São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CULTURA
O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de "O Império do Efêmero", faz palestras em Porto Alegre e em São Paulo
A era da mulher sujeito

JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha

Criativo, irreverente e politicamente incorreto até a medula, o filósofo Gilles Lipovetsky, 55, autor de best sellers polêmicos, como "O Império do Efêmero - A Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas" (Companhia das Letras), "A Era do Vazio - Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo" e "O Crepúsculo do Dever - A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos", chega ao Brasil para uma série de conferências. Na contramão de todos os credos negativos das perspectivas críticas, Lipovetsky prevê um século 21 duro, de exclusão, mas também marcado por um individualismo cada vez mais emancipador, pela passagem da paixão à amizade e pelo advento da "terceira mulher".
"A Terceira Mulher" é o título do seu mais recente livro, cujos direitos de publicação já foram adquiridos pela Companhia das Letras. Em oposição às análises de pensadores como Pierre Bourdieu, Gilles Lipovetsky descreve a condição da mulher nesta virada de século com traços capazes de desarvorar feministas de carteirinha e machistas contumazes. Depois da mulher-objeto, segundo ele, chegou o tempo da mulher- sujeito.
Na entrevista a seguir, Lipovetsky aborda os seus temas prediletos: mídia, moda, a condição feminina e o individualismo contemporâneo. Discípulo de Tocqueville, enquanto clama pelo direito à frivolidade, Lipovetsky recupera o sentido do termo livre-pensador.
Em Porto Alegre, na próxima terça-feira, dia 23, às 19h, a convite da Fundação Iberê Camargo, Lipovetsky falará sobre "Arte Contemporânea e Pós-modernidade", no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano. Antes, na Faculdade de Comunicação da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), dialogará com os integrantes do Núcleo de Tecnologias do Imaginário sobre "Sedução, Publicidade e Pós-Modernidade". Na quarta, dia 24, às 19h30, participará em São Paulo de debate no auditório da Folha sobre "Ética e Política na Sociedade Contemporânea", com o diretor da Fundação Iberê Camargo, Fernando Schüler.

Folha - Os títulos dos seus livros são, em geral, muito pessimistas: "O Império do Efêmero", "A Era do Vazio" etc., mas as suas análises da sociedade contemporânea não o são. Como explicar esse paradoxo?
Gilles Lipovetsky -
De fato. Há uma contradição, pois todos esses livros foram escritos em reação a leituras maniqueístas dos fenômenos sociais contemporâneos e, mais especificamente, da pós-modernidade. Fazem eco a um problema visto, em geral, negativamente. Era preciso partir dos diagnósticos apresentados como inatacáveis para virá-los do avesso. Assim, a pós-modernidade é enfocada do ângulo do paradoxo. De resto, a contemporaneidade é isso mesmo, uma síntese paradoxal: efêmero e estabilidade geram mais democracia; moda, consumo e direitos humanos sinalizam uma sociedade de escolha e de ênfase no individualismo. Retomo os paradoxos da democracia já assinalados por Tocqueville. Vivemos no paradoxo.

Folha - Em "O Império do Efêmero", por exemplo, na contramão do pensamento politicamente correto, o sr. sustenta que a moda, fenômeno ocidental e moderno por excelência, é libertária, emancipadora e marca de uma sociedade democrática. Essa posição não legitima tranquilamente a sociedade de consumo?
Lipovetsky -
Não me incomoda nem um pouco legitimar a sociedade de consumo. Sou favorável a ela. Critico, em contrapartida, o fato de a sociedade de consumo não conseguir incluir todos os indivíduos na sua esteira. O problema é a exclusão, não o consumo. Dito de outra forma, criticável não é a extensão da sociedade de consumo, mas o seu déficit. De resto, por sociedade de consumo não se deve entender simplesmente um individualismo egoísta e o reino dos shopping centers. Há também, na atualidade, um retorno da religião, uma preocupação com a identidade, com o reconhecimento e a valorização de si, com a aceitação do outro. De maneira geral, as afirmações negativas sobre a sociedade de consumo revelam os estereótipos, transformados em discursos politicamente corretos, dos anos 60.

Folha - A exclusão, portanto, não resulta da sociedade de consumo, mas convive com ela?
Lipovetsky -
Sejamos claros: a sociedade de consumo mais libera do que oprime. A obsessão pelo "ter", obviamente, domina mais os pobres do que os ricos, pois vem da necessidade. Existe, entre teóricos apocalípticos, um discurso segundo o qual o desejo de consumir derivaria da manipulação publicitária. É falso. A publicidade não consegue fazer com que se deseje o indesejável. Nos países europeus ricos, a obsessão pelo "ter" passou. Hoje, as grandes preocupações são com o desemprego, com a insegurança, com o futuro, com a educação das crianças, com uma nova qualidade de vida e com novas formas de espiritualidade.

Folha - Moda e publicidade não devem então ser vistas como faces da mesma moeda da exclusão?
Lipovetsky -
Claro que a moda também pode provocar exclusão. Mas não é o essencial. Os jovens, por exemplo, adotam modas excludentes. Há, entre eles, uma verdadeira tirania de modelos. Quem não se encaixa, é rejeitado. Antes, a juventude seguia o modelo dos pais. Isso acabou. Também o critério de classe social cedeu lugar à predominância dos grupos de filiação. Os adolescentes têm obsessão por marcas e agem por mimetismo, em razão do grupo que integram, gerando, sob pretensa forma de diferenciação, um intenso conformismo. Mas isso se dilui com a idade. A intolerância comportamental dos adolescentes, em relação à música, às roupas, aos gostos, dissolve-se com a entrada no mundo adulto.

Folha - O sr. afirma que o desejo do novo coincide com a aspiração à autonomia individual. Mas a moda não seria, ao contrário, o resultado da sedução imposta pela publicidade, ao evidenciar desejos latentes dos consumidores, logo da falsa escolha e da simulação de autonomia?
Lipovetsky -
O novo, enquanto fenômeno da modernidade, segue a mesma lógica da moda: produz maior autonomia em relação aos modelos. A moda, claro, cria modelos, mas eles não são imperativos. Pode-se negociar com eles, ressignificá-los ou simplesmente ignorá-los. Vivemos uma busca de estilos que devem exprimir não a posição social, mas o gosto pessoal e a idade de cada um. Esta se tornou mais importante do que a expressão de uma identidade socioeconômica. Em tudo isso, reaparece sempre o mesmo elemento: a suposição de uma influência nefasta da mídia sobre os indivíduos. Ora, os grupos de filiação são mais importantes e filtram todas as mensagens.

Folha - Em seu livro "O Crepúsculo do Dever", o sr. fala de neomoralismo no que seria a nova etapa do individualismo contemporâneo. Em que consiste o neomoralismo?
Lipovetsky -
Prefiro falar, realmente, em pós-moralismo. Com o hedonismo, as sociedades contemporâneas entram numa civilização em que a moral heróica ou sacrificial não tem mais legitimidade. Não se quer mais expor a vida por uma causa, ideológica, política ou religiosa. A vida tem mais valor do que as causas. Assim, os valores mudam, passam do sacrifício ao respeito, à tolerância, ao bem-estar. O sonho do paraíso futuro cede lugar à busca da satisfação imediata. Não se trata de cinismo, mas de um certo pragmatismo. A indignação moral continua a existir, assim como a ajuda ao próximo e o humanitarismo, porém sem rígida disciplina moral ou valorização do risco físico.

Folha - Em vez de cinismo, niilismo?
Lipovetsky -
Não convém "demonizar" o niilismo, que é diferente do individualismo. Para mim, o individualismo equivale ao desenvolvimento da emancipação. Implica tolerância, liberdade de escolha e comprometimento sem imposição. Não é verdade que estejamos desinteressados de tudo. A luta pelos direitos humanos está aí para demonstrar o contrário. Em contraposição, experimentamos uma época de menor regulamentação moral.

Folha - Neste novo mundo pragmático e liberal, critica-se muito a crise de valores e a perda de referências, ao mesmo tempo elogia-se ou denuncia-se, conforme o paradigma adotado, o avanço do hedonismo e do narcisismo. O século 21 começará sob o signo de uma nova ética?
Lipovetsky -
Não, não se trata de uma nova ética. Nossas sociedades ampliam os valores judaico-cristãos. Há uma nova regulação dos valores morais, com o aprofundamento dos ideais do Iluminismo, como o respeito ao outro, a tolerância, a liberdade, a recusa da escravidão. Nessa nova regulação, a tradição e a Igreja perderam o lugar privilegiado que possuíam. Passamos da ilusão de transcendência à verdadeira imanência. Temos uma axiomática de base: o humanismo.

Folha - Pode-se falar em humanismo quando se denuncia o fim de todas as utopias?
Lipovetsky -
Quanto a isso, não tenho dúvidas: não existem mais utopias coletivas. O neo-individualismo não exclui, porém, utopias pessoais e projetos grupais. Trata-se de uma vitória da democracia liberal. Na crítica à democracia, abriga-se o ressentimento dos intelectuais marxistas. Em outras palavras, essa crítica identifica o fracasso dos intelectuais, obrigados a exagerar, a explorar o espetacular, para tentarem legitimar-se enquanto intérpretes do social. O intelectual crítico só faz sentido se tudo estiver mal. Este fim de século assinala uma extraordinária crise de identidade dos intelectuais.

Folha - Como o sr. vê todas as denúncias, entre as quais as de Pierre Bourdieu, a respeito de um certo retorno da barbárie nas sociedades contemporâneas?
Lipovetsky -
Discordo radicalmente. A pós-modernidade equivale, certo, à sociedade de consumo. Mas não é sinônimo de neoliberalismo. Como interpretá-la: inferno climatizado? Homem unidimensional, retomando Marcuse? Sociedade do espetáculo, recuperando Debord? Ou consolidação da democracia e aumento do nível de emancipação? Existem duas hipóteses centrais para o exame das sociedades ocidentais contemporâneas. Na primeira, sobressai o consumo, a uniformização dos modos de vida, a globalização econômica, a hegemonia de certas marcas e a massificação. Na segunda, observa-se a liberação em relação à tradição, às instituições, à Igreja, ao sagrado etc., com o consequente aumento da autonomia individual. Abordar somente a manipulação é uma forma de manipular as pessoas. Estamos vivendo uma revolução individualista subterrânea. Por meio dela, a condição de existência está sendo mudada. Estamos longe da barbárie, apesar da desigualdade, da exclusão, da miséria, da solidão de muitos, da depressão e da incerteza.

Folha - A democracia superou os adjetivos a ela aplicados por seus críticos?
Lipovetsky -
A crítica na democracia, pluralista, é muito forte. Pode-se atacar tudo, mas há uma idéia, hoje, incontestável: o valor da própria democracia. Tudo se discute, do direito dos homossexuais a adotarem crianças, passando pelo sistema de proteção social e pela defesa do meio ambiente, até a clonagem de seres humanos. No entanto, a democracia e o mercado predominarão, certamente, por muitos anos, como incontornáveis. Resta saber como organizá-los melhor, como tirar deles mais justiça e igualdade etc. A crítica social revolucionária morreu, não o poder crítico e de pressão no interior da democracia. Bourdieu representa o intelectual apocalíptico que "demoniza" a mídia sem ver que ela também possui capacidades emancipadoras. Sua análise é unidimensional.

Folha - Por que então tanto interesse pelas idéias de Bourdieu?
Lipovetsky -
Talvez porque ele encarna o intelectual "promotor", acusador, ressentido. Há má-fé nessas análises sobre a mídia, por exemplo, por parte de gente que não deixa de colher os benefícios da exposição na própria mídia. Por outro lado, existe uma dramatização excessiva de certos temas. A crítica, quando apocalíptica, equivale à estupidez.

Folha - Seu mais recente livro chama-se "A Terceira Mulher". Bourdieu também abordou recentemente a temática da condição feminina. Para um mesmo objeto, dois olhares masculinos divergentes?
Lipovetsky -
No livro "A Dominação Masculina", Bourdieu sugere que, apesar de todas as transformações no imaginário ocidental do século 20, a condição da mulher permaneceu a mesma. Ele é cego. Não percebe o quanto o lugar da mulher na sociedade mudou. Houve a democratização da vida sexual, a diminuição da distância entre os papéis masculino e feminino, a entrada em massa da mulher no universo do trabalho e tantas outras coisas que revolucionaram a situação tradicional homem/mulher. Como então sustentar que todas as mudanças não passaram de meras aparências? A sociologia de certos intelectuais peca pela obsessão da crítica total. Trata-se, em realidade, insisto, de autolegitimação pelo excesso.

Folha - Por que "terceira mulher"? Quais foram as outras duas?
Lipovetsky -
O século 21 não verá a extinção das diferenças sexuais como pensam alguns. Depois de séculos de dominação cultural masculina, a mulher vai assumir, cada vez mais, lugar de destaque. A terceira mulher tem hoje uns 40 anos. A primeira foi a da imagem mais tradicional, a dos mitos de Eva e de Pandora, "demonizada" e desprezada pelos homens, tida, constitutivamente, como inferior. A segunda mulher, a partir da Idade Média, começou a ser idealizada. Deixou de ser o mal para ser a musa, a mãe, o objeto de adoração. Valorizada, sai do inferno para o pedestal. A terceira mulher, no século 21, será ainda mais emancipada do que já é, atuando na política, na arte, na direção de empresas, em tudo, mais do que nunca. Entraremos no século da mulher-sujeito.

Folha - Em "A Terceira Mulher", o sr. retoma a idéia de progresso da emancipação individual, no caso, feminina. A liberação da mulher, tão defendida nos anos 60, produziu todos os seus frutos?
Lipovetsky -
Todos os frutos, ainda não. Mas, depois de séculos de submissão, a mulher-objeto finalmente passou a ter um futuro aberto, a ser determinado por suas práticas, escolhas, acertos e erros, e não mais pelas decisões dos homens ou pela tradição. Há uma nova aliança, de resto, entre tradição e individualismo. Na primeira fase do feminismo, postulava-se uma ruptura total com o imaginário anterior. Assim como se sonhava com uma sociedade sem classes, projetava-se um mundo sem distinções sexuais, ao menos funcionais. Hoje, entretanto, as mulheres não rejeitam mais uma certa ascendência sobre coisas como a educação das crianças, uma postura existencial mais amorosa, a ênfase na relação entre amor e sexualidade. Elas recusam o que impede a autonomia. Por exemplo, casar virgem.

Folha - Também no campo feminino passou-se da revolução à reforma?
Lipovetsky -
Certo é que inexiste inércia. Deixou-se de lado o ideal da ruptura total e adotou-se a pragmática da reciclagem. Nesse nível de transformação, tem-se uma mulher livre, indeterminada, aberta para o devir. Pode-se continuar a valorizar a beleza feminina, mas isso não constitui mais um símbolo da condição de mulher objeto. Tudo isso fará do século 21 um tempo de nova sensibilidade.

Folha - Quais serão as principais características dessa nova sensibilidade?
Lipovetsky -
Haverá uma efervescência, uma intensa sociabilidade entre as mulheres, o que afetará também o comportamento masculino. Depois do culto da paixão, voltaremos a sentimentos mais tranquilos, que eram importantes para os epicuristas e em Aristóteles, como a amizade. Já estamos experimentando o retorno das festas. Na Europa, a música tecno tem servido para mostrar um corpo social reunido. Haverá, enfim, o direito à superficialidade. Nietzsche dizia que devemos ser superficiais, por profundidade.

Folha - O século 21 será, portanto, feminino e "light"?
Lipovetsky -
Não. A divisão de papéis sexuais, como disse, não desaparecerá. As sociedades do século 21 serão duras. Os desafios do futuro já estão diante de nós: vencer a crise social, diminuir a exclusão, superar a dualidade da democracia, na qual convivem miséria e desenvolvimento, consolidar certos avanços. Ninguém quer voltar atrás no individualismo em se tratando de contracepção, divórcio, liberdade de escolha. Quem gostaria de retornar à rigidez da disciplina partidária, aos casamentos arranjados, à sociedade industrial da exploração? Resta-nos avançar em relação à sociedade pós-moderna da exclusão. O apocalipse, porém, não acontecerá.


Juremir Machado da Silva é sociólogo, escritor e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, autor, entre outros, de "Anjos da Perdição" e "Fronteiras" (Sulina).


Texto Anterior: A investigação em suspenso
Próximo Texto: Livros - Antonio Delfim Netto: A criação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.