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'Hollywood não serve'
CARTAS RECÉM-DESCOBERTAS REVELAM QUE O DIRETOR SUECO INGMAR BERGMAN FOI CORTEJADO POR ESTÚDIOS DOS EUA, MAS RECUSOU PROJETOS COM ASTROS COMO CARY GRANT E LAURENCE OLIVIER
GEOFFREY MACNAB
Cary Grant em "O Sétimo Selo"? Laurence Olivier em "Morangos Silvestres"?
Jennifer Jones em
"Monika e o Desejo"? Robert
Ryan em "A Fonte da Virgem"?
Harry Belafonte em "Gritos e
Sussurros"? Jean Seberg em
"Persona"?
É claro que escalar esses atores para os filmes de Ingmar
Bergman teria sido absurdo.
No entanto encontrei documentos no Arquivo Ingmar
Bergman do Instituto Sueco de
Cinema que demonstram que
todas eles discutiram a possibilidade de trabalhar com o cineasta, em diferentes ocasiões.
Em uma palestra a alunos da
Universidade de Lund, em
1959, sobre "o que é preciso para fazer um filme", Bergman
disse que os cineastas são como
magos, mas sua capacidade de
criar mágica depende da capacidade dos filmes que dirigem
para gerar dinheiro. No momento em que os filmes perdem sua audiência, "o mago
perde sua varinha de condão".
Estamos tão acostumados à
idéia de Bergman como um
grande diretor do cinema de
arte europeu que é fácil ignorar
as batalhas que ele -como
qualquer outro cineasta- teve
de travar com os investidores,
produtores e distribuidores
quanto à seleção dos atores que
viriam a integrar seus elencos.
"Produzir uma enorme tênia
de 2.500 metros de comprimento, que suga vida e alma
dos atores, produtores e diretores. É isso que fazer um filme
envolve", explicou, em tom
sombrio. "Isso e muitas outras
coisas, e coisas muito piores."
Bergman considerava o "negócio" do cinema desgastante e
ocasionalmente destrutivo para o espírito. "Seria interessante", sugeriu, "se um dia um
cientista fosse capaz de inventar uma escala de mensuração
capaz de estabelecer quanto talento, determinação, iniciativa,
gênio e capacidade de criação
foram destruídos pela indústria em sua impiedosa máquina
de salsichas".
Parte da grandeza de Bergman residia na abordagem inflexível de seu trabalho -na
sua recusa em ser processado
pela máquina de salsichas.
Exposto a tentações
Mesmo assim, ao ler as cartas
de negócios que ele trocava
com seus agentes nos EUA, é
possível perceber rapidamente
que ficou exposto a muitas tentações e, como quase todos os
outros grandes diretores europeus que o precederam, chegou
bem perto de ser cooptado por
Hollywood.
No começo dos anos 1960,
Bergman era uma força importante no mercado norte-americano. "A Fonte da Virgem"
(1960) conquistou o Oscar de
melhor filme estrangeiro. "O
Sétimo Selo" e "Morangos Silvestres" (ambos de 1957) haviam conquistado sucesso no
circuito de cinema de arte. Os
estúdios de Hollywood estavam desesperados para trabalhar com Bergman e dispostos a
lhe pagar muito dinheiro.
"Meu sucesso depende de
produzir filmes, que escrevo e
dirijo sozinho", escreveu aos
seus agentes norte-americanos, em 1959. Exibindo ou ingenuidade ou uma notável ousadia, ele perguntou se Hollywood estaria disposta a simplesmente "encomendar um
filme meu, da mesma maneira
que alguém encomenda um
quadro ao pintor, sem primeiro
dizer ao artista como o quadro
deve ser. Acredito que essa seria a melhor das idéias".
Mas não era algo que pudesse
acontecer, concretamente. O
ponto de vista do sistema de
Hollywood era tornar os cineastas parte da máquina. Eles
eram mimados e recebiam pagamentos obscenos, mas eram
obrigados a sacrificar sua independência. Essa era a natureza
da barganha com o diabo que
eles tinham de aceitar.
Como respondeu o agente de
Bergman em uma carta, "no
momento, não acredito que os
grandes estúdios -e só eles são
capazes de financiar produções
importantes- simplesmente
encomendem um filme feito
por você, da forma que alguém
encomendaria um quadro".
Lisonjeado
Mesmo assim, o cineasta
sueco se sentia curioso e lisonjeado com o interesse que
Hollywood demonstrava.
Uma das primeiras -e menos plausíveis- propostas que
recebeu dos EUA era para que
dirigisse o cantor e ator Harry
Belafonte em uma cinebiografia do escritor russo Alexander
Púchkin, em 1959.
"Eu agora abandonei em
mente a idéia de fazer o filme
de Belafonte", escreveu Bergman (em seu inglês idiossincrático) ao agente Bernie Wilens,
da William Morris, a agência
que o representava nos EUA.
"Acredito que B não seja o ator
que criará o gênio de Púchkin."
Eles continuaram a sugerir
novos projetos que poderiam
apresentar Bergman "ao público norte-americano". Não demorou muito para que propusessem a Bergman um filme intitulado "Jean Christophe",
que seria estrelado por Hope
Lange e produzido pelo marido
da atriz, Don Murray.
"Hope Lange estrelou alguns
filmes aqui. O senhor sem dúvida deve ter visto "Sob o Signo do
Sexo" e "Caldeira do Diabo'", escreveu Wilens a Bergman, demonstrando confiança injustificada. Se havia um filme que
Bergman provavelmente não
teria assistido seria um melodrama de Hollywood como
"Caldeira do Diabo". Mais um
projeto abandonado.
David Selznick (um dos mais
famosos produtores da história
de Hollywood) convidou Bergman para passar uma semana
com ele em Nassau a fim de discutir possíveis colaborações.
Selznick acreditava que Bergman seria o diretor ideal para
uma adaptação do romance
"Vitória", de Joseph Conrad.
Afinal, o cineasta sueco já havia
trabalhado com Selznick.
"Na época eu era muito jovem e escrevi um roteiro de
"Casa de Bonecas", de Ibsen, para o cinema", relembrava Bergman. "O sr. Selznick ainda me
devi (sic) US$ 2 mil, que eu tinha o direito, pelo nosso contrato, de receber. Quando eu
pedi que o contrato fosse cumprido, o representante de Selznick respondeu que eu deveria
estar feliz por ter recebido alguma coisa."
Bergman ficou furioso quando as revistas especializadas
em cinema anunciaram prematuramente que ele havia assinado um contrato com a Paramount. E tampouco se impressionava com os telefonemas
nos quais os dirigentes do estúdio o cortejavam em pessoa.
"Muitas vezes cogito sobre esses produtores", escreveu.
"Quando eles são apresentados a um artista, o tempo todo
falam sobre como eles mesmos
são artísticos. Falam de suas vidas, de suas complicações no
casamento, de suas brincadeiras e de seus filmes. Eles ponderam e medem ininterruptamente o artista com quem estão falando e, inconscientemente, expõem sua espantosa
falta de qualidades espirituais."
O diretor sueco admitia que
seus encontros com os chefões
dos estúdios o faziam recordar
do famoso encontro entre Samuel Goldwyn e o dramaturgo
George Bernard Shaw. "Caro
Sr. Goldwyn, depois de nossas
longas conversas agora compreendo que o senhor se interessa pela arte, e, eu, pelo dinheiro", Shaw teria dito ao
magnata do cinema.
Mesmo assim, houve um
projeto nos EUA que efetivamente atraiu o interesse de
Bergman -uma adaptação de
"A Queda", de Albert Camus.
Os direitos do romance haviam
sido adquiridos pelo produtor
Walter Wanger (veterano de
Hollywood que havia trabalhado com Alfred Hitchcock e
Fritz Lang).
Quando o projeto foi ventilado pela primeira vez, no final
dos anos 1950, Camus ainda era
vivo, e Bergman estava ávido
por trabalhar com ele. Os primeiros sinais foram promissores. O diretor claramente se
sentia fascinado pelo livro de
Camus (sobre um advogado
que cai em desgraça) e estava
determinado a fazer um filme
"sem meias-medidas, verdadeiramente impiedoso".
Não havia chance de isso
acontecer. Os agentes já estavam ocupados fuçando na proposta do roteiro. A United Artists, a produtora envolvida,
queria Grant e Ryan para os papéis principais. Bergman imediatamente rejeitou a idéia. "É
uma coisa óbvia que eu mesmo
vou escolher os atores", protestou. "Cary Grant é um ótimo
ator de comédia, mas não tem
as qualificações para interpretar o advogado em "A Queda"."
Foi até sugerido que Grant
(admirador de Bergman) se encontrasse com o diretor em
Londres para tentar convencê-lo a mudar de idéia. O diretor
sueco recusou o encontro. E
tampouco se mostrou mais receptivo quando Laurence Olivier foi sugerido como alternativa para o papel.
Depois que Camus morreu,
em 1960, ele abandonou a idéia
de dirigir "A Queda".
Projetos norte-americanos
continuaram a ser sugeridos,
mas àquela altura até mesmo
os agentes aceitavam, se bem
que a contragosto, que Bergman não era mais um diretor
mercenário, pronto a se integrar ao mais novo "pacote" de
Hollywood, condicionado à
participação de astros. Ele viria
a fazer filmes em inglês ("A Hora do Amor" e "O Ovo da Serpente") e a trabalhar com atores norte-americanos (Elliott
Gould e David Carradine, respectivamente).
Jean Seberg o assedia
No entanto a idéia -que parecia plausível no começo dos
anos 60- de que ele viesse a seguir os passos de colegas suecos
como Victor Sjöström e Mauritz Stiller e tentar carreira em
Hollywood não demorou a ser
abandonada.
Mesmo assim, algumas figuras de Hollywood continuaram
intensamente curiosas sobre
ele. Entre as mais pungentes
cartas de negócios do arquivo
Bergman, há uma mensagem
enviada a ele por Jean Seberg, a
cultuada atriz norte-americana, em janeiro de 1979, o ano
em que ela viria a se suicidar.
"O senhor é um homem muito ocupado, e serei breve", ela
escreveu com uma esferográfica azul em carta endereçada a
Bergman na Companhia de
Ópera de Estocolmo. "Há muitos anos desejo trabalhar com o
senhor. Talvez o senhor conheça meu trabalho no cinema, por
exemplo "Acossado" e "Santa
Joana" [dirigido por Otto Preminger]".
Ela informou a Bergman que
pesava 40 quilos e tinha 47
anos. "Pareço-me um pouco
com Bibi Andersson", ela sugeriu. Era fato -ela se parecia demais com Andersson, uma das
mais conhecidas atrizes de
Bergman. Ambas tinham algo
de sílfide, com cabelos loiros
cortados à escovinha. Em um
pós-escrito, ela perguntava: "O
senhor já fez psicanálise?".
A carta estava escrita em sueco, um idioma que Seberg estava apenas começando a aprender (talvez com o propósito expresso de abordar Bergman).
"Não seria possível, pergunto
humildemente, tentarmos fazer um filme juntos?", ela perguntava, e se despedia com: "Da
melhor amiga que o senhor pode ter".
Bergman, ao que parece, não
respondeu.
Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.
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