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Ponto de Fuga
Bem bom
O chamado filme
de arte deixou de ser o campo da invenção
e da ousadia, como era percebido até algumas décadas atrás;
existe agora uma concepção preestabelecida
que o enquadra
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Inácio Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em
uma de suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não
mais que um "filme de arte'".
É uma frase que abala convenções. Se fosse "não mais que
um blockbuster" ou "não mais
que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do jeito
que ficou, tem o aspecto de uma
contradição: a noção "filme de
arte", em princípio, elevada, foi
percebida como pejorativa.
É que o chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era
percebido até algumas décadas
atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos
explícitas.
Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele cumpre parâmetros e se submete a
convenções implícitas, que restringem o espírito criador em
benefício de um trabalhinho
bem feito.
A razão principal não é cinematográfica.
Ela formou-se a partir de um
pacto entre público e diretores
culturalmente sofisticados,
pacto que se estabelece por
meio de sinais exteriores de reconhecimento, espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso
substitui a criação cinematográfica mais autêntica.
Os filmes resultam cheios de
bons sentimentos, os temas são
definidos de antemão como
profundos; têm boa iluminação, boa filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas fáceis ou alusões que se querem
densas.
No fim, sai do cinema levemente entediado, mas com a
satisfação de um dever cultural
cumprido. Tudo isso é bastante
simbólico e meio cerimonial.
Cismas
Cinema é uma arte, e a noção
"cinema de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue dizer
de onde vai brotar a criação artística.
Clint Eastwood, que nasceu
de um cruzamento entre filmes
baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um
artista maior na história do cinema. As seqüências dos
"Alien", dos "Batman", para
além da discussão sobre cada
filme, formam magníficas sagas. É bobagem multiplicar os
exemplos: um filme não é bom
apenas porque é "de arte" ou
ruim porque blockbuster.
Inferno
A sensação de tédio, nada boa
em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se
das obras que elas ofereçam
prazeres superiores, mas não
muito bem definidos, que elas
tragam revelações preciosas,
que agucem a sensibilidade.
Em nome deles, suporta-se
estoicamente o tédio, imaginando-se que, de algum modo,
a recompensa virá mais tarde.
Muita gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com
arte fosse quase um pecado.
Existe, por sinal, uma história
filosófica desse pecado, que
Hans Robert Jauss retraçou em
sua "Pequena Apologia da Experiência Estética".
Delícia
A cultura norte-americana,
com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se é
arte, é chato, se é gostoso, não é
arte. Esse jogo preconceituoso
é péssimo: ele faz engolir gato
por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são
apaixonantes, mas consideradas difíceis.
É que o espectador não encontrou as boas chaves para
elas. Procurá-las é um desafio:
dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada.
jorgecoli@uol.com.br
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