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Ruínas em obras
"POMPÉIA DESPERTA" E "ANTIGÜIDADE RECUPERADA" NARRAM A HISTÓRIA DA CIDADE ARRASADA PELA ERUPÇÃO DO VESÚVIO, NO ANO DE 79, E MOSTRAM COMO OS TURISTAS ATUAIS VISITAM IMAGENS RECONSTRUÍDAS DOS NÚCLEOS URBANOS DA ROMA ANTIGA
Duas efígies em gesso de pessoas abraçadas no momento da morte tiveram papel importante em "Viagem
à Itália", de Rossellini
Reuters
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Afresco erótico em banho público de Pompéia; na outra pág., as fotos em preto-e-branco retratam cenas de Pompéia feitas entre 1867 e 1873 e pertencentes à coleção de fotografias do imperador dom Pedro 2º; ao centro, restos de vítimas
MARY BEARD
Se você desejasse visitar Pompéia na metade do século 19, a melhor solução seria
apanhar um trem em
Nápoles até a estação mais próxima e depois caminhar ou cavalgar até um dos portões principais do sítio arqueológico. Isso foi o que o papa Pio 9º fez em
22 de outubro de 1849, durante
um breve exílio causado pela
revolução em Roma.
Como conta Judith Harris
em "Pompeii Awakened - A
Story of Rediscovery" [Pompéia Desperta - Uma História
de Redescoberta, 320 págs.,
18,99 libras, R$ 70], seu fascinante relato sobre a redescoberta da cidade soterrada, Pio
9º chegou no trem das 9h30,
acompanhado por uma escolta
da Guarda Suíça, alguns dignatários napolitanos e seu chefe
de cozinha pessoal.
"Para poupar Sua Santidade
de uma longa caminhada pelas
ruínas" foi preparado um carrinho capaz de se movimentar
sobre trilhos. Como a distância
entre eixos dele não se enquadrava às dimensões das ruas
antigas, muitos dos famosos
degraus de Pompéia foram removidos por ocasião da visita e
jamais restaurados.
O papa visitou o local de escavação, admirou a Casa do
Fauno e depois acompanhou
por algum tempo os trabalhos
de escavação, que convenientemente resultaram na descoberta de algumas antigüidades que
Pio 9º pôde levar com ele.
Trem e carruagem
Se deixarmos de lado o carrinho, o vandalismo e a escolta
superdimensionada, a visita seguiu mais ou menos o padrão
que se aplicava aos turistas comuns da época.
A primeira edição do "Murray's Handbook for Travellers
in Southern Italy" [Guia de
Murray para Viajantes no Sul
da Itália], um guia regional publicado em 1853, recomendava
o transporte ferroviário, a menos que o grupo contivesse
mais de cinco pessoas, o que
tornaria mais barato alugar
uma carruagem em Nápoles,
dados os preços das passagens
(uma demonstração de bom
senso econômico que o papa
obviamente preferiu ignorar).
Ao chegar à estação, o guia
recomendava insistentemente
que os visitantes entrassem no
sítio arqueológico pela rua das
Tumbas, hoje a principal via de
acesso a Pompéia, e que caminhassem até a Vila dos Mistérios e continuassem percorrendo as ruínas no caminho de volta até o hotel Bellevue, ao lado
da estação, onde seria possível
obter um almoço tardio junto
ao "proprietário muito cortês e
obsequioso".
As experiências dos visitantes decerto mudaram de muitas maneiras ao longo do século
19. Por volta de 1865, como deixa claro uma edição posterior
do "Guia de Murray", já era preciso pagar entrada para visitar
o sítio arqueológico; o preço cobria o custo do guia ou cicerone, cuja presença havia se tornado obrigatória.
O hotel Bellevue estava sob
nova administração. Seu nome
foi mudado para hotel Diamede, e o estabelecimento se tornou uma perigosa arapuca para
turistas (os leitores eram aconselhados a não pedir uma refeição sem antes "chegar a acordo
prévio quanto ao preço com o
anfitrião"). Mas muitos dos detalhes essenciais se mantinham inalterados.
A entrada para o sítio arqueológico pela rua das Tumbas, que continuou a ser a rota
recomendada até a década de
1870, enfatizava o fato de que,
para a maioria dos visitantes do
século 19, uma visita a Pompéia
era uma visita à cidade dos
mortos. O local era tão funerário quanto arqueológico e suscitava reflexões sobre a tragédia da destruição e a fragilidade
da condição humana, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, parecia "dar vida" ao
mundo do passado.
Esqueletos sempre tiveram
posição de destaque na agenda
dos visitantes. Mas a sensação
que Pompéia propiciava foi intensificada pelo desenvolvimento da técnica necessária a
produzir imagens em gesso reproduzindo os corpos das vítimas, criada na década de 1860
por Giuseppe Fiorelli (antigo
político radical que se tornou
um dos mais influentes diretores na história das escavações
arqueológicas em Pompéia).
Gesso era derramado nas cavidades deixadas pela decomposição da carne e das roupas
dos mortos, produzindo imagens notáveis de seus traços físicos e das contorções que sofreram em seus momentos finais de vida.
Mulher caída de costas
As efígies em gesso são o tema de um capítulo fascinante
em "Antiquity Recovered - The
Legacy of Pompeii and Herculaneum" [Antigüidade Recuperada - O Legado de Pompéia e
Herculano, ed. Getty Trust,
304 págs., US$ 60, R$ 109], suntuosa coleção ilustrada sobre a
história moderna de Pompéia e
Herculano, editada por Victoria Gardner Coates e Jon Seydl.
O capítulo escrito por Eugene Dwyer explica como as roupas pesadas visíveis nas esculturas, as calças aparentemente
usadas por ambos os sexos e os
lenços nas cabeças das mulheres -"ao modo oriental", como
disse um arqueólogo- negavam a imagem popular vigente
sobre as roupas romanas, quase
sempre retratadas como sumárias, se não lascivas.
Já outros observadores questionaram, nas décadas subseqüentes, se as roupas que as
pessoas decidem usar em meio
a uma erupção vulcânica podem ser consideradas exemplos de vestimentas cotidianas.
Os lenços na cabeça talvez
fossem menos influência
oriental do que um recurso prático para impedir que as cinzas
recobrissem os cabelos.
Dwyer também acompanha a
história de diversas imagens
em gesso que se tornaram símbolos especialmente famosos
da cidade e de sua destruição.
Entre elas está um dos primeiros trabalhos de Fiorelli:
uma mulher caída de costas, se
esforçando para se erguer e respirar, com a saia arregaçada por
sobre as coxas -dando a impressão, provavelmente enganosa, de que ela estava grávida.
Alguns estudiosos vitorianos
interpretavam a mulher como
prostituta (ela portava uma pequena estatueta de Cupido e
um espelho de prata). Outros a
descreveram como uma dona-de-casa zelosa (com base em
uma grande chave de ferro que
ela também portava).
De qualquer modo, essa "mulher grávida", como usualmente é conhecida, ganhou papel de
destaque nas discussões sobre
as escavações no final dos anos
1860 e começo dos 1870 e foi registrada nas primeiras fotografias do local -até que fosse sobrepujada por imagens ainda
mais pungentes de sofrimento,
e sua efígie em gesso terminasse misteriosamente perdida.
Morte abraçada
Essas figuras moribundas
continuam a assombrar a imaginação moderna.
Como discute Jennie Hirsh
em outro dos ensaios publicados em "Antigüidade Recuperada", duas efígies em gesso de
pessoas que se mantiveram
abraçadas mesmo no momento
da morte assumiram papel importante em "Viagem à Itália",
que Roberto Rossellini dirigiu
em 1953, servindo como lembrete ao casal moderno interpretado por Ingrid Bergman e
George Sanders sobre como o
casamento deles havia se tornado vazio e distante.
Mas, sob outros aspectos, a
experiência de visitar a cidade
dos mortos hoje difere muito
daquela de que os turistas desfrutavam 150 anos atrás. É certo que muitos dos pontos turísticos mais procurados continuam os mesmos, ainda que a
área revelada até a década de
1850 tenha mais que dobrado.
Além das imagens em gesso,
os visitantes continuam a lotar
a Casa do Fauno, o Templo de
Ísis e as Termas Stabiane.
Mas o ponto crucial é que o
propósito subjacente da visita
se estreitou. Os visitantes modernos chegam para visitar
uma cidade da Antigüidade, para "voltar no tempo" (mesmo
em companhia de 2 milhões de
outros turistas todo ano).
Os visitantes do século 19 vinham também movidos por esses objetivos em mente. De fato, a idéia de que pela primeira
vez a vida cotidiana dos romanos estaria exposta aos olhos
modernos é o que valeu a Pompéia o apreço especial dos primeiros turistas.
Mas eles se interessavam
igualmente por ver os processos pelos quais o passado era
revelado. Estavam interessados naquilo que sabemos sobre
a cidade antiga, mas não menos
interessados em descobrir como o aprendemos.
Um aspecto desse interesse
em processos é revelado pelo
ávido envolvimento dos guias
de viagem do século 19 no debate sobre as dúvidas e incertezas
quanto à identidade e função
dos antigos monumentos revelados pelas escavações. Quando
eles foram escavados pela primeira vez, não era óbvio que
edifícios eram aqueles, e que
funções cumpriam.
Um caso clássico é o da grande estrutura localizada à direita
do Templo de Júpiter, no fórum principal de Pompéia,
apresentada aos turistas contemporâneos -sem causar
controvérsias- como um
"mercado".
Hoje, a construção é uma das
ruínas menos imponentes de
Pompéia, e a pintura brilhante
das paredes, tão comentada pelos visitantes da era vitoriana,
praticamente desapareceu,
desbotada pelo tempo.
Mas no passado existiam estandes de comerciantes em um
dos lados, um balcão de açougue ao fundo e uma área de preparação de peixes (a julgar pela
grande quantidade de escamas
localizadas) por sob uma cúpula no centro do pátio principal
-tudo isso operando sob a proteção dos imperadores divinizados de Roma, cujo templo se
localizava na última porção do
edifício, ao lado do açougue.
Ou assim nos é informado
com toda a confiança.
Interpretações diversas
O visitante do século 19, em
contraste, podia escolher entre
várias interpretações conflitantes. O edifício talvez fosse,
como algumas autoridades sobre a era supunham, um templo aos 12 deuses do Panteão (a
suposição derivava do fato de
que as 12 colunas que hoje são
consideradas suportes da cúpula central eram então vistas
como pedestais para estátuas).
Ou talvez o local servisse como uma grande área para o culto do imperador Augusto, com
celas para os sacerdotes do culto imperial ocupando os espaços que posteriormente viriam
a ser identificados como lojas.
É verdade que, ocasionalmente, escavações mais recentes ajudam a resolver os enigmas que afligiam gerações passadas. Mas em muitos casos,
como no desse "mercado", uma
ortodoxia moderna dúbia, mas
conveniente, tomou o lugar do
debate e da discussão que marcavam o século 19.
Essas prioridades diferentes
também são vistas como parte
da tradição de escavações encenadas, da espécie que aconteceu quando da visita papal, em
1849, e eram a atividade dominante da indústria do turismo
em Pompéia desde o século 18
-quando qualquer dignatário
visitante era considerado como
alvo aceitável para a venda de tesouros, pinturas ou esqueletos, escavados, de maneira aparentemente inesperada, diante
do nariz do visitante.
Hoje em dia tendemos a rir
da crueza dessas manipulações
e da credulidade dos espectadores (será que os membros visitantes da realeza eram mesmo ingênuos a ponto de imaginar que descobertas maravilhosas como aquelas aconteciam por acaso no momento
mesmo em que eles estavam
presentes?).
Mas, como sempre, os truques do setor de turismo revelam as esperanças e as aspirações dos visitantes ao mesmo
tempo em que expõem as artimanhas dos locais. No caso de
Pompéia, os visitantes queriam
testemunhar não só as descobertas em si mas os processos
de escavação que lançavam luz
sobre o passado.
Era como se os primeiros visitantes da cidade tivessem, ao
mesmo tempo, de manter duas
cronologias ativas em seus cérebros: de um lado, a cronologia
da cidade antiga e de seu desenvolvimento; de outro, a história
do gradual ressurgimento de
Pompéia como parte do mundo
moderno.
"Pompéia Desperta" e "Antigüidade Recuperada" tentam,
de maneiras diferentes, recapturar parte dessa visão estereoscópica, acompanhando a
história da escavação das cidades soterradas e destacando-a
como crucial para a compreensão que temos sobre os locais,
ao visitá-los hoje.
Ambos oferecem percepções
aguçadas e ocasionalmente pitorescas sobre a história moderna de Pompéia e Herculano,
das primeiras explorações sob
os idiossincráticos reis Bourbon (e suas rainhas freqüentemente formidáveis) e o regime
napoleônico.
Em sua maior parte, "Antigüidade Recuperada" praticamente não erra. Ele inclui alguns estudos maravilhosos sobre a história moderna de Pompéia, de autoria dos mais conhecidos estudiosos do ramo.
História de um friso
Mas, se existe uma contribuição individual que demonstra
que a "recepção" de Pompéia e
da história de suas escavações
não representa um acréscimo,
mas sim parte essencial da moderna compreensão arqueológica quanto ao sítio, é o capítulo
de Bettina Bergmann sobre o
famoso friso "dionisíaco" da Vila dos Mistérios.
Um livro suntuoso do arqueólogo Amedeo Maiuri, de
1931, patrocinado pelo Estado
(fascista) e contendo fotos em
cores raras para a época, as pinturas -muitas vezes vistas como retrato de um casamento
ou de uma iniciação mística
que inclui flagelação e revelação do falo- estão agora tão associadas ao nome de Maiuri
que muita gente imagina que
tenha sido ele o responsável pela escavação original.
Na verdade, o sítio havia sido
descoberto em 1909 por uma
expedição eufemisticamente
designada como "particular",
comandada por um empresário
local de hotelaria, Aurelio Item
-o que explica o nome inicial
do sítio, "Vila Item", e não "Vila
dos Mistérios".
As imagens do friso haviam
sido publicadas e discutidas
três vezes, acompanhadas de
desanimadoras fotos em preto
e branco, antes que Maiuri decidisse se encarregar da tarefa.
No curso de um estudo extenso sobre o friso, que se estende às suas apropriações posteriores por mídias tão diversas
quanto a psicanálise ou a série
"Roma", da HBO, Bergmann
propõe uma questão crucial.
Até que ponto as imagens de
Maiuri estavam próximas das
descobertas originais? Ou,
aliás, até que ponto o que vemos hoje no sítio reflete o que
foi descoberto lá em 1909?
Muitos dos visitantes talvez
percebam que o teto da sala e a
parte superior das paredes são
restaurações modernas (ainda
que minha experiência pessoal
sugira que bom número deles
acredite que a sala toda, incluindo o teto, represente uma
forma de preservação miraculosa da Antigüidade).
A maioria dos turistas -e,
aliás, dos visitantes acadêmicos- presume que as pinturas,
ao menos, estejam sendo apresentadas mais ou menos como
escavadas. Eles têm razão? Estamos contemplando o "frescor
vívido de originais", como os
arqueólogos alegam?
Bergmann conclui, com honestidade, que jamais poderemos reconstruir a aparência
que o friso dionisíaco tinha na
era romana -ainda que possamos ter certeza de que era bastante diferente daquilo que vemos agora. Sei que eu mesma
jamais voltarei a encarar o friso
da mesma maneira.
MARY BEARD (1955) leciona cultura da Antigüidade na Universidade de Cambridge (Reino
Unido). É autora de "The Parthenon" (Harvard
University Press) e co-autora, com John Henderson, de "Antigüidade Clássica" (ed. Zahar).
A íntegra deste texto foi publicada no "Times Literary Supplement".
Tradução de Paulo Migliacci.
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