muito direta. Não cobra nada. Recebe doações. Muita gente colabora. Diz que recebe a entidade de um médico e faz as operações. Vi quando cortou o peito de uma mulher, inclusive filmei isso com uma câmera de vídeo. Sou totalmente cético, não sigo nenhuma religião. Mas prestei muita atenção na operação: ele enfiou o dedo no corte feito com um bisturi desinfetado. Isso num salão que tinha um palco, uma plateia. Tem algo realmente de espetáculo, para todo mundo ver. Essa mulher ficava encostada na parede, sem piscar o olho. Estava diagnosticada com câncer de mama.

FOLHA - Durante a "cirurgia", a mulher sangrava muito?
BARRETO
- Não, sangrava pouco. Fez o corte nela, lavou as mãos, enfiou o dedo sem luva [na incisão] e tirou algo de dentro do peito dela. Parecia um tumor. A parte mais incrível é que, depois, pegou um alicate que segurava na ponta uma agulha e deu alguns pontos no ferimento. A mulher não piscou o olho. Isso foi impressionante.
É inegável que eu vi o que vi.
O fato é que dor ela não sentiu.
Ele deu uns seis pontos e ela nem respirava rápido demais, estava muito serena, tranquila.
Se João de Deus tem poder de cura ou não, isso não é uma coisa nova -Zé Arigó e Chico Xavier faziam isso. Mas, definitivamente, foi algo que me impressionou e não me considero equipado para tecer nenhum julgamento [a respeito].
Depois da "cirurgia", conversamos. Ele estava exausto; fica muito cansado. Dialogamos por 20 minutos. Falamos da vida dele, onde mora. Disse que tinha fazendas de gado em Goiás, que viajava no avião particular que está no aeroporto de Anápolis (GO), que ia aos EUA duas vezes por ano.
Disse ainda que desde pequeno já sentia essa energia [espiritual], que era uma pessoa muito introvertida, que lia muito literatura religiosa, que era muito religioso, não tinha muitos amigos.
Ele é kardecista [segue a doutrina fundada, no século 19, pelo francês Allan Kardec].

FOLHA - Ele já fez alguma operação malsucedida?
BARRETO
- Sim. Nesse aspecto, ele é muito inteligente. Diz que não faz milagres: "Eu ajudo, mas o fundamental é a vontade da pessoa de se curar. Sou apenas um veículo para isso, para conectar a vontade da pessoa de se curar com a cura em si. Só ajudo nessa conexão".

FOLHA - Ele tem controle sobre o incorporar ou não a entidade?
BARRETO
- Sim, ele faz um esforço no momento em que a incorpora. Disse que é como se "corresse uma maratona quando recebe a entidade, tira muito de mim". Mas quando a incorpora, está muito sereno, tranquilo, muito zen. E depois fica sentado numa espreguiçadeira, suado. Vê-se na cara dele a exaustão.

FOLHA - Você pretende fazer algum filme a partir das imagens que registrou em Abadiânia?
BARRETO
- Não sei. Eu me impressionei com esse universo que fascina tanta gente ao redor do mundo. Fiquei tentado a investigar isso. Existem basicamente dois tipos de cineastas: os que fazem filmes somente sobre o que conhecem muito bem, como Woody Allen ou Ingmar Bergman; ou os cineastas que fazem filmes sobre assuntos que não conhecem de maneira nenhuma, mas têm uma grande curiosidade, como Wim Wenders ou Walter Salles. Sou desse tipo. Mas tenho que achar o tom certo. Olhar isso com toda a sua complexidade, com a necessidade que o ser humano tem de acreditar em certas coisas.
Dizer que João de Deus é uma fraude ou um charlatão é uma simplificação. É [uma pessoa] fascinante.

FOLHA - Ele te pareceu uma pessoa ambiciosa?
BARRETO
- Boa pergunta. No sentido material... ambicioso ele é, claro. Ele não seria quem é se não fosse ambicioso.


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