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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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Com enfoques distintos, três estudos discutem a crescente interação da fotografia brasileira com as outras artes, como cinema e mídias digitais, no século 20

Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça

Irene Machado
especial para a Folha

Ninguém duvida de que a fotografia tenha inaugurado o estágio de produção técnica da imagem na cultura. O duro é reconhecer que esse empreendimento não livrou as imagens fotográficas das ameaças trazidas por dispositivos culturais de outra natureza, caso do cinema, dos meios eletrônicos audiovisuais e das mídias digitais. Como a fotografia sobreviveu a tudo isso e quais foram suas estratégias de sobrevivência nesse contexto? Essa é uma pergunta que tem despertado diferentes respostas. Um rápido olhar sobre a produção do século 20 parece indicar que a fotografia conseguiu sobreviver graças à capacidade de superação dos limites de sua própria condição técnica, expandindo o raio de sua ação para além das possibilidades previstas pelo meio. Quer dizer, o que temos hoje são fotografias.

Teoria, história, criação
De um modo bastante genérico, esse é o eixo temático que orienta três publicações recentes sobre o assunto: "Fotografia e Viagem - Entre a Natureza e o Artifício", de Antonio Fatorelli, "Labirinto e Identidades - Panorama da Fotografia no Brasil (1946-98)", de Rubens Fernandes Junior, e "O Espírito dos Lugares", de Eduardo Muylaert. Três ensaios que discutem a produção da imagem bem como o pensamento sobre ela a partir de enfoques diferenciados. Fatorelli situa-se numa perspectiva teórico-analítica, Fernandes Junior investe no realinhamento histórico e Muylaert exercita o ensaio criativo. Em seu trabalho de sistematização crítica, Fatorelli acolhe tanto as experiências de artistas que exploraram as possibilidades técnicas do meio quanto as intervenções que extrapolam tais contextos. Examina os procedimentos que colocam a fotografia no contexto mais amplo das artes visuais e também das técnicas de observação não limitadas à percepção de um campo visual geometricamente configurado. Valoriza, assim, as interferências sobre a materialidade da fotografia, que, em muitos casos, tangenciam campos sensoriais muito mais próximos do tato do que da visão. Considera muito positivamente as experiências que forçam a máquina a desempenhar tarefas para as quais não fora prevista ou aqueles atos de radicalidade em que a intermediação da câmera é simplesmente descartada. Chega assim a alguns aspectos que podem ser entendidos como balizas da produção de fotografias na contemporaneidade: descentramento, desconexão com o aqui e agora, intercâmbio com outros suportes e, finalmente, tendência à virtualização.

Panorama modelar
Dá para perceber que Fatorelli não se intimida em criticar o pensamento que concebeu a linguagem fotográfica como invariável, determinada pelo dispositivo, pelo processamento técnico advindo do modelo geométrico e óptico da câmera e por um tipo de percepção perspectivada. Pena que ele não tenha se preocupado em limpar de seu texto as referências que serviram de fundamento teórico a sua tese acadêmica, mas que são dispensáveis ao exercício de leitura das fotografias e de sua prática.
Reforçando a idéia de que o pensamento contemporâneo não está voltado para a fotografia, mas para fotografias, Fernandes Junior enfrenta o desafio de mapear a produção brasileira de modo a compor um panorama modelar de nossas identidades. Embora a estratégia básica seja a reunião dos trabalhos produzidos em períodos historicamente determinados, o mapeamento propõe um desenho em que as linhas produtivas de diferentes gerações de fotógrafos sejam fundamentais para a configuração de nossas etnias e paisagens.
Se a idéia era explorar os vínculos da fotografia com as artes -intenção reforçada nas análises dos trabalhos selecionados para a edição-, o resultado foi o predomínio do fotojornalismo com seus flagrantes e da fotografia social de caráter documental. Arte e reportagem fotográfica receberam o mesmo grau de importância. Com isso, os trabalhos de intervenção nos códigos, sobre a materialidade da foto e as instalações, acabam se acomodando muito mal no conjunto da obra. Eles pouco contribuem para legitimação de uma visualidade brasileira condizente com a noção identitária que se pretende firmar. Livre de qualquer compromisso teórico-analítico, Muylaert explora os deslocamentos e se confunde com o viajante interessado em apreender o espírito dos lugares e encontrar a expressão plástica que lhe parece conveniente. As cidades do mundo são redimensionadas pelo registro em preto-e-branco de grandes espaços solitários, caminhos, estradas, pontes, trilhos, tomado de ângulos inusitados, de modo a desenhar sombras, brumas, luminosidades na superfície granulada do papel. É como se o espírito dos lugares só adquirisse corpo com a mobilidade e a variedade da luz. As paisagens noturnas, ao se oferecerem como um negativo fotográfico da cidade, se compõem como metáforas dos fluxos urbanos, das obras arquitetônicas, dos monumentos. Mesmo na paisagem solar, são o negro e a sombra os tons predominantes. A cidade se dissolve em grafismos, em pontilhismos, em granulações de puro abstracionismo.

Descartes
Pesadas as diferenças de focalização, os três livros prestam sua contribuição à leitura de imagens fotográficas dentro do processo de produção na cultura do século 20.
O leitor mais exigente certamente saberá valorizar o esforço empreendido no redesenho das soluções plásticas e conceituais que as fotografias procuram desenvolver. Saberá, do mesmo modo, descartar as considerações teóricas que em nada contribuem para o processo de leitura e não fazem mais do que revelar comprometimentos com vertentes teóricas que o pensamento acadêmico insiste em preservar, caso do enquadramento histórico da fotografia na modernidade e no pós-modernismo. Claro que nada disso ajuda a compreender, de modo consequente, as fotografias e seu estado de expansão.


Irene Machado é professora do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autora de, entre outros, "Escola de Semiótica" (Ateliê Editorial).

Fotografia e Viagem
180 págs., R$ 38,00 de Antonio Fatorelli. Ed. Relume-Dumará (travessa Juraci, 37, CEP 21020-220, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2564-6869).

Labirinto e Identidades
232 págs., R$ 69,00 de Rubens Fernandes Junior. Centro Universitário Maria Antonia/ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3218-1444).

O Espírito dos Lugares
200 págs., R$ 80,00 de Eduardo Muylaert. Ed. Terceiro Nome (r. João Felipe Silva, 52, CEP 04638-030, SP, tel. 0/xx/11/ 5044-5540).


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