|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de Fuga
Do que a arte é feita
A arte tem sua junção entre aquilo que a obra oferece ao espectador e o que é captado por ele; está em uma terceira margem do rio, o que lhe permite passar do original para as cópias
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Paolo Veronese, mestre do
Renascimento, pintara
para o refeitório dos beneditinos, na ilha de San Giorgio Maggiore, em Veneza, uma
pintura representando o episódio bíblico das bodas de Caná.
Veronese adaptara a tela
enorme, 6,77 m x 9,94 m, à sala
criada por Palladio. É em 1563
que, maravilhados, os venezianos assistem à conjunção criadora desses dois gênios. Porém,
no final do século 18, o general
Bonaparte invade a Itália. Como butim, leva obras de arte
para o Louvre, museu universal
que então se formava em Paris.
Entre elas estava a imensa pintura de Veronese.
Até hoje os venezianos não
se conformaram com o rapto.
Ora, o "New York Times" traz
um artigo contando que "As
Bodas de Caná" voltaram para
o velho refeitório do convento.
Não o original, que continua no
Louvre. Dele foi feita uma cópia digital idêntica. Nada desses sucedâneos aproximativos,
tristes e anêmicos. Um clone,
com o mesmo exato colorido,
com matéria equivalente, com
os acidentes e o relevo sutil da
superfície pictural sobre tela.
A palavra clone foi usada como sinônimo de monstruosidade por um universitário italiano a respeito dessa réplica.
Adam Lowe, autor da reprodução, a recusa: "Nossa obra não é
um clone, mas um profundo
estudo detalhado". Resta que,
monstro ou não, a metáfora do
clone é bem tentadora.
Outro crítico, Pierluigi Panza
celebra: para ele trata-se do
"terceiro milagre".
Entende-se: o primeiro foi
quando, em Caná, Cristo transformou a água em vinho. O segundo, a própria pintura de Veronese, grande obra-prima. O
terceiro, a reprodução que, dizem, o olho não consegue distinguir do original.
Impalpável
Pode ser que haja exagero.
Pode se tratar de um mero factóide. No entanto a hipótese de
uma identidade absoluta entre
"As Bodas de Caná" e sua cópia
reforça várias questões teóricas. Mesmo quando a perfeita
imitação não ocorre, situações
desse tipo indicam que a dimensão mais crucial da arte está na aparência, não na matéria.
Essa dimensão se vincula à
idéia de semelhança que, ao
contrário da imitação, suscitou
pouca teoria. Proust a emprega
como formidável meio de compreensão do mundo. Seu narrador discorre sobre pinturas a
partir dos mais diversos tipos
de reprodução: gravuras, cópias, fotos. Embora não seja o
universo da teoria, mas do romance, Proust sugere que a característica mais definidora da
arte é imaterial.
Faz-de-conta
A arte tem sua junção entre
aquilo que a obra oferece ao espectador e o que é captado por
ele. Está numa terceira margem do rio. Perder sua materialidade de coisa é o que lhe permite passar do original para as
cópias, réplicas, citações, lembranças, múltiplos.
Sonhos
A existência da obra para
além de sua materialidade contraria o fetichismo do objeto artístico, que os românticos sublinharam tanto, confundindo
arte e relíquia. Walter Benjamin herdou deles as convicções
expostas no texto conhecido
sobre "a obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica",
em que vislumbra uma aura exclusiva própria dos originais,
capaz de ser detectada sabe-se
lá por quais poderes.
Uma tal imaterialidade contraria também o mercado das
artes, que sempre engorda com
a sobrevalorização dos originais. Qual é o autêntico: o quadro original de Veronese, que
está no Louvre, fora do seu lugar, de sua escala, em concorrência com outras obras, ou a
réplica perfeita, instalada na
luz e no espaço únicos para os
quais foi concebido?
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez + Próximo Texto: Biblioteca Básica: Alice no País das Maravilhas Índice
|