|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Todo o esforço do pensador italiano foi o de libertar o marxismo da herança cientificista e positivista
O pensamento heterodoxo
MICHAEL LÖWY
especial para a Folha
Entre as várias razões que estimularam a recepção de Gramsci
no Brasil a partir dos anos 60,
uma das mais importantes foi
sem dúvida o desejo de levantar a
chapa de chumbo do positivismo,
que pesava com várias toneladas
não só sobre a cultura "republicana" brasileira desde o fim do século 19, mas também sobre a cultura
política da esquerda marxista.
Mais conjunturalmente, se tratava de encontrar pontos de apoio
político-filosóficos para resistir à
onda de marxo-positivismo estruturalista promovida por Althusser e seus discípulos, que vinha tendo grande impacto na
França e no Brasil. É nesse contexto que vários pensadores marxistas brasileiros -entre os quais
Carlos Nelson Coutinho tem um
papel pioneiro- vão começar a
introduzir o pensamento de
Gramsci no Brasil, traduzindo
suas obras e utilizando seus conceitos para interpretar a realidade
brasileira.
A obra de Antonio Gramsci representa, com efeito, uma das
tentativas mais radicais de libertar
o marxismo da herança cientificista e positivista que predominou na versão "ortodoxa", tanto
da Segunda Internacional (Plekhanov, Kautsky) como da Terceira (Bukharin, Stálin).
Na obra de juventude de
Gramsci (1916-19) a referência ao
idealismo hegeliano de Croce e
Labriola ou ao voluntarismo ético
de Bergson e Sorel é essencialmente um meio para lutar contra
a ortodoxia "científica" e o determinismo economicista dos representantes oficiais do marxismo à
cabeça do movimento socialista
italiano: Claudio Treves e Filippo
Turati. Esse "bergsonismo" de
Gramsci, para citar um termo ambíguo utilizado com frequência
por seus adversários positivistas,
será progressivamente superado
("aufgehoben") no curso de sua
evolução política e filosófica como dirigente comunista italiano.
O famoso artigo de 1917, celebrando a insurreição de outubro
como "uma revolução contra o
capital", deve também ser visto
nesse contexto, isto é, como uma
tentativa de romper com o que
Gramsci chamava "as escórias
positivistas e naturalistas" do
marxismo.
Encarcerado pela polícia fascista em 1926, Gramsci vai redigir na
prisão, no curso dos anos 1929-35,
uma série de notas sobre temas filosóficos, políticos e culturais que
constituem um dos pontos altos
na historia do pensamento crítico
no século 20. Ao definir o marxismo como filosofia da práxis e como um método ao mesmo tempo
radicalmente humanista e radicalmente historicista, ele se situa
num plano infinitamente superior ao "diamat" (materialismo
dialético) soviético e suas inúmeras tentativas de "aplicação". Isso
também se traduz, no plano político, por um "esfriamento", no
curso dos anos 30, das relações
entre Gramsci encarcerado e a direção do Partido Comunista Italiano (Palmiro Togliatti).
O historicismo radical implica,
antes de tudo, a negação de qualquer tentativa de interpretar a
realidade social segundo o método materialista científico-natural,
buscando descobrir "leis naturais" da sociedade que permitam
"prever cientificamente" o curso
dos acontecimentos. Ele exige
também que o materialismo histórico seja aplicado a si mesmo,
definindo assim seus próprios limites histórico-sociais. Segundo
Gramsci, compreender a historicidade do marxismo significa reconhecer que ele pode -ou melhor, deve- ser superado pelo
desenvolvimento histórico, com a
passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, da sociedade divida em classes à sociedade (comunista) sem classes. Evidentemente, não é possível dizer,
sem cair no utopismo, qual será o
conteúdo dessa nova forma de
pensamento. Isso também significa, inversamente, que, enquanto
vivemos num mundo dominado
pelo capitalismo e pelas classes
exploradoras, o marxismo continua sendo a forma mais avançada
de ação/interpretação social.
Polemizando contra o historicismo, Louis Althusser insistia
que Marx era "um homem de
ciência como os outros", comparável, em seu terreno, a Lavoisier
ou Galileu. Sem o dizer de forma
explícita, ele se opunha diretamente a uma tese de Gramsci, que
escrevia: "Graziadei (...) coloca
Marx como unidade em uma série de grandes cientistas. Erro fundamental: nenhum dos outros
produziu uma concepção original
e integral do mundo". Essa visão-do-mundo, a filosofia da práxis,
não pode ser decomposta em
uma ciência positiva de um lado e
uma ética do outro: ela supera, em
uma síntese dialética, a oposição
tradicional entre "fatos" e "valores", ser e dever-ser, conhecimento e ação, teoria e prática.
Na sua tentativa de reconstrução do marxismo e do comunismo, Gramsci submete a uma crítica radical a doutrina predominante na Terceira Internacional,
que tem uma de suas manifestações mais inteligentes no livro de
Nikolai Bukharin sobre o materialismo histórico, o "Manual Popular de Sociologia Marxista"
(1922). Trata-se, para o autor dos
"Cadernos", de uma obra totalmente prisioneira de um conceito
de ciência copiado das ciências
naturais -segundo o princípio
fixado pelo positivismo de que estas são a única forma possível de
ciência. O resultado é que a compreensão de Bukharin da história
não é dialética, mas inspirada por
um "chato e vulgar evolucionismo" que pretende fazer "previsões científicas" análogas às que
buscam as "ciências exatas".
É interessante observar que alguns anos antes Georg Lukács havia criticado o manual de Bukharin em termos bastante semelhantes na revista "Archiv für die
Geschichte des Sozialismus und
der Arbeiterbewegung" (1925). É
muito pouco provável que
Gramsci tivesse lido esse ensaio:
simplesmente os dois partilhavam uma mesma orientação filosófica, historicista/dialética, humanista revolucionária e antipositivista, da qual participavam
também outros pensadores marxistas como Karl Korsch ou
-desconhecido na Europa- o
peruano José Carlos Mariátegui.
Gramsci praticamente não conhecia os trabalhos de Lukács; e
este último só descobriu o marxista italiano a partir dos anos 60.
Mas, numa entrevista de julho de
1971 -pouco antes de sua morte- para a revista inglesa "New
Left Review", o filósofo húngaro
reconhece que ele, Karl Korsch e
Antonio Gramsci haviam tentado
lutar, cada um à sua maneira,
contra o positivismo e o mecanicismo que o movimento comunista havia herdado da Segunda
Internacional. Lukács acrescenta
o seguinte comentário retrospectivo: "Gramsci era o melhor entre
nós".
Michael Löwy é cientista político, professor
da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, e autor de "Evolução Política de Lukács" (Cortez) e "Redenção e Utopia"
(Companhia das Letras), entre outros.
Texto Anterior: Cronologia Próximo Texto: Guido Liguori: Um comunista democrático Índice
|