São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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Questão de ordem

Para o economista e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa, é preciso reequacionar com urgência o debate sobre os direitos humanos

SERGIO TORRES
DA SUCURSAL DO RIO

Para o economista Carlos Lessa, 69, "o Brasil está apodrecendo". Em "estado de indignação", o ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro credita os recentes distúrbios de São Paulo à política econômica dos últimos governos, que não priorizaram a questão social e a geração de emprego.


O preso tem direitos humanos, mas a população também; tem direito a andar na rua e não receber uma bala na cabeça


Na opinião de Lessa, autor de "O Rio de Todos os Brasis" (editora Record), São Paulo irá superar o Rio de Janeiro no imaginário popular como cidade mais violenta do país. O que vai sobrar para o Rio em termos de imaginário, ele afirma que não sabe, mas destaca a capacidade do carioca de fazer festas ao ar livre, transformando um pouco do espaço público em casa própria. Defende a contratação de chefes do PCC por empresas e bancos. Os criminosos, disse, demonstraram competência gerencial ao planejar e coordenar rebeliões e ataques. "São os executivos do ano."

 

FOLHA - O poder do PCC o surpreendeu?
CARLOS LESSA - Em termos de padrões organizacionais, acho que o PCC está dando um show de bola. São os executivos do ano. Coordenar ao mesmo tempo rebeliões em 42 ou 43 presídios [totalizaram 83, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária paulista] e produzir durante dois ou três dias dezenas e dezenas de atentados. É uma coordenação absolutamente espetacular, uma liderança de primeira linha.

FOLHA - Qual é a questão central?
LESSA - O centro do problema brasileiro é o emprego. Porque a tragédia brasileira é a de uma juventude que não está se socializando com a ética do trabalho, porque não tem emprego para começar. A visão que ela tem é dos pais fazendo um esforço brutal e vivendo muito mal. Então, a sedução do crime é imensa. Uma sociedade que deixa sua juventude desempregada é uma sociedade que está semeando violência.

FOLHA - Por que as coisas chegaram a esse ponto? LESSA - Porque o Brasil está apodrecendo. Estou em estado de indignação. Quando começa a haver crise de segurança no Estado, estamos nos aproximando do caos.

FOLHA - Como os órgãos de segurança deveriam reagir?
LESSA - Essa idéia dos direitos humanos está mal interpretada no Brasil. O preso tem direitos humanos, mas a população também tem. Tem direito a andar na rua e não receber uma bala na cabeça, a trabalhar e voltar para casa com uma certa normalidade. Há uma permissividade enorme.

FOLHA - No imaginário popular, o Rio era o destaque do Brasil em termos de violência. Isso mudará?
LESSA - Não sei. Acho que agora São Paulo vai ser a cidade mais violenta do Brasil. Ganhou o título de uma das mais violentas do mundo, talvez Bagdá esteja na frente.

FOLHA - Mas e o Rio?
LESSA - Cai para segundo plano. São Paulo sempre lidera o Brasil. É assim: o Rio começa, São Paulo copia e, como tem muito mais dinheiro, supera. Qualquer dia o Carnaval de São Paulo será maior que o do Rio. Qualquer hora um paulista compra o passe da Mangueira.

FOLHA - O sr. escreveu em "O Rio de Todos os Brasis" que o estado de espírito festivo do carioca surge a qualquer provocação. Ainda é assim, mesmo com a perda da auto-estima que o sr. também identifica em seu livro?
LESSA - Tenho certeza disso. Qualquer iniciativa no Rio em praça aberta é um sucesso. Às vezes até sucesso demais.

FOLHA - Por quê?
LESSA - Pensei muito para entender o que seria ser carioca e estou convencido de que é considerar o Estado público uma extensão do Estado privado. Algo como se as pessoas não tivessem medo da praça. Uma espécie de continuação da casa.

FOLHA - Mas, com a violência, não ocorre a perda desse espírito "extrovertido" do carioca?
LESSA - Você está perdendo esse espírito é por equipamentos como shoppings, residências em condomínios fechados. Isso tudo vai destruindo o que era essa coisa da rua, entende? Se bem que há coisas muito positivas acontecendo. Os [botecos] pés-sujos estão se recuperando, os blocos de rua estão se filiando de novo a um Carnaval não-oficial, de iniciativa popular. O que está acontecendo na Lapa [centro do Rio] é deslumbramento, um renascimento da melhor qualidade. Está acontecendo também nas imediações da praça Mauá [centro]. Eu acho que há uma força, um vigor nessa tradição de cordialidade urbana.

FOLHA - O que o sr. acha de os policiais estarem matando supostos marginais, aparentemente em uma represália?
LESSA - Não leve a mal, mas quando o Estado está sob risco, é o único jeito. As pessoas estão em pânico. Nenhuma sociedade pode suportar esse processo de desmantelamento das instituições públicas.
Sem contar que as prioridades brasileiras são um escândalo. Como você faz um plebiscito idiota sobre uso ou não uso de armas e gasta mais do que em uma prisão de segurança máxima? Como você manda um cosmonauta para a Lua e deixa a Varig quebrar?


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