São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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Ruínas em obras

"POMPÉIA DESPERTA" E "ANTIGÜIDADE RECUPERADA" NARRAM A HISTÓRIA DA CIDADE ARRASADA PELA ERUPÇÃO DO VESÚVIO, NO ANO DE 79, E MOSTRAM COMO OS TURISTAS ATUAIS VISITAM IMAGENS RECONSTRUÍDAS DOS NÚCLEOS URBANOS DA ROMA ANTIGA

Duas efígies em gesso de pessoas abraçadas no momento da morte tiveram papel importante em "Viagem à Itália", de Rossellini

Reuters
Afresco erótico em banho público de Pompéia; na outra pág., as fotos em preto-e-branco retratam cenas de Pompéia feitas entre 1867 e 1873 e pertencentes à coleção de fotografias do imperador dom Pedro 2º; ao centro, restos de vítimas

MARY BEARD

Se você desejasse visitar Pompéia na metade do século 19, a melhor solução seria apanhar um trem em Nápoles até a estação mais próxima e depois caminhar ou cavalgar até um dos portões principais do sítio arqueológico. Isso foi o que o papa Pio 9º fez em 22 de outubro de 1849, durante um breve exílio causado pela revolução em Roma.
Como conta Judith Harris em "Pompeii Awakened - A Story of Rediscovery" [Pompéia Desperta - Uma História de Redescoberta, 320 págs., 18,99 libras, R$ 70], seu fascinante relato sobre a redescoberta da cidade soterrada, Pio 9º chegou no trem das 9h30, acompanhado por uma escolta da Guarda Suíça, alguns dignatários napolitanos e seu chefe de cozinha pessoal.
"Para poupar Sua Santidade de uma longa caminhada pelas ruínas" foi preparado um carrinho capaz de se movimentar sobre trilhos. Como a distância entre eixos dele não se enquadrava às dimensões das ruas antigas, muitos dos famosos degraus de Pompéia foram removidos por ocasião da visita e jamais restaurados.
O papa visitou o local de escavação, admirou a Casa do Fauno e depois acompanhou por algum tempo os trabalhos de escavação, que convenientemente resultaram na descoberta de algumas antigüidades que Pio 9º pôde levar com ele.

Trem e carruagem
Se deixarmos de lado o carrinho, o vandalismo e a escolta superdimensionada, a visita seguiu mais ou menos o padrão que se aplicava aos turistas comuns da época.
A primeira edição do "Murray's Handbook for Travellers in Southern Italy" [Guia de Murray para Viajantes no Sul da Itália], um guia regional publicado em 1853, recomendava o transporte ferroviário, a menos que o grupo contivesse mais de cinco pessoas, o que tornaria mais barato alugar uma carruagem em Nápoles, dados os preços das passagens (uma demonstração de bom senso econômico que o papa obviamente preferiu ignorar).
Ao chegar à estação, o guia recomendava insistentemente que os visitantes entrassem no sítio arqueológico pela rua das Tumbas, hoje a principal via de acesso a Pompéia, e que caminhassem até a Vila dos Mistérios e continuassem percorrendo as ruínas no caminho de volta até o hotel Bellevue, ao lado da estação, onde seria possível obter um almoço tardio junto ao "proprietário muito cortês e obsequioso".
As experiências dos visitantes decerto mudaram de muitas maneiras ao longo do século 19. Por volta de 1865, como deixa claro uma edição posterior do "Guia de Murray", já era preciso pagar entrada para visitar o sítio arqueológico; o preço cobria o custo do guia ou cicerone, cuja presença havia se tornado obrigatória.
O hotel Bellevue estava sob nova administração. Seu nome foi mudado para hotel Diamede, e o estabelecimento se tornou uma perigosa arapuca para turistas (os leitores eram aconselhados a não pedir uma refeição sem antes "chegar a acordo prévio quanto ao preço com o anfitrião"). Mas muitos dos detalhes essenciais se mantinham inalterados.
A entrada para o sítio arqueológico pela rua das Tumbas, que continuou a ser a rota recomendada até a década de 1870, enfatizava o fato de que, para a maioria dos visitantes do século 19, uma visita a Pompéia era uma visita à cidade dos mortos. O local era tão funerário quanto arqueológico e suscitava reflexões sobre a tragédia da destruição e a fragilidade da condição humana, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, parecia "dar vida" ao mundo do passado.
Esqueletos sempre tiveram posição de destaque na agenda dos visitantes. Mas a sensação que Pompéia propiciava foi intensificada pelo desenvolvimento da técnica necessária a produzir imagens em gesso reproduzindo os corpos das vítimas, criada na década de 1860 por Giuseppe Fiorelli (antigo político radical que se tornou um dos mais influentes diretores na história das escavações arqueológicas em Pompéia).
Gesso era derramado nas cavidades deixadas pela decomposição da carne e das roupas dos mortos, produzindo imagens notáveis de seus traços físicos e das contorções que sofreram em seus momentos finais de vida.

Mulher caída de costas
As efígies em gesso são o tema de um capítulo fascinante em "Antiquity Recovered - The Legacy of Pompeii and Herculaneum" [Antigüidade Recuperada - O Legado de Pompéia e Herculano, ed. Getty Trust, 304 págs., US$ 60, R$ 109], suntuosa coleção ilustrada sobre a história moderna de Pompéia e Herculano, editada por Victoria Gardner Coates e Jon Seydl.
O capítulo escrito por Eugene Dwyer explica como as roupas pesadas visíveis nas esculturas, as calças aparentemente usadas por ambos os sexos e os lenços nas cabeças das mulheres -"ao modo oriental", como disse um arqueólogo- negavam a imagem popular vigente sobre as roupas romanas, quase sempre retratadas como sumárias, se não lascivas.
Já outros observadores questionaram, nas décadas subseqüentes, se as roupas que as pessoas decidem usar em meio a uma erupção vulcânica podem ser consideradas exemplos de vestimentas cotidianas.
Os lenços na cabeça talvez fossem menos influência oriental do que um recurso prático para impedir que as cinzas recobrissem os cabelos.
Dwyer também acompanha a história de diversas imagens em gesso que se tornaram símbolos especialmente famosos da cidade e de sua destruição.
Entre elas está um dos primeiros trabalhos de Fiorelli: uma mulher caída de costas, se esforçando para se erguer e respirar, com a saia arregaçada por sobre as coxas -dando a impressão, provavelmente enganosa, de que ela estava grávida.
Alguns estudiosos vitorianos interpretavam a mulher como prostituta (ela portava uma pequena estatueta de Cupido e um espelho de prata). Outros a descreveram como uma dona-de-casa zelosa (com base em uma grande chave de ferro que ela também portava).
De qualquer modo, essa "mulher grávida", como usualmente é conhecida, ganhou papel de destaque nas discussões sobre as escavações no final dos anos 1860 e começo dos 1870 e foi registrada nas primeiras fotografias do local -até que fosse sobrepujada por imagens ainda mais pungentes de sofrimento, e sua efígie em gesso terminasse misteriosamente perdida.

Morte abraçada
Essas figuras moribundas continuam a assombrar a imaginação moderna.
Como discute Jennie Hirsh em outro dos ensaios publicados em "Antigüidade Recuperada", duas efígies em gesso de pessoas que se mantiveram abraçadas mesmo no momento da morte assumiram papel importante em "Viagem à Itália", que Roberto Rossellini dirigiu em 1953, servindo como lembrete ao casal moderno interpretado por Ingrid Bergman e George Sanders sobre como o casamento deles havia se tornado vazio e distante.
Mas, sob outros aspectos, a experiência de visitar a cidade dos mortos hoje difere muito daquela de que os turistas desfrutavam 150 anos atrás. É certo que muitos dos pontos turísticos mais procurados continuam os mesmos, ainda que a área revelada até a década de 1850 tenha mais que dobrado.
Além das imagens em gesso, os visitantes continuam a lotar a Casa do Fauno, o Templo de Ísis e as Termas Stabiane.
Mas o ponto crucial é que o propósito subjacente da visita se estreitou. Os visitantes modernos chegam para visitar uma cidade da Antigüidade, para "voltar no tempo" (mesmo em companhia de 2 milhões de outros turistas todo ano).
Os visitantes do século 19 vinham também movidos por esses objetivos em mente. De fato, a idéia de que pela primeira vez a vida cotidiana dos romanos estaria exposta aos olhos modernos é o que valeu a Pompéia o apreço especial dos primeiros turistas.
Mas eles se interessavam igualmente por ver os processos pelos quais o passado era revelado. Estavam interessados naquilo que sabemos sobre a cidade antiga, mas não menos interessados em descobrir como o aprendemos.
Um aspecto desse interesse em processos é revelado pelo ávido envolvimento dos guias de viagem do século 19 no debate sobre as dúvidas e incertezas quanto à identidade e função dos antigos monumentos revelados pelas escavações. Quando eles foram escavados pela primeira vez, não era óbvio que edifícios eram aqueles, e que funções cumpriam.
Um caso clássico é o da grande estrutura localizada à direita do Templo de Júpiter, no fórum principal de Pompéia, apresentada aos turistas contemporâneos -sem causar controvérsias- como um "mercado".
Hoje, a construção é uma das ruínas menos imponentes de Pompéia, e a pintura brilhante das paredes, tão comentada pelos visitantes da era vitoriana, praticamente desapareceu, desbotada pelo tempo.
Mas no passado existiam estandes de comerciantes em um dos lados, um balcão de açougue ao fundo e uma área de preparação de peixes (a julgar pela grande quantidade de escamas localizadas) por sob uma cúpula no centro do pátio principal -tudo isso operando sob a proteção dos imperadores divinizados de Roma, cujo templo se localizava na última porção do edifício, ao lado do açougue.
Ou assim nos é informado com toda a confiança.

Interpretações diversas
O visitante do século 19, em contraste, podia escolher entre várias interpretações conflitantes. O edifício talvez fosse, como algumas autoridades sobre a era supunham, um templo aos 12 deuses do Panteão (a suposição derivava do fato de que as 12 colunas que hoje são consideradas suportes da cúpula central eram então vistas como pedestais para estátuas).
Ou talvez o local servisse como uma grande área para o culto do imperador Augusto, com celas para os sacerdotes do culto imperial ocupando os espaços que posteriormente viriam a ser identificados como lojas.
É verdade que, ocasionalmente, escavações mais recentes ajudam a resolver os enigmas que afligiam gerações passadas. Mas em muitos casos, como no desse "mercado", uma ortodoxia moderna dúbia, mas conveniente, tomou o lugar do debate e da discussão que marcavam o século 19.
Essas prioridades diferentes também são vistas como parte da tradição de escavações encenadas, da espécie que aconteceu quando da visita papal, em 1849, e eram a atividade dominante da indústria do turismo em Pompéia desde o século 18 -quando qualquer dignatário visitante era considerado como alvo aceitável para a venda de tesouros, pinturas ou esqueletos, escavados, de maneira aparentemente inesperada, diante do nariz do visitante.
Hoje em dia tendemos a rir da crueza dessas manipulações e da credulidade dos espectadores (será que os membros visitantes da realeza eram mesmo ingênuos a ponto de imaginar que descobertas maravilhosas como aquelas aconteciam por acaso no momento mesmo em que eles estavam presentes?).
Mas, como sempre, os truques do setor de turismo revelam as esperanças e as aspirações dos visitantes ao mesmo tempo em que expõem as artimanhas dos locais. No caso de Pompéia, os visitantes queriam testemunhar não só as descobertas em si mas os processos de escavação que lançavam luz sobre o passado.
Era como se os primeiros visitantes da cidade tivessem, ao mesmo tempo, de manter duas cronologias ativas em seus cérebros: de um lado, a cronologia da cidade antiga e de seu desenvolvimento; de outro, a história do gradual ressurgimento de Pompéia como parte do mundo moderno.
"Pompéia Desperta" e "Antigüidade Recuperada" tentam, de maneiras diferentes, recapturar parte dessa visão estereoscópica, acompanhando a história da escavação das cidades soterradas e destacando-a como crucial para a compreensão que temos sobre os locais, ao visitá-los hoje. Ambos oferecem percepções aguçadas e ocasionalmente pitorescas sobre a história moderna de Pompéia e Herculano, das primeiras explorações sob os idiossincráticos reis Bourbon (e suas rainhas freqüentemente formidáveis) e o regime napoleônico.
Em sua maior parte, "Antigüidade Recuperada" praticamente não erra. Ele inclui alguns estudos maravilhosos sobre a história moderna de Pompéia, de autoria dos mais conhecidos estudiosos do ramo.

História de um friso
Mas, se existe uma contribuição individual que demonstra que a "recepção" de Pompéia e da história de suas escavações não representa um acréscimo, mas sim parte essencial da moderna compreensão arqueológica quanto ao sítio, é o capítulo de Bettina Bergmann sobre o famoso friso "dionisíaco" da Vila dos Mistérios.
Um livro suntuoso do arqueólogo Amedeo Maiuri, de 1931, patrocinado pelo Estado (fascista) e contendo fotos em cores raras para a época, as pinturas -muitas vezes vistas como retrato de um casamento ou de uma iniciação mística que inclui flagelação e revelação do falo- estão agora tão associadas ao nome de Maiuri que muita gente imagina que tenha sido ele o responsável pela escavação original.
Na verdade, o sítio havia sido descoberto em 1909 por uma expedição eufemisticamente designada como "particular", comandada por um empresário local de hotelaria, Aurelio Item -o que explica o nome inicial do sítio, "Vila Item", e não "Vila dos Mistérios".
As imagens do friso haviam sido publicadas e discutidas três vezes, acompanhadas de desanimadoras fotos em preto e branco, antes que Maiuri decidisse se encarregar da tarefa.
No curso de um estudo extenso sobre o friso, que se estende às suas apropriações posteriores por mídias tão diversas quanto a psicanálise ou a série "Roma", da HBO, Bergmann propõe uma questão crucial.
Até que ponto as imagens de Maiuri estavam próximas das descobertas originais? Ou, aliás, até que ponto o que vemos hoje no sítio reflete o que foi descoberto lá em 1909?
Muitos dos visitantes talvez percebam que o teto da sala e a parte superior das paredes são restaurações modernas (ainda que minha experiência pessoal sugira que bom número deles acredite que a sala toda, incluindo o teto, represente uma forma de preservação miraculosa da Antigüidade).
A maioria dos turistas -e, aliás, dos visitantes acadêmicos- presume que as pinturas, ao menos, estejam sendo apresentadas mais ou menos como escavadas. Eles têm razão? Estamos contemplando o "frescor vívido de originais", como os arqueólogos alegam?
Bergmann conclui, com honestidade, que jamais poderemos reconstruir a aparência que o friso dionisíaco tinha na era romana -ainda que possamos ter certeza de que era bastante diferente daquilo que vemos agora. Sei que eu mesma jamais voltarei a encarar o friso da mesma maneira.


MARY BEARD (1955) leciona cultura da Antigüidade na Universidade de Cambridge (Reino Unido). É autora de "The Parthenon" (Harvard University Press) e co-autora, com John Henderson, de "Antigüidade Clássica" (ed. Zahar). A íntegra deste texto foi publicada no "Times Literary Supplement".
Tradução de Paulo Migliacci.


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