|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Reedição de obra de Afonso Taunay, publicada originalmente nos anos 20,
e lançamento de revista põem em evidência os paradoxos de São Paulo
A desconstrução da cidade de pau e pedra
A vila modesta descrita por Taunay dá lugar a uma metrópole que está longe de proporcionar oportunidades, bem-estar ou qualidade de vida para a maioria de seus habitantes
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
A proximidade da comemoração
do 450º aniversário da cidade de
São Paulo, em janeiro de 2004,
tem já produzido uma certa movimentação das editoras, que nos próximos meses deverão colocar nas livrarias
um número expressivo de edições e reedições dedicadas aos mais variados aspectos da cidade e da vida de seus habitantes. Há, é verdade, quem não enxergue com bons olhos essa enxurrada de
escritos que costumam aparecer em ocasiões comemorativas, parte deles, como
aprendemos em 2000, de qualidade mais
do que duvidosa.
Todavia é por vezes somente em tais situações que podemos, num mercado
editorial limitado como o brasileiro, ver
de volta às estantes estudos importantes
há muito desaparecidos ou tomar contato com pesquisas recentes de qualidade.
É, muito provavelmente, graças a esse
ímpeto comemorativo que a editora Paz
e Terra, dentro da coleção intitulada
"São Paulo", acaba de reeditar duas
obras do historiador Afonso de Escragnolle Taunay que andavam bastante esquecidas: "São Paulo nos Primeiros
Anos - 1554-1601" (1920) e "São Paulo no
Século 16" (1921). A atual edição, a primeira reedição desde o lançamento, traz
os dois escritos num único volume, que
conta com uma sucinta, mas instrutiva,
introdução da historiadora Laima Mesgravis e com bons índices onomásticos.
Cidade tolerante
Os livros, ainda
que independentes, são complementares, e isso não somente em razão da similaridade temática -as origens de São
Paulo- e da coincidência do recorte
temporal -ambos adotam 1554 como
ponto de partida e vão até o início do século 17. Taunay optou por apresentar
aos seus leitores, com uma lucidez distante da ingenuidade teórica que uma
certa crítica lhe atribui, duas perspectivas dos "tempos primevos" da cidade
fundada por Anchieta.
A primeira, contida em "São Paulo dos
Primeiros Anos", é a perspectiva administrativa, construída sobretudo por
meio de uma cuidadosa exploração das
"Atas" e "Registro Geral" da Câmara de
São Paulo. A cidade que emerge do curioso quebra-cabeça montado pelo pesquisador a partir de tais documentos é
uma cidade pobre, sem prédio da Câmara, sem cadeia, sem moeda corrente (o
escambo era a norma) e sem nem mesmo uma igreja matriz; uma cidade rústica, muito tolerante com os homens de
passado incerto, e iletrada, cujas preocupações centrais eram encontrar meios
para continuar sobrevivendo e proteger-se dos selvagens.
A segunda perspectiva traçada por
Taunay, agora em "São Paulo no Século
16", se serve em larga medida, mas não
só, da correspondência dos padres da
Companhia de Jesus. A dureza dos primeiros tempos é agora narrada pelos
discípulos de Loyola, dureza devida, sobretudo, aos esforços demandados pela
catequese dos índios e pela reconversão
dos colonos -que por vezes se comportavam de maneira menos cristã que o selvagem. Todavia não é somente o "trabalho insano" de converter e catequizar
que abarca essa segunda perspectiva.
"Pés e mãos" dos paulistas
Cruzando documentos diversos (atas, crônicas, cartas...), o historiador, depois de
traçar extensas considerações sobre o
"inevitável" domínio das "raças superiores" sobre as "inferiores", descreve alguns lances do longo e violento processo
de combate, escravização e extermínio
dos índios -"os pés e as mãos" dos paulistas, mas também os seus "inimigos irreconciliáveis".
Ambas as perspectivas, é bom que se
diga, são pintadas com cores que não escondem o amor de Taunay por São Paulo, amor que o leva, ao longo dos dois livros, a tecer comentários do seguinte
teor: "Pitoresca a contraposição da sua
vida quinhentista, tão rudimentar, e da
existência da capital opulenta hodierna,
cheia de convicção da magnitude do
porvir que se lhe antolha (...). Nada mais
magnificente do que este contraste, sobretudo se atendermos que, exatamente
então, evoluía o arraial piratiningano para ser o ninho daqueles que haviam de
arrancar ao castelhano mais da metade
dessa enorme área, a do Brasil atual".
A propósito dessa crença na "opulência" e na "magnitude do porvir" de São
Paulo, tão caro à geração de Taunay, um
outro lançamento, que tem como eixo de
reflexão a cidade na entrada do século 21,
traz um contraponto interessante a tais
certezas. Trata-se do número 47 da revista "Estudos Avançados", "São Paulo 1
-Trabalho, Violência e Água", que contém a primeira parte de um dossiê dedicado à cidade. A vila modesta, em processo de construção, descrita por Taunay
dá lugar a uma metrópole não propriamente pobre, mas que, como nos "tempos primevos" -com o perdão do anacronismo- , está longe de ser uma terra
que proporciona oportunidades, bem-estar ou qualidade de vida para a maioria
de seus habitantes.
É o que se constata, por exemplo, no
artigo "És o Avesso do Avesso", de Walter Barelli, dedicado à análise das transformações do mercado de trabalho da cidade ao longo das duas últimas décadas.
Um mercado, como bem demonstra o
ensaio, em crescente processo de deterioração, cada vez mais exigente e, a curto ou médio prazos, incapaz de absorver
parte significativa da força de trabalho
disponível.
Partilha desigual
A incapacidade
da "cidade" de atender às necessidades
mínimas de grandes contingentes de sua
população perpassa também o ensaio
"Homicídio e Violação dos Direitos Humanos em São Paulo", de Nancy Cardia,
Sérgio Adorno e Frederico Poleto. Os autores procuram mapear aí as complexas
relações existentes entre populações desprovidas de redes de proteção social
-regiões da cidade com "concentração
de carências"- e o aumento da exposição à violência. É, ainda, a partilha desigual de recursos que reencontramos na
entrevista do geólogo Gerôncio Albuquerque Rocha, que traça um amplo panorama do problema da água na cidade e
salienta a necessidade de uma gestão de
tais recursos que leve de fato em conta a
sua "função social".
Essa primeira parte do dossiê São Paulo, para além dos ensaios contidos dentro dos três grandes eixos temáticos da
revista (trabalho, violência e água), traz
também estudos sobre a memória paulistana, sobre a legislação urbana e sobre
a urbanização de favelas.
Em suas páginas o leitor encontrará,
sem dúvida, uma cidade bem menos heróica e confiante do que a pintada por
Taunay, uma cidade, ainda que ciente e
orgulhosa de sua grandeza, com pouco
tempo e disposição para reinventar as
tais glórias do passado bandeirante e, a
partir daí, como se tentou fazer outrora,
projetar o seu futuro.
Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca
(SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de
Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da
Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio).
São Paulo nos Primeiros Anos - 1554-1601/
São Paulo no Século 16
460 págs., R$ 28,00
de Afonso de Escragnolle Taunay. Ed. Paz e Terra
(rua do Triunfo, 177, CEP 01212-010, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/11/3337-8399).
Estudos Avançados nº 47
310 págs., R$ 47,00
Instituto de Estudos Avançados da USP (av. Prof.
Luciano Gualberto, travessa J, 374, sala 15, Cidade
Universitária, CEP 05508-900, São Paulo, SP, tel.
0/xx/11/ 3091- 3919).
Texto Anterior: Prosa de fato e ficção Próximo Texto: O arquivista da cultura Índice
|