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Telhado de vidro
Um dos últimos grandes arquitetos modernistas, I.M. Pei rebate a pecha
de comercialismo em suas obras, como a pirâmide do Louvre
Pei declarou, certa vez, que "grandes artistas precisam de grandes clientes"
EDWIN HEATHCOTE
Aos 92 anos, I.M. Pei
é reverenciado como um dos últimos
arquitetos modernistas sobreviventes. A geometria e qualidade espacial de seu trabalho recente
parecem satisfazer mesmo os
críticos mais cínicos, incluindo
alguns que até há pouco suspeitavam de comercialismo escancarado em seus projetos.
Mas se, vista hoje, a vida de
Pei parece uma longa e sossegada sucessão de obras-primas
aclamadas internacionalmente, nem sempre as coisas foram
tão simples.
A construção da Biblioteca e
Museu John F. Kennedy, em
Boston (inaugurada em 1979),
se transformou em uma feroz
batalha por redução de custos e
contra a forte oposição local.
A John Hancock Tower
(1976), na mesma cidade, durante algum tempo exibiu uma
fachada precária de tábuas,
porque as vidraças foram bloqueadas para impedi-las de
cair sobre os transeuntes.
O caso mais notório de controvérsia foi a pirâmide do
Louvre (1988), que provocou
lamentos angustiados na conservadora Paris, devido à interferência de um norte-americano enxerido em um dos marcos sagrados da cidade.
Mas tudo isso é passado. A
pirâmide do Louvre se tornou
um símbolo da Paris contemporânea, da mesma forma que
o Centro Georges Pompidou.
Os projetos recentes de Pei
ajudaram a dar novo lustro à
sua reputação, especialmente o
sereno Museu de Arte Islâmica, inaugurado no ano passado
em Doha, e a mistura muito admirada de formas orientais e
ocidentais de um museu construído em Suzhou, na China, o
país em que Pei nasceu.
Pode ser uma tarefa difícil
determinar se Pei é muito habilidoso em mudar para se adequar aos novos tempos ou se
são os tempos que mudam para
se acomodar a ele.
Certamente, a figura charmosa, franzina e bem vestida
do arquiteto sentado diante de
mim para um chá parece ansiosa por agradar e bem distante
da imagem arrogante dos "starchitects".
Pei veste um elegante terno
cinza, de cujas mangas emergem punhos bem engomados
de camisa à moda francesa; seu
rosto, que quase não mostra
rugas mas traz as manchas da
idade, tem um ar pensativo
conferido por um par de óculos
de lentes arredondadas -um
cacoete de moda que ele tomou
de empréstimo a Le Corbusier.
Após estudar em Harvard
com Walter Gropius, fundador
da escola Bauhaus e talvez o
mais influente professor do século 20, Pei se tornou grande
amigo do húngaro Marcel
Breuer, por algum tempo sócio
de Gropius e responsável pelo
projeto arquitetônico da sede
da ONU e do Museu Whitney,
em Nova York.
O que Pei aprendeu com essas figuras quase míticas?
"Muito", responde. "Gropius
era muito severo em termos
disciplinares, mas um professor maravilhoso, e Breuer e eu
nos tornamos grandes amigos.
Visitamos a Europa juntos diversas vezes, e velejávamos
juntos. Velejar é uma excelente
maneira de aprender a conhecer uma pessoa", diz Pei, com
um olhar que mostra um traço
distante de lágrimas.
Avesso a teorias
Quando lhe pergunto sobre
sua chegada aos EUA, ele uma
vez mais faz referência a embarcações.
"Cheguei aos EUA em 1935,
em San Francisco. Desci do navio, vindo da China, sem nem
mesmo falar inglês. Escrevia
um pouquinho, e olhe lá, mas
não passava disso. Foi uma viagem de 17 dias, e aprendi a falar
um pouco de inglês com os camareiros."
Depois de três quartos de século, o inglês de Pei continua a
exibir sotaque e certos deslizes
gramaticais, mas sua fala e modos são tão impecáveis quanto
seu terno.
De fato, ao longo da maior
parte de sua carreira, esse arquiteto que sempre se recusou
a teorizar ou lecionar esteve fora de moda. A combinação aparentemente inconsútil de apelo
comercial e cultural que ele desenvolveu despertava suspeitas
nos demais arquitetos.
Como é que ele conseguiu
combinar com tamanho sucesso o aspecto empresarial e o artístico da arquitetura?
"Creio que o lado artístico da
arquitetura veio, para mim, naturalmente", diz, sem exibir
nem mesmo um traço de falsa
modéstia.
"Minha mãe era artista e
poeta. O lado comercial veio
mais tarde [o pai era banqueiro]. Depois de me formar, trabalhei para um incorporador
de imóveis e aprendi sobre o lado comercial da arquitetura.
Hoje, me sinto confortável realizando qualquer espécie de trabalho."
De 1948 a 1955, Pei trabalhou
para William Zeckendorf, um
excêntrico incorporador imobiliário de Nova York, que trazia o charuto sempre à boca, e
projetou diversos edifícios memoráveis. Pei declarou certa
vez que "grandes artistas precisam de grandes clientes".
Mais tarde, viria a virtualmente definir o centro de Dallas (Texas), com edificações
como o imenso prédio da prefeitura da cidade (1978).
Quando mencionei minha
recente visita ao edifício, ele
perguntou: "Os Henry Moore
estão mesmo lá? Eu ajudei a obter aquela encomenda, sabe?
Fui a Much Hadham [a aldeia
de Hertdfordshire onde Moore
vivia, hoje sede da Henry Moore Foundation]".
Obras "genéricas"
Diversas grandes torres de
escritórios e o estranhamente
barroco Centro Sinfônico Morton H. Meyerson (1989) estão
entre as estruturas projetadas
por Pei que levaram o arquiteto
holandês Rem Kolhaas a definir Dallas como "o epicentro do
genérico".
Sua defesa é tipicamente calma: "Em Dallas, eu estava projetando para as pessoas, não
para o lugar. Muitas delas vinham de Nova York. Não é como Houston, uma cidade petroleira. É mais parecida com a
Costa Leste. Dallas, na verdade,
não difere muito de Nova
York".
Pei só pareceu incomodado
em dois momentos, durante a
entrevista.
O primeiro veio quando perguntei a ele sobre seu serviço
na Segunda Guerra, que ele
passou trabalhando no Comitê
Nacional de Pesquisa de Defesa
dos EUA ("aprendendo a destruir, e não a construir"), e o segundo quando o convenci a falar um pouco mais sobre a saga
da Biblioteca Kennedy.
"A biblioteca foi muito difícil", ele diz. "Fomos abordados
por Jackie e Bobby Kennedy
[um ano depois do assassinato
do presidente John Kennedy,
em 1963], e ele era um herói".
Jackie Kennedy teria dito
que selecionar Pei havia sido
"na verdade uma escolha emocional. Ele era um homem promissor, como John; ambos nasceram no mesmo ano; decidi
que seria divertido fazer um
salto no escuro com ele".
Mas em lugar de um salto, o
projeto logo se atolou em disputas políticas locais e incessantes mudanças de especificação. Ainda assim, a história toda não pode nem ser comparada à tempestade política que
cercou o trabalho de Pei no
Louvre.
Sob o solo
O projeto original para a Biblioteca Kennedy, em Boston,
incluía uma pirâmide de vidro;
até que ponto, perguntei, a pirâmide do Louvre foi um transplante dessa ideia?
"Tivemos muita dificuldade
em convencer os franceses a
aceitar a pirâmide. Eles imaginavam que eu desejasse importar um pedaço do Egito.
Foi quando observei que seu
obelisco também era egípcio e
que a Place des Pyramides ficava bem ao lado. Só depois disso
que aceitaram.
Mas, no caso do Louvre, a pirâmide é apenas um lado da
história. Não se pode construir
nada sobre o chão, pois é um local histórico, mas o projeto era
grande, com muitas galerias.
Não restava escolha a não ser uma construção subterrânea.
Mas, se uma obra tão grande
é realizada sob o solo, é preciso
que haja algo para que as pessoas vejam, no alto. A pirâmide
e as fontes são um convite para
que as pessoas vejam tudo o
que temos a lhes mostrar".
Emile Biasini, o funcionário
francês encarregado dos
"Grandes Trabalhos", considerou que Pei seria perfeito para a
tarefa porque, já que era chinês,
"tinha compreensão das civilização antigas" e, como norte-americano, "tinha um gosto pelo moderno".
Perguntei sobre isso a Pei:
após 75 anos nos EUA, ele ainda se sente chinês? "Jamais
deixei a China", responde rapidamente. "Minha família vive
lá há 600 anos. Mas minha arquitetura não tem nada de
conscientemente chinês, em
sentido algum. Sou um arquiteto ocidental."
Para um homem que se autodefine como "arquiteto ocidental" -e arquiteto, aliás, associado fortemente ao lado empresarial da profissão-, seus mais
elegantes edifícios talvez sejam
seus dois projetos pós-aposentadoria, e não ocidentais.
O museu de Suzhou evoca a
estrutura de madeira e a calma
serenidade dos templos budistas. Já a densa massa de pedra
do Museu de Arte Islâmica de
Doha se posiciona a meio caminho entre o Egito antigo, Bizâncio e a Bagdá modernista.
Será que esse último trabalho representa um esforço de lidar com uma cultura não ocidental, desenvolver uma nova linguagem? "Suponho que [o museu de Doha] possa ser definido como algo intermediário
um edifício do "Oriente Médio'", ri o arquiteto.
Os melhores projetos de Pei,
caracterizados por uma obsessão pela geometria, estão entre
os mais notáveis da era contemporânea. E ele continua a
trabalhar: os novos projetos incluem a escola e templo de Miho, no Japão.
Mas, em seus piores momentos, as estruturas que criou incorporam todos os defeitos da
megalomania modernista: da
Torre do Banco da China, em
Hong Kong, à Galeria Nacional
de Arte, em Washington, suas
obras dos anos 70 e 80 parecem
abarcar todo o planeta; e essas
duas décadas marcam o pior
momento do modernismo.
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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