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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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Reedição de obra de Afonso Taunay, publicada originalmente nos anos 20, e lançamento de revista põem em evidência os paradoxos de São Paulo

A desconstrução da cidade de pau e pedra

A vila modesta descrita por Taunay dá lugar a uma metrópole que está longe de proporcionar oportunidades, bem-estar ou qualidade de vida para a maioria de seus habitantes

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

A proximidade da comemoração do 450º aniversário da cidade de São Paulo, em janeiro de 2004, tem já produzido uma certa movimentação das editoras, que nos próximos meses deverão colocar nas livrarias um número expressivo de edições e reedições dedicadas aos mais variados aspectos da cidade e da vida de seus habitantes. Há, é verdade, quem não enxergue com bons olhos essa enxurrada de escritos que costumam aparecer em ocasiões comemorativas, parte deles, como aprendemos em 2000, de qualidade mais do que duvidosa. Todavia é por vezes somente em tais situações que podemos, num mercado editorial limitado como o brasileiro, ver de volta às estantes estudos importantes há muito desaparecidos ou tomar contato com pesquisas recentes de qualidade. É, muito provavelmente, graças a esse ímpeto comemorativo que a editora Paz e Terra, dentro da coleção intitulada "São Paulo", acaba de reeditar duas obras do historiador Afonso de Escragnolle Taunay que andavam bastante esquecidas: "São Paulo nos Primeiros Anos - 1554-1601" (1920) e "São Paulo no Século 16" (1921). A atual edição, a primeira reedição desde o lançamento, traz os dois escritos num único volume, que conta com uma sucinta, mas instrutiva, introdução da historiadora Laima Mesgravis e com bons índices onomásticos.

Cidade tolerante
Os livros, ainda que independentes, são complementares, e isso não somente em razão da similaridade temática -as origens de São Paulo- e da coincidência do recorte temporal -ambos adotam 1554 como ponto de partida e vão até o início do século 17. Taunay optou por apresentar aos seus leitores, com uma lucidez distante da ingenuidade teórica que uma certa crítica lhe atribui, duas perspectivas dos "tempos primevos" da cidade fundada por Anchieta. A primeira, contida em "São Paulo dos Primeiros Anos", é a perspectiva administrativa, construída sobretudo por meio de uma cuidadosa exploração das "Atas" e "Registro Geral" da Câmara de São Paulo. A cidade que emerge do curioso quebra-cabeça montado pelo pesquisador a partir de tais documentos é uma cidade pobre, sem prédio da Câmara, sem cadeia, sem moeda corrente (o escambo era a norma) e sem nem mesmo uma igreja matriz; uma cidade rústica, muito tolerante com os homens de passado incerto, e iletrada, cujas preocupações centrais eram encontrar meios para continuar sobrevivendo e proteger-se dos selvagens. A segunda perspectiva traçada por Taunay, agora em "São Paulo no Século 16", se serve em larga medida, mas não só, da correspondência dos padres da Companhia de Jesus. A dureza dos primeiros tempos é agora narrada pelos discípulos de Loyola, dureza devida, sobretudo, aos esforços demandados pela catequese dos índios e pela reconversão dos colonos -que por vezes se comportavam de maneira menos cristã que o selvagem. Todavia não é somente o "trabalho insano" de converter e catequizar que abarca essa segunda perspectiva.

"Pés e mãos" dos paulistas
Cruzando documentos diversos (atas, crônicas, cartas...), o historiador, depois de traçar extensas considerações sobre o "inevitável" domínio das "raças superiores" sobre as "inferiores", descreve alguns lances do longo e violento processo de combate, escravização e extermínio dos índios -"os pés e as mãos" dos paulistas, mas também os seus "inimigos irreconciliáveis". Ambas as perspectivas, é bom que se diga, são pintadas com cores que não escondem o amor de Taunay por São Paulo, amor que o leva, ao longo dos dois livros, a tecer comentários do seguinte teor: "Pitoresca a contraposição da sua vida quinhentista, tão rudimentar, e da existência da capital opulenta hodierna, cheia de convicção da magnitude do porvir que se lhe antolha (...). Nada mais magnificente do que este contraste, sobretudo se atendermos que, exatamente então, evoluía o arraial piratiningano para ser o ninho daqueles que haviam de arrancar ao castelhano mais da metade dessa enorme área, a do Brasil atual". A propósito dessa crença na "opulência" e na "magnitude do porvir" de São Paulo, tão caro à geração de Taunay, um outro lançamento, que tem como eixo de reflexão a cidade na entrada do século 21, traz um contraponto interessante a tais certezas. Trata-se do número 47 da revista "Estudos Avançados", "São Paulo 1 -Trabalho, Violência e Água", que contém a primeira parte de um dossiê dedicado à cidade. A vila modesta, em processo de construção, descrita por Taunay dá lugar a uma metrópole não propriamente pobre, mas que, como nos "tempos primevos" -com o perdão do anacronismo- , está longe de ser uma terra que proporciona oportunidades, bem-estar ou qualidade de vida para a maioria de seus habitantes. É o que se constata, por exemplo, no artigo "És o Avesso do Avesso", de Walter Barelli, dedicado à análise das transformações do mercado de trabalho da cidade ao longo das duas últimas décadas. Um mercado, como bem demonstra o ensaio, em crescente processo de deterioração, cada vez mais exigente e, a curto ou médio prazos, incapaz de absorver parte significativa da força de trabalho disponível.

Partilha desigual
A incapacidade da "cidade" de atender às necessidades mínimas de grandes contingentes de sua população perpassa também o ensaio "Homicídio e Violação dos Direitos Humanos em São Paulo", de Nancy Cardia, Sérgio Adorno e Frederico Poleto. Os autores procuram mapear aí as complexas relações existentes entre populações desprovidas de redes de proteção social -regiões da cidade com "concentração de carências"- e o aumento da exposição à violência. É, ainda, a partilha desigual de recursos que reencontramos na entrevista do geólogo Gerôncio Albuquerque Rocha, que traça um amplo panorama do problema da água na cidade e salienta a necessidade de uma gestão de tais recursos que leve de fato em conta a sua "função social".
Essa primeira parte do dossiê São Paulo, para além dos ensaios contidos dentro dos três grandes eixos temáticos da revista (trabalho, violência e água), traz também estudos sobre a memória paulistana, sobre a legislação urbana e sobre a urbanização de favelas.
Em suas páginas o leitor encontrará, sem dúvida, uma cidade bem menos heróica e confiante do que a pintada por Taunay, uma cidade, ainda que ciente e orgulhosa de sua grandeza, com pouco tempo e disposição para reinventar as tais glórias do passado bandeirante e, a partir daí, como se tentou fazer outrora, projetar o seu futuro.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio).

São Paulo nos Primeiros Anos - 1554-1601/ São Paulo no Século 16
460 págs., R$ 28,00 de Afonso de Escragnolle Taunay. Ed. Paz e Terra (rua do Triunfo, 177, CEP 01212-010, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3337-8399).

Estudos Avançados nº 47
310 págs., R$ 47,00 Instituto de Estudos Avançados da USP (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, sala 15, Cidade Universitária, CEP 05508-900, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3091- 3919).


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