São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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Ponto de fuga - Jorge Coli

Uma luz feita de sombras

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A exposição é fora do comum pelo grande número de obras, por reunir telas muito raras, de museus menores e de coleções particulares: "Goya, Profeta da Modernidade". Ficará até outubro na Alte Nationalgalerie de Berlim, museu consagrado à arte do século 19, cujo aspecto de descomunal templo grego erguido sobre um pódio faz pensar num valhala neoclássico: Hitchcock sentiu bem essa imponência meio esmagadora e se serviu dela em "Cortina Rasgada". Mas isso é outra história. O que interessa agora é a mostra "Goya".
Um grande recinto recebe os visitantes. Em suas paredes estão os assim chamados "cartões", primeiras encomendas importantes começadas quando o artista não completara ainda 30 anos. Pinturas destinadas às tecelagens reais, elas serviam de modelo para guiar minuciosamente os tecelões, que seguiam com atenção as nuances propostas. Os formatos são grandes, já que os cartões têm, por princípio, o mesmo tamanho da tapeçaria final. Na sala da mostra berlinense alternam-se os protótipos e as transcrições em tecido.
Tudo banha em luz tranqüila, observada nas suas carícias, sem excessos, jovem e aérea. "O Guarda-Sol", de 1777, é uma galanteria à moda do século 18, em que a leve penumbra trazida pela sombrinha verde faz com que azuis, rosas, amarelos e vermelhos se destaquem em brilhos comedidos. Goya será sempre fiel à pincelada voluptuosa e livre do século em que nasceu e a trará para os tempos do romantismo. Mas saberá pervertê-la, transformando-a numa fábrica de monstros.

Tropismos
O título da mostra "Goya" em Berlim é genérico e seduz o público. Goya, profeta sem dúvida do romantismo, do expressionismo, do surrealismo, da psicanálise, da abstração lírica e do que mais se quiser. No entanto a exposição não cumpre sua promessa, que é a de articular o pintor com o futuro das artes. A denominação enganosa faz também esquecer de um ponto importante: Goya, antes de ser profeta da modernidade, é Goya. Um artista de dons excepcionais que fez sua pintura "pensar" os dramas mais profundos e terríveis dos homens modernos e dos homens de sempre. Ao contrário do que ocorreu em Madri, Boston e Nova York, com a exposição "Goya e o Espírito das Luzes" (1989), de alvo tão preciso, tão bem concebida, capaz de estabelecer as ramificações mais finas entre o criador e as ideologias de seu tempo, a mostra de Berlim parece girar meio sem rumo.
O curador quis opor, como declarou, o mundo sombrio e o mundo radiante que lhe parecem independentes um do outro. Ora, basta atentar. Mesmo nas obras de juventude, mesmo naquelas vivas e brilhantes pela necessidade da encomenda, como os modelos para tapeçarias, o paraíso de prazeres é habitado por inquietações. Um pedreiro ferido ou morto vem carregado diante de andaimes; mulheres, jovens e velhas, sentadas diante de uma carruagem, têm os olhos feitos com dois pontos negros, fixos e intimidantes. Moças fazem saltar nos ares um boneco perturbador, simulacro e vítima. Cães de caça atacam um javali e assustam pela violência. Mesmo no colo da moça delicada com o guarda-sol aninha-se um cachorrinho, curiosa mancha negra que rompe com o esplendor das cores.

Sexo
Goya, sem ambigüidades, não disfarça o erotismo. Está longe, porém, dos requintes escabrosos que a França produziu sob Luís 15. Seu enfoque é direto, quase brutal. Ama profundamente a beleza e a juventude das mulheres. É esse o verdadeiro tema luminoso que ele conduz até o fim de sua vida: a última das grandes obras-primas é "A Leiteira de Bordéus", de 1827. Nela, a suave mocidade do modelo impõe-se em meio a uma harmonia de breves pinceladas azuis. O pintor tinha então 81 anos.

Peles
Nem a "Leiteira", nem as "Majas", nua e vestida, encontram-se na exposição de Berlim. Estão lá alguns retratos femininos sensuais, e "A Aguadeira", de Budapeste: é pouco para uma contraposição entre luz e sombra. A mostra se inclina mais, muito mais, para os pesadelos. Reúne bruxas, loucos nus, pestilentos em agonia, almas monstruosas, toda uma festa infernal de negrores.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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