São Paulo, domingo, 21 de março de 2010

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Telhado de vidro

Um dos últimos grandes arquitetos modernistas, I.M. Pei rebate a pecha de comercialismo em suas obras, como a pirâmide do Louvre

Pei declarou, certa vez, que "grandes artistas precisam de grandes clientes"

EDWIN HEATHCOTE

Aos 92 anos, I.M. Pei é reverenciado como um dos últimos arquitetos modernistas sobreviventes. A geometria e qualidade espacial de seu trabalho recente parecem satisfazer mesmo os críticos mais cínicos, incluindo alguns que até há pouco suspeitavam de comercialismo escancarado em seus projetos. Mas se, vista hoje, a vida de Pei parece uma longa e sossegada sucessão de obras-primas aclamadas internacionalmente, nem sempre as coisas foram tão simples.
A construção da Biblioteca e Museu John F. Kennedy, em Boston (inaugurada em 1979), se transformou em uma feroz batalha por redução de custos e contra a forte oposição local.
A John Hancock Tower (1976), na mesma cidade, durante algum tempo exibiu uma fachada precária de tábuas, porque as vidraças foram bloqueadas para impedi-las de cair sobre os transeuntes.
O caso mais notório de controvérsia foi a pirâmide do Louvre (1988), que provocou lamentos angustiados na conservadora Paris, devido à interferência de um norte-americano enxerido em um dos marcos sagrados da cidade.
Mas tudo isso é passado. A pirâmide do Louvre se tornou um símbolo da Paris contemporânea, da mesma forma que o Centro Georges Pompidou.
Os projetos recentes de Pei ajudaram a dar novo lustro à sua reputação, especialmente o sereno Museu de Arte Islâmica, inaugurado no ano passado em Doha, e a mistura muito admirada de formas orientais e ocidentais de um museu construído em Suzhou, na China, o país em que Pei nasceu.
Pode ser uma tarefa difícil determinar se Pei é muito habilidoso em mudar para se adequar aos novos tempos ou se são os tempos que mudam para se acomodar a ele.
Certamente, a figura charmosa, franzina e bem vestida do arquiteto sentado diante de mim para um chá parece ansiosa por agradar e bem distante da imagem arrogante dos "starchitects".
Pei veste um elegante terno cinza, de cujas mangas emergem punhos bem engomados de camisa à moda francesa; seu rosto, que quase não mostra rugas mas traz as manchas da idade, tem um ar pensativo conferido por um par de óculos de lentes arredondadas -um cacoete de moda que ele tomou de empréstimo a Le Corbusier.
Após estudar em Harvard com Walter Gropius, fundador da escola Bauhaus e talvez o mais influente professor do século 20, Pei se tornou grande amigo do húngaro Marcel Breuer, por algum tempo sócio de Gropius e responsável pelo projeto arquitetônico da sede da ONU e do Museu Whitney, em Nova York.
O que Pei aprendeu com essas figuras quase míticas?
"Muito", responde. "Gropius era muito severo em termos disciplinares, mas um professor maravilhoso, e Breuer e eu nos tornamos grandes amigos.
Visitamos a Europa juntos diversas vezes, e velejávamos juntos. Velejar é uma excelente maneira de aprender a conhecer uma pessoa", diz Pei, com um olhar que mostra um traço distante de lágrimas.

Avesso a teorias
Quando lhe pergunto sobre sua chegada aos EUA, ele uma vez mais faz referência a embarcações.
"Cheguei aos EUA em 1935, em San Francisco. Desci do navio, vindo da China, sem nem mesmo falar inglês. Escrevia um pouquinho, e olhe lá, mas não passava disso. Foi uma viagem de 17 dias, e aprendi a falar um pouco de inglês com os camareiros."
Depois de três quartos de século, o inglês de Pei continua a exibir sotaque e certos deslizes gramaticais, mas sua fala e modos são tão impecáveis quanto seu terno.
De fato, ao longo da maior parte de sua carreira, esse arquiteto que sempre se recusou a teorizar ou lecionar esteve fora de moda. A combinação aparentemente inconsútil de apelo comercial e cultural que ele desenvolveu despertava suspeitas nos demais arquitetos.
Como é que ele conseguiu combinar com tamanho sucesso o aspecto empresarial e o artístico da arquitetura?
"Creio que o lado artístico da arquitetura veio, para mim, naturalmente", diz, sem exibir nem mesmo um traço de falsa modéstia.
"Minha mãe era artista e poeta. O lado comercial veio mais tarde [o pai era banqueiro]. Depois de me formar, trabalhei para um incorporador de imóveis e aprendi sobre o lado comercial da arquitetura.
Hoje, me sinto confortável realizando qualquer espécie de trabalho."
De 1948 a 1955, Pei trabalhou para William Zeckendorf, um excêntrico incorporador imobiliário de Nova York, que trazia o charuto sempre à boca, e projetou diversos edifícios memoráveis. Pei declarou certa vez que "grandes artistas precisam de grandes clientes".
Mais tarde, viria a virtualmente definir o centro de Dallas (Texas), com edificações como o imenso prédio da prefeitura da cidade (1978).
Quando mencionei minha recente visita ao edifício, ele perguntou: "Os Henry Moore estão mesmo lá? Eu ajudei a obter aquela encomenda, sabe?
Fui a Much Hadham [a aldeia de Hertdfordshire onde Moore vivia, hoje sede da Henry Moore Foundation]".

Obras "genéricas"
Diversas grandes torres de escritórios e o estranhamente barroco Centro Sinfônico Morton H. Meyerson (1989) estão entre as estruturas projetadas por Pei que levaram o arquiteto holandês Rem Kolhaas a definir Dallas como "o epicentro do genérico".
Sua defesa é tipicamente calma: "Em Dallas, eu estava projetando para as pessoas, não para o lugar. Muitas delas vinham de Nova York. Não é como Houston, uma cidade petroleira. É mais parecida com a Costa Leste. Dallas, na verdade, não difere muito de Nova York".
Pei só pareceu incomodado em dois momentos, durante a entrevista.
O primeiro veio quando perguntei a ele sobre seu serviço na Segunda Guerra, que ele passou trabalhando no Comitê Nacional de Pesquisa de Defesa dos EUA ("aprendendo a destruir, e não a construir"), e o segundo quando o convenci a falar um pouco mais sobre a saga da Biblioteca Kennedy.
"A biblioteca foi muito difícil", ele diz. "Fomos abordados por Jackie e Bobby Kennedy [um ano depois do assassinato do presidente John Kennedy, em 1963], e ele era um herói".
Jackie Kennedy teria dito que selecionar Pei havia sido "na verdade uma escolha emocional. Ele era um homem promissor, como John; ambos nasceram no mesmo ano; decidi que seria divertido fazer um salto no escuro com ele".
Mas em lugar de um salto, o projeto logo se atolou em disputas políticas locais e incessantes mudanças de especificação. Ainda assim, a história toda não pode nem ser comparada à tempestade política que cercou o trabalho de Pei no Louvre.

Sob o solo
O projeto original para a Biblioteca Kennedy, em Boston, incluía uma pirâmide de vidro; até que ponto, perguntei, a pirâmide do Louvre foi um transplante dessa ideia?
"Tivemos muita dificuldade em convencer os franceses a aceitar a pirâmide. Eles imaginavam que eu desejasse importar um pedaço do Egito.
Foi quando observei que seu obelisco também era egípcio e que a Place des Pyramides ficava bem ao lado. Só depois disso que aceitaram.
Mas, no caso do Louvre, a pirâmide é apenas um lado da história. Não se pode construir nada sobre o chão, pois é um local histórico, mas o projeto era grande, com muitas galerias.
Não restava escolha a não ser uma construção subterrânea.
Mas, se uma obra tão grande é realizada sob o solo, é preciso que haja algo para que as pessoas vejam, no alto. A pirâmide e as fontes são um convite para que as pessoas vejam tudo o que temos a lhes mostrar".
Emile Biasini, o funcionário francês encarregado dos "Grandes Trabalhos", considerou que Pei seria perfeito para a tarefa porque, já que era chinês, "tinha compreensão das civilização antigas" e, como norte-americano, "tinha um gosto pelo moderno". Perguntei sobre isso a Pei: após 75 anos nos EUA, ele ainda se sente chinês? "Jamais deixei a China", responde rapidamente. "Minha família vive lá há 600 anos. Mas minha arquitetura não tem nada de conscientemente chinês, em sentido algum. Sou um arquiteto ocidental."
Para um homem que se autodefine como "arquiteto ocidental" -e arquiteto, aliás, associado fortemente ao lado empresarial da profissão-, seus mais elegantes edifícios talvez sejam seus dois projetos pós-aposentadoria, e não ocidentais.
O museu de Suzhou evoca a estrutura de madeira e a calma serenidade dos templos budistas. Já a densa massa de pedra do Museu de Arte Islâmica de Doha se posiciona a meio caminho entre o Egito antigo, Bizâncio e a Bagdá modernista. Será que esse último trabalho representa um esforço de lidar com uma cultura não ocidental, desenvolver uma nova linguagem? "Suponho que [o museu de Doha] possa ser definido como algo intermediário um edifício do "Oriente Médio'", ri o arquiteto.
Os melhores projetos de Pei, caracterizados por uma obsessão pela geometria, estão entre os mais notáveis da era contemporânea. E ele continua a trabalhar: os novos projetos incluem a escola e templo de Miho, no Japão.
Mas, em seus piores momentos, as estruturas que criou incorporam todos os defeitos da megalomania modernista: da Torre do Banco da China, em Hong Kong, à Galeria Nacional de Arte, em Washington, suas obras dos anos 70 e 80 parecem abarcar todo o planeta; e essas duas décadas marcam o pior momento do modernismo.


A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.


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