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Ponto de fuga - Jorge Coli
Uma luz feita de sombras
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A exposição é fora do comum pelo
grande número de obras, por reunir telas muito raras, de museus
menores e de coleções particulares:
"Goya, Profeta da Modernidade". Ficará
até outubro na Alte Nationalgalerie de Berlim, museu consagrado à arte do século 19,
cujo aspecto de descomunal templo grego
erguido sobre um pódio faz pensar num
valhala neoclássico: Hitchcock sentiu bem
essa imponência meio esmagadora e se serviu dela em "Cortina Rasgada". Mas isso é
outra história. O que interessa agora é a
mostra "Goya".
Um grande recinto recebe os visitantes.
Em suas paredes estão os assim chamados
"cartões", primeiras encomendas importantes começadas quando o artista não
completara ainda 30 anos. Pinturas destinadas às tecelagens reais, elas serviam de
modelo para guiar minuciosamente os tecelões, que seguiam com atenção as nuances propostas. Os formatos são grandes, já
que os cartões têm, por princípio, o mesmo
tamanho da tapeçaria final. Na sala da mostra berlinense alternam-se os protótipos e
as transcrições em tecido.
Tudo banha em luz tranqüila, observada
nas suas carícias, sem excessos, jovem e aérea. "O Guarda-Sol", de 1777, é uma galanteria à moda do século 18, em que a leve penumbra trazida pela sombrinha verde faz
com que azuis, rosas, amarelos e vermelhos
se destaquem em brilhos comedidos. Goya
será sempre fiel à pincelada voluptuosa e livre do século em que nasceu e a trará para
os tempos do romantismo. Mas saberá pervertê-la, transformando-a numa fábrica de
monstros.
Tropismos
O título da mostra "Goya" em Berlim é
genérico e seduz o público. Goya, profeta
sem dúvida do romantismo, do expressionismo, do surrealismo, da psicanálise, da
abstração lírica e do que mais se quiser. No
entanto a exposição não cumpre sua promessa, que é a de articular o pintor com o
futuro das artes. A denominação enganosa
faz também esquecer de um ponto importante: Goya, antes de ser profeta da modernidade, é Goya. Um artista de dons excepcionais que fez sua pintura "pensar" os dramas mais profundos e terríveis dos homens
modernos e dos homens de sempre. Ao
contrário do que ocorreu em Madri, Boston e Nova York, com a exposição "Goya e
o Espírito das Luzes" (1989), de alvo tão
preciso, tão bem concebida, capaz de estabelecer as ramificações mais finas entre o
criador e as ideologias de seu tempo, a mostra de Berlim parece girar meio sem rumo.
O curador quis opor, como declarou, o
mundo sombrio e o mundo radiante que
lhe parecem independentes um do outro.
Ora, basta atentar. Mesmo nas obras de juventude, mesmo naquelas vivas e brilhantes pela necessidade da encomenda, como
os modelos para tapeçarias, o paraíso de
prazeres é habitado por inquietações. Um
pedreiro ferido ou morto vem carregado
diante de andaimes; mulheres, jovens e velhas, sentadas diante de uma carruagem,
têm os olhos feitos com dois pontos negros,
fixos e intimidantes. Moças fazem saltar
nos ares um boneco perturbador, simulacro e vítima. Cães de caça atacam um javali
e assustam pela violência. Mesmo no colo
da moça delicada com o guarda-sol aninha-se um cachorrinho, curiosa mancha
negra que rompe com o esplendor das cores.
Sexo
Goya, sem ambigüidades, não disfarça o
erotismo. Está longe, porém, dos requintes
escabrosos que a França produziu sob Luís
15. Seu enfoque é direto, quase brutal. Ama
profundamente a beleza e a juventude das
mulheres. É esse o verdadeiro tema luminoso que ele conduz até o fim de sua vida: a
última das grandes obras-primas é "A Leiteira de Bordéus", de 1827. Nela, a suave
mocidade do modelo impõe-se em meio a
uma harmonia de breves pinceladas azuis.
O pintor tinha então 81 anos.
Peles
Nem a "Leiteira", nem as "Majas", nua e
vestida, encontram-se na exposição de Berlim. Estão lá alguns retratos femininos sensuais, e "A Aguadeira", de Budapeste: é
pouco para uma contraposição entre luz e
sombra. A mostra se inclina mais, muito
mais, para os pesadelos. Reúne bruxas, loucos nus, pestilentos em agonia, almas
monstruosas, toda uma festa infernal de
negrores.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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