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Realismo mágico
Diretor de "O Que É Isso, Companheiro ?", Bruno Barreto diz que pensa em fazer um filme sobre João de Deus, que conheceu em viagem a Abadiânia
Tem pessoas em cadeiras de rodas, enfaixadas, com curativos nas costas, nas condições mais diferentes
EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO
No início de fevereiro de 2009, o cineasta Bruno Barreto -que dirigiu
"Dona Flor e Seus
Dois Maridos" (1976), "O Que
É Isso, Companheiro?" (1997)
e "Última Parada 174" (2008),
entre outros filmes- fez uma
viagem, segundo ele mesmo
"uma experiência única", pelo
interior de Goiás.
Foi a Abadiânia para conhecer de perto João Teixeira de Farias, 67, o médium conhecido como João de Deus e considerado o sucessor de Chico Xavier (1910-2002).
Em entrevista à Folha, por
telefone, Barreto diz que a presença de estrangeiros na cidade
goiana é tão impactante que a
língua inglesa passou a fazer
parte do cotidiano. Para o cineasta, que considera a possibilidade de fazer um filme sobre João de Deus, o médium é uma pessoa muito simples, quase "primitiva", mas também ambiciosa.
FOLHA - Por que você viajou a Abadiânia?
BRUNO BARRETO
- Um amigo
meu estava com problemas de
saúde e tinha que fazer uma cirurgia -mais uma das várias
que fizera. Então resolveu ir a
Abadiânia para se consultar
com João de Deus. Até então,
nunca tinha ouvido falar nele.
A viagem foi uma experiência
única. É difícil tecer qualquer
julgamento [sobre o que vi],
porque Abadiânia é um lugar
em que o realismo mágico de
Gabriel García Márquez [escritor colombiano] seria pouco
para descrevê-la.
É uma cidade muito pequena, mas cheia de estrangeiros.
Tudo é escrito em inglês e português. Tem pessoas em cadeiras de rodas, enfaixadas, com
curativos nas costas, nas condições mais diferentes e de todo
lugar do mundo -indianos,
árabes, japoneses, alemães-,
uma mistura incrível. Conversei com uma mulher de Abu
Dhabi [Emirados Árabes Unidos] que levou lá o seu filho
com leucemia. Tinha gente da
Arábia Saudita, tinha budista,
muçulmano, católico, judeu.
Ficamos dois ou três dias na
cidade, onde há vários pequenos hotéis e pousadas; é tudo
muito básico.
Tem pessoas que ficam lá
três meses, porque querem fazer a "cirurgia" com João de
Deus -que só atende duas ou
três vezes por semana.
Elas formam inicialmente
uma fila, ajoelham-se, falam
com ele -que fica sentado e diz
ao seu assistente o que é preciso fazer. Tem consultas espirituais em que parece não fazer
nada, não toca as pessoas. Indica remédios que são comprados lá mesmo. Esse é o atendimento mais generalizado.
Depois, pode-se tentar uma
entrevista privada ou marcar
uma "cirurgia".
FOLHA - Qual impressão lhe causou sua figura?
BARRETO
- É uma pessoa muito
simples, um curandeiro. Sentamos com ele, conversamos. É
uma pessoa muito direta. Não
cobra nada. Recebe doações.
Muita gente colabora.
Diz que recebe a entidade de
um médico e faz as operações.
Vi quando cortou o peito de
uma mulher, inclusive filmei
isso com uma câmera de vídeo.
Sou totalmente cético, não
sigo nenhuma religião. Mas
prestei muita atenção na operação: ele enfiou o dedo no corte feito com um bisturi desinfetado. Isso num salão que tinha
um palco, uma plateia.
Tem algo realmente de espetáculo, para todo mundo ver.
Essa mulher ficava encostada
na parede, sem piscar o olho.
Estava diagnosticada com câncer de mama.
FOLHA - Durante a "cirurgia", a
mulher sangrava muito?
BARRETO
- Não, sangrava pouco.
Fez o corte nela, lavou as mãos,
enfiou o dedo sem luva [na incisão] e tirou algo de dentro do
peito dela. Parecia um tumor.
A parte mais incrível é que,
depois, pegou um alicate que
segurava na ponta uma agulha
e deu alguns pontos no ferimento. A mulher não piscou o
olho. Isso foi impressionante.
É inegável que eu vi o que vi.
O fato é que dor ela não sentiu.
Ele deu uns seis pontos e ela
nem respirava rápido demais,
estava muito serena, tranquila.
Se João de Deus tem poder
de cura ou não, isso não é uma
coisa nova -Zé Arigó e Chico
Xavier faziam isso. Mas, definitivamente, foi algo que me impressionou e não me considero
equipado para tecer nenhum
julgamento [a respeito].
Depois da "cirurgia", conversamos. Ele estava exausto; fica
muito cansado. Dialogamos
por 20 minutos. Falamos da vida dele, onde mora. Disse que
tinha fazendas de gado em
Goiás, que viajava no avião particular que está no aeroporto de
Anápolis (GO), que ia aos EUA
duas vezes por ano.
Disse ainda que desde pequeno já sentia essa energia [espiritual], que era uma pessoa
muito introvertida, que lia
muito literatura religiosa, que
era muito religioso, não tinha
muitos amigos.
Ele é kardecista [segue a doutrina fundada, no século 19, pelo francês Allan Kardec].
FOLHA - Ele já fez alguma operação
malsucedida?
BARRETO - Sim. Nesse aspecto,
ele é muito inteligente. Diz que
não faz milagres: "Eu ajudo,
mas o fundamental é a vontade
da pessoa de se curar. Sou apenas um veículo para isso, para
conectar a vontade da pessoa
de se curar com a cura em si. Só
ajudo nessa conexão".
FOLHA - Ele tem controle sobre o
incorporar ou não a entidade?
BARRETO - Sim, ele faz um esforço no momento em que a incorpora. Disse que é como se
"corresse uma maratona quando recebe a entidade, tira muito
de mim". Mas quando a incorpora, está muito sereno, tranquilo, muito zen.
E depois fica sentado numa
espreguiçadeira, suado. Vê-se
na cara dele a exaustão.
FOLHA - Você pretende fazer algum filme a partir das imagens que
registrou em Abadiânia?
BARRETO
- Não sei. Eu me impressionei com esse universo
que fascina tanta gente ao redor do mundo. Fiquei tentado a
investigar isso.
Existem basicamente dois tipos de cineastas: os que fazem
filmes somente sobre o que conhecem muito bem, como
Woody Allen ou Ingmar Bergman; ou os cineastas que fazem
filmes sobre assuntos que não
conhecem de maneira nenhuma, mas têm uma grande curiosidade, como Wim Wenders ou
Walter Salles. Sou desse tipo.
Mas tenho que achar o tom
certo. Olhar isso com toda a sua
complexidade, com a necessidade que o ser humano tem de
acreditar em certas coisas.
Dizer que João de Deus é
uma fraude ou um charlatão é
uma simplificação. É [uma pessoa] fascinante.
FOLHA - Ele te pareceu uma pessoa
ambiciosa?
BARRETO - Boa pergunta. No
sentido material... ambicioso
ele é, claro. Ele não seria quem
é se não fosse ambicioso.
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