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Claro enigma
Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da
Violência da USP, diz que universidade tem
poucos dados para interpretar o fenômeno
do crime organizado em São Paulo e
também foi surpreendida pelos ataques
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Há anos dedicado ao
estudo da violência, o professor
Sérgio Adorno
lembra bem de
uma época em que podia entrar
nas prisões para fazer pesquisa.
"Há dez ou quinze anos, era
inimaginável que um professor
de uma universidade pudesse
ser seqüestrado ou atacado."
Hoje, sabe que, se voltar a freqüentar o sistema carcerário,
pode virar uma moeda de troca
valiosa na mão de uma facção
criminosa como o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Apesar de saber da capacidade de mobilização que o grupo
tem no Estado, o coordenador
do Núcleo de Estudos da Violência e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, ambos da
Universidade de São Paulo, disse que se surpreendeu com a
onda de violência provocada
pela facção na semana passada.
"A capacidade de se organizar para fora das grades, de
coordenar um processo de
queima de ônibus e ataque a
prédios e bancos e de desorganizar a vida na cidade para mim
foi uma grande surpresa."
Na semana passada, Adorno
atrasou seus compromissos
acadêmicos para atender à enxurrada de telefonemas de pessoas que o procuraram para
que tentasse explicar o que
aconteceu.
Abaixo, trechos da entrevista
que concedeu à Folha.
FOLHA - O sr. acha que os estereótipos que apontam o Rio como uma
cidade mais violenta do que São
Paulo vão mudar depois dos acontecimentos da semana passada?
SÉRGIO ADORNO - A idéia de que
o Rio é mais violento que São
Paulo é uma construção social
cujas explicações são as mais
variadas. O Rio tem a imagem
de ser a porta de entrada do
país, a cidade maravilhosa e,
por conta disso, é uma cidade
mais vulnerável. Mas a visão de
que São Paulo é menos violenta
nunca foi sustentada por nós,
pesquisadores.
FOLHA - Como o sr. explica o modo
como a sociedade, a classe média
particularmente, se amedrontou
diante da onda de violência?
ADORNO - A sociedade se surpreendeu com os acontecimentos porque eles foram, de fato,
ímpares. Eu, como pesquisador, sabia que o crime organizado estava nas prisões.
Dou um exemplo. Fiz muita
pesquisa em prisões há, mais
ou menos, dez ou 15 anos e costumava entrar no sistema penitenciário com muita tranqüilidade. Na época, era inimaginável que um professor universitário pudesse ser seqüestrado
ou atacado. Hoje é diferente.
Uma pessoa como eu virou
uma moeda de troca valiosa.
FOLHA - Como se deu a mudança
da dinâmica interna das prisões?
ADORNO - Um dos fatores importantes para explicá-la é a
mudança de perfil tanto das
pessoas que estão encarceradas
como dos agentes encarregados da disciplina e da ordem
nas instituições. Para mim não
era surpreendente a existência
do crime organizado. Mas o que
aconteceu foi, sim, surpreendente. Eu sempre imaginei que
eles pudessem mobilizar o sistema penitenciário e provocar
levantes simultâneos.
Mas a capacidade de se organizar para fora das grades e de
coordenar um processo de
queima de ônibus, ataque a prédios e bancos e de desorganizar
a vida na cidade para mim foi
uma grande surpresa.
Significa que chegamos a um
outro patamar na evolução da
criminalidade e da violência. E,
quando o cidadão se surpreende, isso acontece porque, para
ele, essa coisa do crime organizado estava distante. Era algo
que ficava lá nos bairros populares e que não tinha nada a ver
com quem mora num bairro de
classe média. Os eventos da semana passada deixaram claro
que isso está próximo e que tem
uma enorme capacidade de desorganizar a vida cotidiana de
quem quer que seja.
FOLHA - O sr. acha que pode ter havido um estopim simples para tudo
isso, mas que a coisa acabou superando até o que os criminosos achavam que podia acontecer?
ADORNO - É possível. O problema é que a gente não sabe. Temos pouca informação segura,
de análises ou pesquisas, sobre
o crime organizado em São
Paulo. Por várias razões. A
principal é que é muito difícil
fazer pesquisas nessa área. Para
isso, é preciso entrar dentro do
sistema, e isso é difícil.
A gente infere essas coisas a
partir do que é veiculado pela
imprensa e fazendo pesquisa
com jovens da periferia. Dá para verificar que aquele perfil de
criminalidade espontânea, em
torno de quadrilhas ou de gangues, por exemplo, é coisa do
passado.
A gente não sabe se esse comando é centralizado. Aparentemente deve ser. Mas não podemos ter certeza de como as
ordens são transmitidas. Possivelmente se usa celular, mas
não sabemos se é só isso. Tampouco sabemos como essas ordens são encadeadas, como
chegam à outra ponta e como
são obedecidas.
Recentemente, nós retomamos a leitura da CPI do Narcotráfico, que tem um capítulo só
sobre São Paulo. E basta ler
aquilo para ver que o crime organizado é uma realidade muito forte no Estado de São Paulo.
E por que as autoridades não
tiraram lições dessa CPI? Por
que não transformaram isso
em políticas? É algo que temos
de investigar. Precisamos cobrar a razão pela qual nada disso resultou em ações concretas.
FOLHA - Quão politizado o sr. diria
que é esse crime organizado?
ADORNO - Quando eu fazia pesquisa no passado, verificava
que o grau de escolaridade da
massa carcerária era baixo. E
que correspondia à baixa escolaridade do cidadão brasileiro.
O que verificamos nos últimos dez anos? Aumentou a escolaridade do cidadão brasileiro e dos que estão no crime
também. Hoje eles são mais escolarizados, mais preparados e
estão mais conectados com o
que se passa na sociedade além
de seu próprio bairro. Eles
lêem jornais e assistem à TV.
Por isso, são mais politizados,
têm capacidade de entender
sua força.
FOLHA - Como o sr. acha que a população menos favorecida via o PCC
e como o vê hoje?
ADORNO - Tenho dúvidas de
que o PCC tivesse apoio dos
mais pobres. Acho que o crime
organizado, para essa população, é também algo opressivo.
As pessoas na periferia não podem circular livremente e, se
existe a suspeita de que possam
ter tido contato com alguém
que possa fazer algum tipo de
delação, são executadas.
As pessoas mais pobres têm
medo de falar, é por isso que
não se consegue pesquisar o
crime organizado. Porque as
pessoas não falam. Elas sabem
que falar é decretar a sentença
de morte.
FOLHA - O sr. acha que os filmes recentes que tratam da violência nas
grandes cidades e os fenômenos do
rap e do hip hop de alguma forma
contribuem para uma glamourização da violência?
ADORNO - Eu tenho dúvidas sobre se essas mensagens têm
mesmo um poder de fogo sobre
as pessoas. Sempre acho que
elas elaboram as mensagens, as
informações e têm uma capacidade de autocrítica. Essa idéia
de imaginar que os mais pobres
são absolutamente incapazes
de pensar, por exemplo, é um
equívoco. Eles podem não pensar exatamente com instrumentos sofisticados de argumentação, mas são capazes de
fazer críticas contundentes.
FOLHA - Mas e a classe média?
ADORNO - A classe média trata
isso como mercadoria a ser
consumida. Nós sabemos que o
tráfico funciona porque há um
mercado consumidor, as classes média e média alta. As pessoas não entendem que, no momento em que estão consumindo a sua droga ou fumando seu
cigarro de maconha, na outra
ponta tem alguém morrendo.
É como se não houvesse nenhuma solidariedade com as
vítimas. Acho que a classe média tem uma visão de distanciamento e de não-identidade
com os problemas da sociedade
na qual está vivendo. Ela só fica
assustada quando enfrenta essa situação e percebe que a realidade é muito mais grave do
que imagina.
Não há solidariedade com
aquelas pessoas que, na periferia, vivem numa situação de
opressão ou do crime organizado ou da polícia. Acha-se que lá
é o lugar do crime mesmo e que
a polícia tem que ir lá e colocar
ordem para garantir que ela
possa circular. Evidentemente
que o direito à segurança é um
direito de todos. Mas você não
pode ter mais segurança para
uns em detrimento da segurança de outros.
FOLHA - O sr. acha que faltaram
mobilizações contra a violência depois do episódio?
ADORNO - Sim, há uma certa
acomodação. Hoje há muitos
grupos mobilizados e surgiram
muitas associações. Não acho
que esta seja uma sociedade absolutamente passiva. É só olhar
para o que era esse tema dez
anos atrás e o que é hoje. Mas
eu esperava, nesse momento,
uma reação mais forte. E que as
pessoas dissessem: "Basta com
essa política porque nós já conhecemos o resultado dela".
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