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CULTURA
O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de "O Império do Efêmero",
faz palestras em Porto Alegre e em São Paulo
A era da mulher sujeito
JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha
Criativo, irreverente e politicamente incorreto até a medula, o
filósofo Gilles Lipovetsky, 55, autor de best sellers polêmicos, como "O Império do Efêmero - A
Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas" (Companhia das
Letras), "A Era do Vazio - Ensaios
Sobre o Individualismo Contemporâneo" e "O Crepúsculo do Dever - A Ética Indolor dos Novos
Tempos Democráticos", chega ao
Brasil para uma série de conferências. Na contramão de todos os
credos negativos das perspectivas
críticas, Lipovetsky prevê um século 21 duro, de exclusão, mas
também marcado por um individualismo cada vez mais emancipador, pela passagem da paixão à
amizade e pelo advento da "terceira mulher".
"A Terceira Mulher" é o título
do seu mais recente livro, cujos
direitos de publicação já foram
adquiridos pela Companhia das
Letras. Em oposição às análises de
pensadores como Pierre Bourdieu, Gilles Lipovetsky descreve a
condição da mulher nesta virada
de século com traços capazes de
desarvorar feministas de carteirinha e machistas contumazes. Depois da mulher-objeto, segundo
ele, chegou o tempo da mulher-
sujeito.
Na entrevista a seguir, Lipovetsky aborda os seus temas prediletos: mídia, moda, a condição
feminina e o individualismo contemporâneo. Discípulo de Tocqueville, enquanto clama pelo direito à frivolidade, Lipovetsky recupera o sentido do termo livre-pensador.
Em Porto Alegre, na próxima
terça-feira, dia 23, às 19h, a convite da Fundação Iberê Camargo,
Lipovetsky falará sobre "Arte
Contemporânea e Pós-modernidade", no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano. Antes, na
Faculdade de Comunicação da
PUCRS (Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul),
dialogará com os integrantes do
Núcleo de Tecnologias do Imaginário sobre "Sedução, Publicidade e Pós-Modernidade". Na quarta, dia 24, às 19h30, participará em
São Paulo de debate no auditório
da Folha sobre "Ética e Política na
Sociedade Contemporânea", com
o diretor da Fundação Iberê Camargo, Fernando Schüler.
Folha - Os títulos dos seus livros são, em geral, muito pessimistas: "O Império do Efêmero",
"A Era do Vazio" etc., mas as
suas análises da sociedade contemporânea não o são. Como
explicar esse paradoxo?
Gilles Lipovetsky - De fato. Há
uma contradição, pois todos esses
livros foram escritos em reação a
leituras maniqueístas dos fenômenos sociais contemporâneos e,
mais especificamente, da pós-modernidade. Fazem eco a um
problema visto, em geral, negativamente. Era preciso partir dos
diagnósticos apresentados como
inatacáveis para virá-los do avesso. Assim, a pós-modernidade é
enfocada do ângulo do paradoxo.
De resto, a contemporaneidade é
isso mesmo, uma síntese paradoxal: efêmero e estabilidade geram
mais democracia; moda, consumo e direitos humanos sinalizam
uma sociedade de escolha e de ênfase no individualismo. Retomo
os paradoxos da democracia já assinalados por Tocqueville. Vivemos no paradoxo.
Folha - Em "O Império do Efêmero", por exemplo, na contramão do pensamento politicamente correto, o sr. sustenta
que a moda, fenômeno ocidental e moderno por excelência, é
libertária, emancipadora e marca de uma sociedade democrática. Essa posição não legitima
tranquilamente a sociedade de
consumo?
Lipovetsky - Não me incomoda
nem um pouco legitimar a sociedade de consumo. Sou favorável a
ela. Critico, em contrapartida, o
fato de a sociedade de consumo
não conseguir incluir todos os indivíduos na sua esteira. O problema é a exclusão, não o consumo.
Dito de outra forma, criticável
não é a extensão da sociedade de
consumo, mas o seu déficit. De
resto, por sociedade de consumo
não se deve entender simplesmente um individualismo egoísta
e o reino dos shopping centers.
Há também, na atualidade, um
retorno da religião, uma preocupação com a identidade, com o
reconhecimento e a valorização
de si, com a aceitação do outro.
De maneira geral, as afirmações
negativas sobre a sociedade de
consumo revelam os estereótipos,
transformados em discursos politicamente corretos, dos anos 60.
Folha - A exclusão, portanto,
não resulta da sociedade de
consumo, mas convive com ela?
Lipovetsky - Sejamos claros: a
sociedade de consumo mais libera do que oprime. A obsessão pelo
"ter", obviamente, domina mais
os pobres do que os ricos, pois
vem da necessidade. Existe, entre
teóricos apocalípticos, um discurso segundo o qual o desejo de
consumir derivaria da manipulação publicitária. É falso. A publicidade não consegue fazer com que
se deseje o indesejável. Nos países
europeus ricos, a obsessão pelo
"ter" passou. Hoje, as grandes
preocupações são com o desemprego, com a insegurança, com o
futuro, com a educação das crianças, com uma nova qualidade de
vida e com novas formas de espiritualidade.
Folha - Moda e publicidade
não devem então ser vistas como faces da mesma moeda da
exclusão?
Lipovetsky - Claro que a moda
também pode provocar exclusão.
Mas não é o essencial. Os jovens,
por exemplo, adotam modas excludentes. Há, entre eles, uma verdadeira tirania de modelos. Quem
não se encaixa, é rejeitado. Antes,
a juventude seguia o modelo dos
pais. Isso acabou. Também o critério de classe social cedeu lugar à
predominância dos grupos de filiação. Os adolescentes têm obsessão por marcas e agem por mimetismo, em razão do grupo que integram, gerando, sob pretensa
forma de diferenciação, um intenso conformismo. Mas isso se dilui
com a idade. A intolerância comportamental dos adolescentes, em
relação à música, às roupas, aos
gostos, dissolve-se com a entrada
no mundo adulto.
Folha - O sr. afirma que o desejo do novo coincide com a aspiração à autonomia individual.
Mas a moda não seria, ao contrário, o resultado da sedução
imposta pela publicidade, ao
evidenciar desejos latentes dos
consumidores, logo da falsa escolha e da simulação de autonomia?
Lipovetsky - O novo, enquanto
fenômeno da modernidade, segue a mesma lógica da moda: produz maior autonomia em relação
aos modelos. A moda, claro, cria
modelos, mas eles não são imperativos. Pode-se negociar com
eles, ressignificá-los ou simplesmente ignorá-los. Vivemos uma
busca de estilos que devem exprimir não a posição social, mas o
gosto pessoal e a idade de cada
um. Esta se tornou mais importante do que a expressão de uma
identidade socioeconômica. Em
tudo isso, reaparece sempre o
mesmo elemento: a suposição de
uma influência nefasta da mídia
sobre os indivíduos. Ora, os grupos de filiação são mais importantes e filtram todas as mensagens.
Folha - Em seu livro "O Crepúsculo do Dever", o sr. fala de neomoralismo no que seria a nova
etapa do individualismo contemporâneo. Em que consiste o
neomoralismo?
Lipovetsky - Prefiro falar, realmente, em pós-moralismo. Com
o hedonismo, as sociedades contemporâneas entram numa civilização em que a moral heróica ou
sacrificial não tem mais legitimidade. Não se quer mais expor a vida por uma causa, ideológica, política ou religiosa. A vida tem mais
valor do que as causas. Assim, os
valores mudam, passam do sacrifício ao respeito, à tolerância, ao
bem-estar. O sonho do paraíso futuro cede lugar à busca da satisfação imediata. Não se trata de cinismo, mas de um certo pragmatismo. A indignação moral continua a existir, assim como a ajuda
ao próximo e o humanitarismo,
porém sem rígida disciplina moral ou valorização do risco físico.
Folha - Em vez de cinismo, niilismo?
Lipovetsky - Não convém "demonizar" o niilismo, que é diferente do individualismo. Para
mim, o individualismo equivale
ao desenvolvimento da emancipação. Implica tolerância, liberdade de escolha e comprometimento sem imposição. Não é verdade que estejamos desinteressados de tudo. A luta pelos direitos
humanos está aí para demonstrar
o contrário. Em contraposição,
experimentamos uma época de
menor regulamentação moral.
Folha - Neste novo mundo
pragmático e liberal, critica-se
muito a crise de valores e a perda de referências, ao mesmo
tempo elogia-se ou denuncia-se, conforme o paradigma adotado, o avanço do hedonismo e
do narcisismo. O século 21 começará sob o signo de uma nova ética?
Lipovetsky - Não, não se trata
de uma nova ética. Nossas sociedades ampliam os valores judaico-cristãos. Há uma nova regulação dos valores morais, com o
aprofundamento dos ideais do
Iluminismo, como o respeito ao
outro, a tolerância, a liberdade, a
recusa da escravidão. Nessa nova
regulação, a tradição e a Igreja
perderam o lugar privilegiado que
possuíam. Passamos da ilusão de
transcendência à verdadeira imanência. Temos uma axiomática
de base: o humanismo.
Folha - Pode-se falar em humanismo quando se denuncia o
fim de todas as utopias?
Lipovetsky - Quanto a isso, não
tenho dúvidas: não existem mais
utopias coletivas. O neo-individualismo não exclui, porém, utopias pessoais e projetos grupais.
Trata-se de uma vitória da democracia liberal. Na crítica à democracia, abriga-se o ressentimento
dos intelectuais marxistas. Em
outras palavras, essa crítica identifica o fracasso dos intelectuais,
obrigados a exagerar, a explorar o
espetacular, para tentarem legitimar-se enquanto intérpretes do
social. O intelectual crítico só faz
sentido se tudo estiver mal. Este
fim de século assinala uma extraordinária crise de identidade
dos intelectuais.
Folha - Como o sr. vê todas as
denúncias, entre as quais as de
Pierre Bourdieu, a respeito de
um certo retorno da barbárie
nas sociedades contemporâneas?
Lipovetsky - Discordo radicalmente. A pós-modernidade equivale, certo, à sociedade de consumo. Mas não é sinônimo de neoliberalismo. Como interpretá-la:
inferno climatizado? Homem
unidimensional, retomando Marcuse? Sociedade do espetáculo, recuperando Debord? Ou consolidação da democracia e aumento
do nível de emancipação? Existem duas hipóteses centrais para
o exame das sociedades ocidentais contemporâneas. Na primeira, sobressai o consumo, a uniformização dos modos de vida, a globalização econômica, a hegemonia de certas marcas e a massificação. Na segunda, observa-se a liberação em relação à tradição, às
instituições, à Igreja, ao sagrado
etc., com o consequente aumento
da autonomia individual. Abordar somente a manipulação é
uma forma de manipular as pessoas. Estamos vivendo uma revolução individualista subterrânea.
Por meio dela, a condição de existência está sendo mudada. Estamos longe da barbárie, apesar da
desigualdade, da exclusão, da miséria, da solidão de muitos, da depressão e da incerteza.
Folha - A democracia superou
os adjetivos a ela aplicados por
seus críticos?
Lipovetsky - A crítica na democracia, pluralista, é muito forte.
Pode-se atacar tudo, mas há uma
idéia, hoje, incontestável: o valor
da própria democracia. Tudo se
discute, do direito dos homossexuais a adotarem crianças, passando pelo sistema de proteção
social e pela defesa do meio ambiente, até a clonagem de seres
humanos. No entanto, a democracia e o mercado predominarão, certamente, por muitos anos,
como incontornáveis. Resta saber
como organizá-los melhor, como
tirar deles mais justiça e igualdade
etc. A crítica social revolucionária
morreu, não o poder crítico e de
pressão no interior da democracia. Bourdieu representa o intelectual apocalíptico que "demoniza" a mídia sem ver que ela também possui capacidades emancipadoras. Sua análise é unidimensional.
Folha - Por que então tanto interesse pelas idéias de Bourdieu?
Lipovetsky - Talvez porque ele
encarna o intelectual "promotor",
acusador, ressentido. Há má-fé
nessas análises sobre a mídia, por
exemplo, por parte de gente que
não deixa de colher os benefícios
da exposição na própria mídia.
Por outro lado, existe uma dramatização excessiva de certos temas. A crítica, quando apocalíptica, equivale à estupidez.
Folha - Seu mais recente livro
chama-se "A Terceira Mulher".
Bourdieu também abordou recentemente a temática da condição feminina. Para um mesmo
objeto, dois olhares masculinos
divergentes?
Lipovetsky - No livro "A Dominação Masculina", Bourdieu sugere que, apesar de todas as transformações no imaginário ocidental do século 20, a condição da
mulher permaneceu a mesma. Ele
é cego. Não percebe o quanto o lugar da mulher na sociedade mudou. Houve a democratização da
vida sexual, a diminuição da distância entre os papéis masculino e
feminino, a entrada em massa da
mulher no universo do trabalho e
tantas outras coisas que revolucionaram a situação tradicional
homem/mulher. Como então
sustentar que todas as mudanças
não passaram de meras aparências? A sociologia de certos intelectuais peca pela obsessão da crítica total. Trata-se, em realidade,
insisto, de autolegitimação pelo
excesso.
Folha - Por que "terceira mulher"? Quais foram as outras
duas?
Lipovetsky - O século 21 não verá a extinção das diferenças sexuais como pensam alguns. Depois de séculos de dominação cultural masculina, a mulher vai assumir, cada vez mais, lugar de
destaque. A terceira mulher tem
hoje uns 40 anos. A primeira foi a
da imagem mais tradicional, a dos
mitos de Eva e de Pandora, "demonizada" e desprezada pelos
homens, tida, constitutivamente,
como inferior. A segunda mulher,
a partir da Idade Média, começou
a ser idealizada. Deixou de ser o
mal para ser a musa, a mãe, o objeto de adoração. Valorizada, sai
do inferno para o pedestal. A terceira mulher, no século 21, será
ainda mais emancipada do que já
é, atuando na política, na arte, na
direção de empresas, em tudo,
mais do que nunca. Entraremos
no século da mulher-sujeito.
Folha - Em "A Terceira Mulher", o sr. retoma a idéia de
progresso da emancipação individual, no caso, feminina. A liberação da mulher, tão defendida
nos anos 60, produziu todos os
seus frutos?
Lipovetsky - Todos os frutos,
ainda não. Mas, depois de séculos
de submissão, a mulher-objeto finalmente passou a ter um futuro
aberto, a ser determinado por
suas práticas, escolhas, acertos e
erros, e não mais pelas decisões
dos homens ou pela tradição. Há
uma nova aliança, de resto, entre
tradição e individualismo. Na primeira fase do feminismo, postulava-se uma ruptura total com o
imaginário anterior. Assim como
se sonhava com uma sociedade
sem classes, projetava-se um
mundo sem distinções sexuais, ao
menos funcionais. Hoje, entretanto, as mulheres não rejeitam
mais uma certa ascendência sobre
coisas como a educação das crianças, uma postura existencial mais
amorosa, a ênfase na relação entre
amor e sexualidade. Elas recusam
o que impede a autonomia. Por
exemplo, casar virgem.
Folha - Também no campo feminino passou-se da revolução
à reforma?
Lipovetsky - Certo é que inexiste inércia. Deixou-se de lado o
ideal da ruptura total e adotou-se
a pragmática da reciclagem. Nesse nível de transformação, tem-se
uma mulher livre, indeterminada,
aberta para o devir. Pode-se continuar a valorizar a beleza feminina, mas isso não constitui mais
um símbolo da condição de mulher objeto. Tudo isso fará do século 21 um tempo de nova sensibilidade.
Folha - Quais serão as principais características dessa nova
sensibilidade?
Lipovetsky - Haverá uma efervescência, uma intensa sociabilidade entre as mulheres, o que afetará também o comportamento
masculino. Depois do culto da
paixão, voltaremos a sentimentos
mais tranquilos, que eram importantes para os epicuristas e em
Aristóteles, como a amizade. Já
estamos experimentando o retorno das festas. Na Europa, a música tecno tem servido para mostrar
um corpo social reunido. Haverá,
enfim, o direito à superficialidade.
Nietzsche dizia que devemos ser
superficiais, por profundidade.
Folha - O século 21 será, portanto, feminino e "light"?
Lipovetsky - Não. A divisão de
papéis sexuais, como disse, não
desaparecerá. As sociedades do
século 21 serão duras. Os desafios
do futuro já estão diante de nós:
vencer a crise social, diminuir a
exclusão, superar a dualidade da
democracia, na qual convivem
miséria e desenvolvimento, consolidar certos avanços. Ninguém
quer voltar atrás no individualismo em se tratando de contracepção, divórcio, liberdade de escolha. Quem gostaria de retornar à
rigidez da disciplina partidária,
aos casamentos arranjados, à sociedade industrial da exploração?
Resta-nos avançar em relação à
sociedade pós-moderna da exclusão. O apocalipse, porém, não
acontecerá.
Juremir Machado da Silva é sociólogo, escritor e professor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, autor, entre
outros, de "Anjos da Perdição" e "Fronteiras"
(Sulina).
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