São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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+ cinema

'Hollywood não serve'

CARTAS RECÉM-DESCOBERTAS REVELAM QUE O DIRETOR SUECO INGMAR BERGMAN FOI CORTEJADO POR ESTÚDIOS DOS EUA, MAS RECUSOU PROJETOS COM ASTROS COMO CARY GRANT E LAURENCE OLIVIER

GEOFFREY MACNAB

Cary Grant em "O Sétimo Selo"? Laurence Olivier em "Morangos Silvestres"? Jennifer Jones em "Monika e o Desejo"? Robert Ryan em "A Fonte da Virgem"?
Harry Belafonte em "Gritos e Sussurros"? Jean Seberg em "Persona"?
É claro que escalar esses atores para os filmes de Ingmar Bergman teria sido absurdo.
No entanto encontrei documentos no Arquivo Ingmar Bergman do Instituto Sueco de Cinema que demonstram que todas eles discutiram a possibilidade de trabalhar com o cineasta, em diferentes ocasiões. Em uma palestra a alunos da Universidade de Lund, em 1959, sobre "o que é preciso para fazer um filme", Bergman disse que os cineastas são como magos, mas sua capacidade de criar mágica depende da capacidade dos filmes que dirigem para gerar dinheiro. No momento em que os filmes perdem sua audiência, "o mago perde sua varinha de condão".
Estamos tão acostumados à idéia de Bergman como um grande diretor do cinema de arte europeu que é fácil ignorar as batalhas que ele -como qualquer outro cineasta- teve de travar com os investidores, produtores e distribuidores quanto à seleção dos atores que viriam a integrar seus elencos.
"Produzir uma enorme tênia de 2.500 metros de comprimento, que suga vida e alma dos atores, produtores e diretores. É isso que fazer um filme envolve", explicou, em tom sombrio. "Isso e muitas outras coisas, e coisas muito piores."
Bergman considerava o "negócio" do cinema desgastante e ocasionalmente destrutivo para o espírito. "Seria interessante", sugeriu, "se um dia um cientista fosse capaz de inventar uma escala de mensuração capaz de estabelecer quanto talento, determinação, iniciativa, gênio e capacidade de criação foram destruídos pela indústria em sua impiedosa máquina de salsichas".
Parte da grandeza de Bergman residia na abordagem inflexível de seu trabalho -na sua recusa em ser processado pela máquina de salsichas.

Exposto a tentações
Mesmo assim, ao ler as cartas de negócios que ele trocava com seus agentes nos EUA, é possível perceber rapidamente que ficou exposto a muitas tentações e, como quase todos os outros grandes diretores europeus que o precederam, chegou bem perto de ser cooptado por Hollywood.
No começo dos anos 1960, Bergman era uma força importante no mercado norte-americano. "A Fonte da Virgem" (1960) conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro. "O Sétimo Selo" e "Morangos Silvestres" (ambos de 1957) haviam conquistado sucesso no circuito de cinema de arte. Os estúdios de Hollywood estavam desesperados para trabalhar com Bergman e dispostos a lhe pagar muito dinheiro.
"Meu sucesso depende de produzir filmes, que escrevo e dirijo sozinho", escreveu aos seus agentes norte-americanos, em 1959. Exibindo ou ingenuidade ou uma notável ousadia, ele perguntou se Hollywood estaria disposta a simplesmente "encomendar um filme meu, da mesma maneira que alguém encomenda um quadro ao pintor, sem primeiro dizer ao artista como o quadro deve ser. Acredito que essa seria a melhor das idéias".
Mas não era algo que pudesse acontecer, concretamente. O ponto de vista do sistema de Hollywood era tornar os cineastas parte da máquina. Eles eram mimados e recebiam pagamentos obscenos, mas eram obrigados a sacrificar sua independência. Essa era a natureza da barganha com o diabo que eles tinham de aceitar.
Como respondeu o agente de Bergman em uma carta, "no momento, não acredito que os grandes estúdios -e só eles são capazes de financiar produções importantes- simplesmente encomendem um filme feito por você, da forma que alguém encomendaria um quadro".

Lisonjeado
Mesmo assim, o cineasta sueco se sentia curioso e lisonjeado com o interesse que Hollywood demonstrava.
Uma das primeiras -e menos plausíveis- propostas que recebeu dos EUA era para que dirigisse o cantor e ator Harry Belafonte em uma cinebiografia do escritor russo Alexander Púchkin, em 1959.
"Eu agora abandonei em mente a idéia de fazer o filme de Belafonte", escreveu Bergman (em seu inglês idiossincrático) ao agente Bernie Wilens, da William Morris, a agência que o representava nos EUA. "Acredito que B não seja o ator que criará o gênio de Púchkin."
Eles continuaram a sugerir novos projetos que poderiam apresentar Bergman "ao público norte-americano". Não demorou muito para que propusessem a Bergman um filme intitulado "Jean Christophe", que seria estrelado por Hope Lange e produzido pelo marido da atriz, Don Murray.
"Hope Lange estrelou alguns filmes aqui. O senhor sem dúvida deve ter visto "Sob o Signo do Sexo" e "Caldeira do Diabo'", escreveu Wilens a Bergman, demonstrando confiança injustificada. Se havia um filme que Bergman provavelmente não teria assistido seria um melodrama de Hollywood como "Caldeira do Diabo". Mais um projeto abandonado.
David Selznick (um dos mais famosos produtores da história de Hollywood) convidou Bergman para passar uma semana com ele em Nassau a fim de discutir possíveis colaborações. Selznick acreditava que Bergman seria o diretor ideal para uma adaptação do romance "Vitória", de Joseph Conrad. Afinal, o cineasta sueco já havia trabalhado com Selznick.
"Na época eu era muito jovem e escrevi um roteiro de "Casa de Bonecas", de Ibsen, para o cinema", relembrava Bergman. "O sr. Selznick ainda me devi (sic) US$ 2 mil, que eu tinha o direito, pelo nosso contrato, de receber. Quando eu pedi que o contrato fosse cumprido, o representante de Selznick respondeu que eu deveria estar feliz por ter recebido alguma coisa."
Bergman ficou furioso quando as revistas especializadas em cinema anunciaram prematuramente que ele havia assinado um contrato com a Paramount. E tampouco se impressionava com os telefonemas nos quais os dirigentes do estúdio o cortejavam em pessoa. "Muitas vezes cogito sobre esses produtores", escreveu.
"Quando eles são apresentados a um artista, o tempo todo falam sobre como eles mesmos são artísticos. Falam de suas vidas, de suas complicações no casamento, de suas brincadeiras e de seus filmes. Eles ponderam e medem ininterruptamente o artista com quem estão falando e, inconscientemente, expõem sua espantosa falta de qualidades espirituais."
O diretor sueco admitia que seus encontros com os chefões dos estúdios o faziam recordar do famoso encontro entre Samuel Goldwyn e o dramaturgo George Bernard Shaw. "Caro Sr. Goldwyn, depois de nossas longas conversas agora compreendo que o senhor se interessa pela arte, e, eu, pelo dinheiro", Shaw teria dito ao magnata do cinema.
Mesmo assim, houve um projeto nos EUA que efetivamente atraiu o interesse de Bergman -uma adaptação de "A Queda", de Albert Camus.
Os direitos do romance haviam sido adquiridos pelo produtor Walter Wanger (veterano de Hollywood que havia trabalhado com Alfred Hitchcock e Fritz Lang).
Quando o projeto foi ventilado pela primeira vez, no final dos anos 1950, Camus ainda era vivo, e Bergman estava ávido por trabalhar com ele. Os primeiros sinais foram promissores. O diretor claramente se sentia fascinado pelo livro de Camus (sobre um advogado que cai em desgraça) e estava determinado a fazer um filme "sem meias-medidas, verdadeiramente impiedoso".
Não havia chance de isso acontecer. Os agentes já estavam ocupados fuçando na proposta do roteiro. A United Artists, a produtora envolvida, queria Grant e Ryan para os papéis principais. Bergman imediatamente rejeitou a idéia. "É uma coisa óbvia que eu mesmo vou escolher os atores", protestou. "Cary Grant é um ótimo ator de comédia, mas não tem as qualificações para interpretar o advogado em "A Queda"."
Foi até sugerido que Grant (admirador de Bergman) se encontrasse com o diretor em Londres para tentar convencê-lo a mudar de idéia. O diretor sueco recusou o encontro. E tampouco se mostrou mais receptivo quando Laurence Olivier foi sugerido como alternativa para o papel.
Depois que Camus morreu, em 1960, ele abandonou a idéia de dirigir "A Queda".
Projetos norte-americanos continuaram a ser sugeridos, mas àquela altura até mesmo os agentes aceitavam, se bem que a contragosto, que Bergman não era mais um diretor mercenário, pronto a se integrar ao mais novo "pacote" de Hollywood, condicionado à participação de astros. Ele viria a fazer filmes em inglês ("A Hora do Amor" e "O Ovo da Serpente") e a trabalhar com atores norte-americanos (Elliott Gould e David Carradine, respectivamente).

Jean Seberg o assedia
No entanto a idéia -que parecia plausível no começo dos anos 60- de que ele viesse a seguir os passos de colegas suecos como Victor Sjöström e Mauritz Stiller e tentar carreira em Hollywood não demorou a ser abandonada.
Mesmo assim, algumas figuras de Hollywood continuaram intensamente curiosas sobre ele. Entre as mais pungentes cartas de negócios do arquivo Bergman, há uma mensagem enviada a ele por Jean Seberg, a cultuada atriz norte-americana, em janeiro de 1979, o ano em que ela viria a se suicidar.
"O senhor é um homem muito ocupado, e serei breve", ela escreveu com uma esferográfica azul em carta endereçada a Bergman na Companhia de Ópera de Estocolmo. "Há muitos anos desejo trabalhar com o senhor. Talvez o senhor conheça meu trabalho no cinema, por exemplo "Acossado" e "Santa Joana" [dirigido por Otto Preminger]".
Ela informou a Bergman que pesava 40 quilos e tinha 47 anos. "Pareço-me um pouco com Bibi Andersson", ela sugeriu. Era fato -ela se parecia demais com Andersson, uma das mais conhecidas atrizes de Bergman. Ambas tinham algo de sílfide, com cabelos loiros cortados à escovinha. Em um pós-escrito, ela perguntava: "O senhor já fez psicanálise?".
A carta estava escrita em sueco, um idioma que Seberg estava apenas começando a aprender (talvez com o propósito expresso de abordar Bergman). "Não seria possível, pergunto humildemente, tentarmos fazer um filme juntos?", ela perguntava, e se despedia com: "Da melhor amiga que o senhor pode ter". Bergman, ao que parece, não respondeu.


Este texto foi publicado no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci.


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