São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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PONTO DE FUGA

La Demoiselle Élue

JORGE COLI
em Nova York

"Ponha os discos para tocar, e você tem que parar de fazer outra coisa. Você é obrigado a ouvir. Eles não servem como música de fundo. Eles exigem sua atenção. São eles que comandam." Isso foi dito por Brian Kellow, editor de "Opera News", sobre as gravações de Bidú Sayão. É exato. Bidú Sayão possuía uma voz de volume reduzido. Porém o timbre dourado e nítido, sem imperfeições, a qualidade da emissão, a clareza impecável da pronúncia e a inflexão justa consagrada a cada frase, a cada palavra, faziam com que seu canto dominasse os grandes auditórios. Suas gravações ao vivo, "piratas", que reaparecem em CD, testemunham, mesmo na precariedade técnica da época, a presença forte dessa voz pequena. Ela podia estar ao lado dos mais fenomenais estentores -Bjoerling ou Tibbett- que seu canto afirmava-se e impunha-se. Basta ouvi-la no "Rigoletto": o timbre imensamente escuro de Warren serve de fundo para a luminosidade de um canto feminino que nunca esmorece. No início de sua carreira, a voz de Bidú Sayão era leve, ágil e brilhante, com agudos fáceis: Rubem Braga escreveu uma deliciosa crônica sobre sua interpretação da cena da loucura de "Lucia di Lamermoor". Existem poucas gravações desse tempo. Depois de sua estréia na "Metropolitan Opera House", em 1937, sua voz amadureceu, assentando-se num registro médio mais espesso e muito belo, que ela manteria intacto. É sobretudo essa Bidú Sayão que nos chegou por meio dos discos.

LEGADO - A redescoberta de Bidú Sayão por um público mais largo é relativamente recente. Suas gravações ressurgem na Europa e nos EUA, em CD. São lições de canto e musicalidade, ou mais do que isso: momentos mágicos, quando a vida vale ser vivida. É preciso ouvir sua "Mélisande"; sua "Manon" dirigida por Beecham; sua "Bohème", ao lado de Di Stefano; seu Mozart, sob a regência de Walter ou de Krips; sua insuperável "Traviata"; os endiabrados "Barbiere", "Elisir" e "Don Pasquale". São várias as gravações de estúdio: dois recitais em CDs da Sony e toda a "La Bohème", em parceria com Tucker. Há os concertos de San Francisco (Eklipse). Há o disco recente, de VAI-USA, com transmissões radiofônicas nos EUA, mais vários discos de 78 rpm brasileiros, de 1930. Destes, alguns estavam transcritos num precioso LP da RCA, feito no Brasil há 40 anos, que já deveria ter sido mil vezes republicado em CD. Outros são inéditos. Bidú Sayão canta obras de seu tio, Alberto Costa, e Barrozo Netto, ótimos compositores, injustamente esquecidos pela musicologia e pelos intérpretes de hoje.

JOGO - O número de janeiro da revista francesa "Opera International" concedeu quatro distinções máximas ("Timbre de Platine") aos CDs de Bidú Sayão. É impossível escolher com justiça o que de melhor ela teria gravado, tudo é admirável. Mas eis uns favoritos, sem contar as óperas completas: "Ah! Non Credea", da "Sonnambula"; "La Demoiselle Élue", de Debussy, dirigida por Ormandy; as canções brasileiras harmonizadas por Ernani Braga. Ainda: o dueto de "Roméo et Juliette", de Gounod, junto a Bjoerling, em que ambos se transfiguram em infinitos matizes sonoros.

PAZ - A morte de Bidú Sayão é consoladora e, num certo sentido, alegra. É o término tranquilo de um longo percurso, em que uma trajetória musical elevada transcorreu sem falhas. Bidú Sayão era bonita e suave. Possuía grandes dons de atriz, como demonstram alguns filmes feitos por ela para a TV americana. Era incapaz de errar. Gravava de uma tacada, dizendo: "Se você não consegue fazer direito da primeira vez, ao repetir, só piora".



Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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